VozesA semântica da bosta João Romão - 1 Fev 20195 Mar 2020 [dropcap]U[/dropcap]ma singela frase com três palavras apenas, devidamente descontextualizadas, trouxe ao país grandioso alvoroço semântico: que queria dizer Mamadou Ba quando em curto texto de resposta a um comentário numa famigerada “rede social” escreveu “bosta da bófia”: referia-se o assessor parlamentar e membro do SOS Racismo à episódica atuação de indivíduos da polícia num caso de manifesto uso de desnecessária e desproporcional violência sobre cidadãos desarmados ou tratou-se de um insulto generalizado às forças de segurança pública da nação? O assunto tem ocupado jornais, rádios, televisões, mais as respectivas versões online e as suas populares e magníficas caixas de comentários, as ditas “redes sociais” e certamente muitas conversas de café e tasca, eventualmente serões de família e outras animadas tertúlias. Diligente, um deputado à Assembleia da República entregou mesmo o assunto às autoridades judiciais para que averiguem do significado e implicações de tais palavras. Investigue-se, pois. Vinha a frase a propósito da forma violenta como a polícia, chamada a resolver um desacato entre vizinhos, tratou uma família residente num bairro conhecido como “Jamaica”, na periferia da área metropolitana de Lisboa. As imagens captadas por moradores e rapidamente difundidas não sugerem a mínima hipótese de ter havido qualquer ataque ou ameaça às autoridades por parte das pessoas agredidas. Em todo o caso, foram pedras alegadamente atiradas sobre os agentes que motivaram a violência, na versão divulgada pela polícia e prontamente adoptada por toda a imprensa, sem o devido contraditório. É que a violência policial e práticas racistas das autoridades portuguesas têm amplo e notório reconhecimento internacional: como referiu em entrevista recente uma advogada do Comité Anti-Tortura do Conselho da Europa, Portugal é dos países da Europa ocidental com mais casos de violência policial, sendo mais alto o risco de abuso perante pessoas estrangeiras ou afrodescendentes portugueses. Uma bosta, portanto – e também um aviso suficiente para que a imprensa não tome como verdade absoluta a versão policial neste tipo de acontecimento. Também um relatório da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância, do Conselho da Europa, refere que a polícia em Portugal integra indivíduos que simpatizam com discursos de ódio, racistas e homofóbicos, o que ficou amplamente demonstrado por estes dias em várias páginas e grupos de discussão em “redes sociais” dinamizadas ou activamente participadas por agentes da autoridade – e que tardiamente parecem começar agora a ser objecto de investigação pela própria polícia. É que à parte das elementares considerações éticas que o assunto possa suscitar, cabe lembrar que a lei portuguesa não permite a discriminação de pessoas em função da nacionalidade, etnia ou preferências sexuais. Que haja indivíduos responsáveis pela aplicação da lei que não estão dispostos a cumpri-la é outra grande bosta, naturalmente. Foi este o contexto – que Mamadou conhece bem e que testemunhou dezenas de vezes nas últimas décadas – em que surgiu a frase: “sobre a violência policial, que um gajo tenha de aguentar a bosta da bofia e da facho esfera é uma coisa natural”. Não terão sido as palavras mais adequadas ao momento e ao contexto, como o próprio reconheceu rapidamente. Debalde, no entanto. Segundo o próprio, nos dias seguintes recebeu largas de centenas de mensagens insultuosas e ameaças de violência e assassinato. Foi assediado na rua por membros de um partido de extrema direita e agredido à chegada a um debate numa Universidade. Uma enorme bosta, portanto, mas que esteve longe de motivar a mesma indignação que as tais palavras tinham causado. Também eu andei algum tempo pelo SOS Racismo, há mais de 20 anos, e foi nessas andanças que conheci a dedicação, o empenhamento e a qualidade do trabalho do Mamadou. Mudou pouco o discurso desde então: o que dizíamos na altura é o mesmo que se repete agora, as denúncias são as mesmas, a reivindicação “nem menos, nem mais, direitos iguais” tem a mesma pertinência e atualidade. E no entanto, Lisboa – a grande metrópole do país, que como outras grandes áreas metropolitanas do mundo concentra e expõe com mais evidência as contradições e conflitos das sociedades contemporâneas – transformou-se muito. Estão mais bonitos os bairros centrais da cidade, melhoraram os transportes públicos, os automobilistas não vivem num permanente engarrafamento, pode andar-se a pé e disfrutar da magnífica paisagem urbana. Chegam mais e mais turistas de todo o mundo e Lisboa é uma referência mundial enquanto destino de visita. Também encareceu a habitação, ao ritmo desenfreado da especulação imobiliária. E persiste a miséria nos bairros periféricos da metrópole: as dificuldades de transporte, a ausência de serviços e infraestruturas básicas, a falta de qualidade mínima na habitação. O chão do Bairro da Jamaica por onde os agentes policiais arrastaram pelos cabelos cidadãos desarmados e indefesos não é de calçada portuguesa, é de barro. Os prédios parecem amontoados de tijolos suportados por precárias estruturas: uma construção embargada onde famílias encontraram abrigo, sem água nem luz. A vida é dura e a repressão é violenta, como cantou Chullage com detalhada precisão no seu álbum de 2015, dedicado a quem vive nestes sítios só lembrados por casos de violência e agressão. Esta miséria que coexiste com a opulência crescente do centro da cidade é outra grandessíssima bosta.