Progresso e crença

[dropcap]À[/dropcap]s nove e meia da noite do dia 14 de Novembro de 1853 a Rainha D. Maria II entrou em trabalhos do seu décimo primeiro parto. Correu tudo mal – das vascas da morte a esta propriamente dita foi o trânsito de uma madrugada.

Já antes Maria tivera parições duríssimas e três dos seus nascituros vieram mortos ao mundo. Segundo algumas crónicas, num caso pelo menos houve que degolar o bebé in utero para que a mãe sobrevivesse. Por volta das duas da manhã o Teixeira, 1.º cirurgião privativo da Real Câmara, ainda augurava esperanças, mas três horas depois pediu que entrassem os restantes quatro colegas, que salvaguardavam o pudor da monarca aguardando respeitosamente à porta da sua alcova, a fina-flor da ciência médica nacional, para deliberarem o que fazer. Foi consensual diagnosticarem a situação como aflitiva e de imediato deram início à operação. Rasgado o ventre da Rainha extraíram-lhe D. Eugénio a tempo de o baptizarem antes de expirar. Ainda foram convocados mais dois médicos, entre os quais o ilustre Magalhães Coutinho, mas a causa estava perdida. Sem recursos que valessem à moribunda, que se mantinha meio consciente, os clínicos ministraram-lhe clorofórmio para lhe mitigar o sofrimento e hão-de ter procedido a uma ou outra flebotomia, o que à margem do jargão da arte se chama de sangria, em tentativas para lhe purificar o sangue e estimular a reacção do organismo. Combalida mas lúcida, D. Maria confessou-se e recebeu a extrema-unção do Patriarca, despediu-se dos íntimos e foi-se esvaindo até ao seu passamento às onze da manhã. Tinha trinta e quatro anos.

As catástrofes sanitárias que assolaram a Coroa portuguesa não se ficaram por aqui. Dois anos depois da morte da Rainha consorte D. Estefânia, vítima de difteria, em 1861 e no período de um mês, o tifo haveria de dizimar o rei D. Pedro V, com 24 anos, e os príncipes D. Fernando e D. João, ambos adolescentes. Sobreviveu o irmão Luís que ganhou horror ao infecto Paço das Necessidades onde consta nunca mais ter posto os pés.

Se for levado em conta que esta mortandade se abatia sobre quem habitava palácios, vivia rodeado de cuidados, comia e bebia do melhor e do mais impoluto e era zelado pela mais avançada medicina da época, com maior acuidade se percebe a urgência e o realismo que Dickens investiu no seu “Hard times” de 1854 e Victor Hugo em “Les Misérables” de 1862. Há, porém, outro aspecto que importa trazer à colação: esta mortandade ocorreu há coisa de 150 anos, uma bagatela na passagem do homo sapiens sapiens pelo planeta, que já dura há 200.000 anos. O séc. XX abundou em desastres e patifarias provocadas pelo ser humano, mas também em progressos assombrosos. Só a má-fé ou um espírito obtuso não ficará extasiado com o facto de a medicina ter evoluído mais em tão curto tempo do que em todos os anteriores 189.850 anos. Hoje só por grave incompetência não teria sido estancada a hemorragia que vitimou D. Maria e as epidemias de tifo, se não foram erradicadas, estão controladas. De cada vez que fazemos o gesto simples e casual de tomar um antibiótico, há 150 anos enfrentaríamos a morte.

Estamos no entanto a assistir actualmente a um fenómeno perturbante senão mesmo embaraçoso. Os habitantes das regiões mais pobres e ermas do planeta onde a medicina não chegou ou é rudimentar, ambicionam, com maior ou pior sorte, o bem-estar e a qualidade de vida que ela proporcionou aos cidadãos dos países mais desenvolvidos. Por experiência própria, ninguém melhor do que eles entende as vantagens da aspirina ao chá de ervas a que têm de recorrer. Em contrapartida, uma parte dos principais beneficiários deste miraculosos progressos, a despeito de todas as confirmações históricas e estatísticas, deu desconsiderar a medicina e a ciência preferindo-lhes terapias – pseudo-terapias – cuja eficácia é sustentada por um atabalhoado e pedestre jargão cabalístico mas, aparentemente, muito convincente porque parece “tradicional”, “natural” e “autêntico”.

Dos vários motivos que levam tanta gente a tamanho obscurantismo, dois serão preponderantes.

40 anos de insistência numa cultura da suspeição estão a produzir o seu efeito. Dela emerge uma forma de niilismo que vez de reparar que nunca as sociedades foram tão abertas e escrutinadas como hoje, imagina o mundo governado por um círculo secreto e fechado a conspirar no escuro contra mim. De tudo se duvida, portanto, porque sobre tudo se presumem más e obscuras intenções.

Outra causa será a espécie de solidão e desalento existencial que carece dos consolos especulativos da metafísica e das verdades seguras, embora inexplicáveis, de um transcendente. Conhecer não basta, é preciso acreditar. Mas em nome de uma pretensa pureza este misticismo tem que ser exótico e original, esotérico e meândrico, porque das formas organizadas, domésticas e tradicionais, ou seja, das igrejas, desconfia-se que façam parte da conspiração.

Só desdenha aquilo que tem, quem o toma como adquirido. A isto pode dar-se o nome de “alienação”. Talvez um pouco de consciência histórica e, literalmente, de razão, mesmo que em doses homeopáticas fizesse bem aos insatisfeitos da boa fortuna.

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