As cidades casino

[dropcap]H[/dropcap]á cidades que se tornaram palcos privilegiados para a vertigem do jogo, como Las Vegas e Macau, mundialmente reconhecidas. Movem-se as fichas que fazem correr a adrenalina, rolam os dados, viram-se as cartas, gira a roleta, cantam as slot-machines marcando o ritmo da excitação dos jogadores, pobres, ricos ou assim-assim, ambiciosos quase sempre e ocasionalmente imprevidentes. Ganham-se e perdem-se fortunas mas só entre quem joga – quem não aprecia particularmente a prática da modalidade está imune a estas contabilidades de ganhos e perdas, porventura inócuas, mas eventualmente dramáticas.

Nem todos os jogos das cidades contemporâneas são assim: há outros onde quem movimenta as fichas ganha ou perde mas esses movimentos não são inócuos ou neutros para o resto da população, os jogadores mais ou menos involuntários que se vêm arrastados para a arena da competição – ou empurrados para a periferia dos tabuleiros em que se tornaram as cidades contemporâneas. À falta de investimento produtivo e de inovação tecnológica relevante e sistemática, os processos de renovação e expansão das cidades atuais tornaram-se polos privilegiados para a atração de capitais internacionais num capitalismo global cada vez mais especulativo e violento na expressão das suas desigualdades sociais e espaciais.

Joga-se à grande em Lisboa nestes dias em que a cidade se fez tabuleiro para os movimentos estratégicos de especuladores milionários com as mais diversas origens geográficas. Não se compra o Rossio, ainda praça pública, nem sequer a Avenida da Liberdade, assim por atacado, para construírem casas e hotéis, como no jogo do Monopólio. Mas vão-se comprando apartamentos, restaurantes, prédios, antigas salas de teatro e cinema, quarteirões inteiros, reconvertidos para a gastronomia gourmet, para o comércio mais ou menos luxuoso, para a habitação prime, para a hotelaria convencional ou para novas formas de exploração intensiva do alojamento de curta duração: são muitas as formas especulativas para a criação de riqueza utilizando o território sem reforçar a capacidade produtiva do país, o desenvolvimento tecnológico ou a valorização dos recursos humanos.

Tal como no famoso jogo de tabuleiro, movem-se as fichas também para comprar estações de caminhos de ferro, também elas potenciais hotéis depois de transformadas em inúteis infraestruturas. A companhia da eletricidade já tinha sido comprada, com amplo benefício para quem comprou e para quem foi gerindo a operação e evidente prejuízo para uma população que recebe dos mais baixos salários da Europa e paga das mais altas contas para utilização de energia elétrica no continente. Vão restando companhias das águas, em algumas cidades, mas cada vez mais serviços públicos fazem parte das opções disponíveis nos tabuleiros da especulação global.

Haverá jogadores que ganham e outros que perdem neste casino a céu aberto em que as cidades se vão tornando na actual fase do desenvolvimento capitalista, em que as desigualdades sociais e espaciais se acentuam a olhos vistos: todos os anos se batem novos recordes na concentração de riqueza nas mãos de um escasso número de bilionários e aumenta a desproporção de rendimentos entre os mais ricos e os mais pobres. Também crescem os condomínios de luxo, cada vez mais privados, exclusivos e fechados, nos centros das cidades, enquanto a pobreza e a falta de infraestruturas e serviços elementares alastram miseravelmente nas periferias suburbanas. Concentram-se as fichas deste jogo nas mãos de um punhado de exímios jogadores e barra-se ao resto da população o acesso ao casino. Para jogar, entenda-se, porque sempre se vai podendo entrar para trabalhar, em regime cada vez mais precário e com salários adequadamente “low-cost”.

Acontece que estas cidades feitas casinos são os lugares onde as pessoas vivem e que essas vidas são cada mais condicionadas pela forma como os jogadores distribuem as suas fichas pelo tecido urbano. Alguns pequenos proprietários poderão eventualmente enriquecer neste alucinante processo especulativo, mas a subida sistemática dos preços da habitação beneficia sobretudo os grandes investidores especulativos e as instituições financeiras que os suportam. As cidades casino onde a habitação se transacciona segundo as leis do livre mercado são territórios hostis a quem lá vive e vai empurrado para as zonas periféricas, enquanto os centros deixam de ser históricos e passam a ser amontoados de monumentos com decoração vintage para entretenimento elitista. Não terá grande futuro, este casino.

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