Talento

[dropcap style≠‘circle’]C[/dropcap]omo encontrar um unicórnio a cavalgar pelas ruas dos Iao Hon. Em Macau, terra mitológica de alegorias e quimeras, criou-se uma lenda fantástica em torno da figura do talento e da sua gambozínica busca. O conceito baseia-se na aspiração idiota trazida dos confins egomaníacos da reality tv, essa quase religião que professa o Evangelho de Narciso, essa umbilical noção de que todos somos especiais, que ninguém é banal, que todos temos uma aptidão fantástica só pelo simples motivo de estarmos vivos. Todos temos a natural inclinação para superar o outro todo que não somos numa área ainda por descobrir. Uma preposição impossível e contraditória, mas adiante.

O mundo é uma carnuda maçã pronta para ser mordida com soberba e nós somos o somatório de caninos e incisivos dotados de alienáveis direitos à trinca.

Mas tomando agora a questão por inteiro. Por um lado, a prioridade máxima de Macau é formar talentos locais. Pelo menos, é o que diz quem manda.

O problema começa na formação, porque aí são necessários quadros superiores de fora para delapidar esse diamante em bruto que são os talentos locais, demasiado perfeitos para terem consciência da sua perfeição. Como tal, é tragicamente necessário importar talentos externos. Os problemas adensam-se neste ponto devido à aversão a estrangeiros evidenciada por aqueles que estão cá há uma ou duas gerações. Nativismo light, com raízes ao descoberto.

Dessa forma, e de modo a encontrar um equilíbrio nesta equação de política psiquiátrica, tenta-se atrair talentos repelindo-os previamente. Passo a explicar esta engenhosa lógica. Ao mesmo tempo que se procuram pessoas qualificadas de fora, fazem-se os possíveis para limitar essa importação. Exigem-se limites o número talentos importados e ao tempo que podem permanecer no território.

Perde-se em eficácia e ganha-se em ironia. Importa sublinhar que estamos a falar do centro internacional de coiso e tal e da plataforma para não sei quê. Uma cidade governada por luminárias que, por certo, já viajaram e apreenderam conceitos tais como: não comer, ou meter na boca, animais com cores fluorescentes, não enfiar os dedos nas tomadas de electricidade, ou que cidades vibrantes e cosmopolitas, que vingam em termos socioeconómicos, são, sem excepção, abertas ao exterior e à diversidade, não são temerosas quanto à competitividade, muito pelo contrário, aceitam a competição como imperativo essencial à excelência.

Esta é a minha interpretação das coisas, uma visão enviesada e desprovida de talento, carne fraca para o canhão de Simon Cowell.

Mas agora permitam-me o desabafo libertador. Eu não tenho qualquer tipo de talento, não sou especial. Sou a expressão mais ordinária do ser mediano, limito-me a cumprir as minhas funções o melhor que posso, procuro melhorar a cada dia e a corrigir as falhas que me constituem. Repitam comigo: EU NÃO SOU ESPECIAL! É óptimo, catártico, um grito primordial que expressa a posição infinitesimal que ocupamos neste universo de elementos e forças que se estão a cagar para nós. Libertem-se das amarras desse mudo de espelhos, parem com vãs tentativas de mascarar imperfeições com ideais inatingíveis, infantis, destinadas a criar privilégios infundados e egos frágeis. Para bem dos poucos potenciais talentos.

Nem todos atletas merecem ganhar a medalha de ouro, isto sob pena de a medalha perder todo o valor e simbolismo. Urge salvar o que resta dos conceitos de vitória e mérito, para que signifiquem algo, muitos vão ter de perder. Lamento, a vida é assim, dura e implacável, indiferente ao orgulho, adversa ao pedantismo.

Só quando nos libertarmos desta amarra psico-política poderemos viver na realidade. Raramente teremos o privilégio de avistar unicórnios fantásticos a cavalgar livres pelas ruas do Iao Hon. Receio que com a mentalidade reinante, essas criaturas únicas sejam abatidas pela virulência do tribalismo de dois dígitos de QI, ou atropelados por um taxista com a cabeça cheia de gelo.

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