Sofia Pinto Ribeiro, jurista: “O mercado do jogo não é fidedigno nem objectivo”

A criação de um Observatório da Cidade é a proposta defendida pela jurista Sofia Pinto Ribeiro na sua tese de mestrado que vai ser editada online pela Fundação Rui Cunha. A ideia é simples, reverter parte das contribuições financeiras das concessionárias para a criação e uma Fundação que reuniria especialistas mundiais para pensar a cidade e sugerir acções ao Governo. Esta contribuição para a fundação seria uma contrapartida a exigir nos próximos contratos de exploração da indústria do jogo

[dropcap]C[/dropcap]omo surgiu a ideia de fazer esta tese de mestrado em que avalia o impacto do jogo na construção e dinâmica da cidade e propõe que as concessionárias participem na construção de um território sustentável?
Penso que o facto de ter vivido em Macau nos anos 80 e de ter regressado em 2012 me influenciou muito, isto porque me espantou a gigantesca transformação e o impacto extraordinário que a indústria do jogo tem na cidade. Andei muito tempo a pensar numa forma de abordar esta massiva transformação, associar as duas coisas – jogo e cidade – e procurar traçar um caminho e uma aposta para o futuro. Na tese, a par com a indústria, acabei por historiar o urbanismo de Macau desde a instalação dos portugueses no séc. XVI até agora, e fui um bocadinho mais longe porque acabei por investigar todos os organismos que podem ter algum tipo de poder a este nível. Ainda que estes organismos sejam pouco eficazes porque têm basicamente poderes consultivos, têm também imensos poderes que se sobrepõem. São várias comissões, conselhos, etc. Acho que tudo isto leva a uma certa entropia no desenvolvimento urbano. Portanto, a tese culmina com uma proposta de participação das concessionárias na construção da cidade.

Qual é essa proposta?
Proponho a criação de uma fundação. É muito curioso observar a evolução do contrato de concessão com a STDM de 1961 e que só termina em 2001. Neste contrato, e detendo a STDM o monopólio da concessão, há um conjunto muitíssimo expressivo de obrigações para a concessionária que tradicionalmente até seriam obrigações dos poderes públicos. A STDM tinha um conjunto de contrapartidas previstas nos seus contratos que não são meramente financeiras e estão muito além disso porque têm um impacto grande para a cidade. Exemplo disso é a elaboração do plano de elaboração dos novos aterros do Porto Exterior, o financiamento de metade do Centro Cultural, a sua participação em parte do aeroporto, ou seja ajuda em projectos públicos de grande impacto. Além daquelas contrapartidas típicas de manter um casino, um hotel de luxo, etc., tem outras. Outro exemplo foi o facto da STDM ter que assegurar os transportes marítimos entre Macau e Hong Kong. Gera um monopólio, é certo, mas independente desta outra consequência, estas são obrigações tradicionalmente atribuídas aos poderes públicos. Inspirada na história, e nos primeiros contratos com a STDM em que o Governo ganhava imenso com o dinheiro, a STDM ganhava com outro tipo de vantagens e a cidade em si também saía a ganhar, proponho aquilo que seria uma parceria “win-win”, com a criação de uma fundação.

E em que é que consta essa fundação?
Andei muito tempo a pensar como é que havia de casar estes dois assuntos: concessionárias e desenvolvimento urbanístico. Um dia tomei conhecimento de um projecto que funciona na London School of Architecture – LSA Cities – em que o objectivo é estudar em grandes urbes a ligação entre as pessoas e o espaço urbano que é um espaço em permanente transformação. Ora, este projecto é patrocinado pelo Deutch Bank. Um banco é talvez a organização económica mais capitalista que existe e se um banco pode fazer isto, porque não um casino fazer uma coisa inspirada nesta ideia tendo em conta o passado dos contratos com a STDM. Neste sentido, o que pensei foi que, de entre as contrapartidas que se podem exigir às concessionárias e tendo em conta que os resorts já estão feitos, não parece que faça sentido continuar a exigir, na renovação de contratos, mais resorts integrados. O que resta? Obrigações financeiras? As obrigações financeiras não têm que esgotar o pacote e acho, aliás, que dada a presença hegemónica das concessionárias na cidade, o impacto extraordinário que tiveram e a forma como conseguiram modificar a cidade, é de todo legítimo exigir que participem activamente do seu desenvolvimento. Daqui nasce a sugestão que acabei por desenvolver na tese: nos novos contratos de concessão deve constar a obrigação por parte das concessionárias de fundarem uma fundação em que todas tenham participação e em que o Governo participe através de um conselho e curadores. Isto seria uma forma de influenciar o funcionamento desta fundação. Esta fundação, a que chamei de Observatório da Cidade, teria como objectivo pensar a cidade em todas as suas dimensões e em todas as suas refracções. Para isso deveria chamar, não talentos, mas especialistas mundiais nas mais diversas áreas: arquitectura, demografia , geriatria, sociologia, trânsito, tudo o que de facto possamos imaginar que tem um impacto na urbe. A cidade está a envelhecer, não está pensada para deficientes, tem problemas de trânsito e de infra-estruturas. Seria uma espécie de “think tank” que pensaria a cidade para propor políticas públicas ao Governo. É evidente que aqui entraria depois o poder discricionário do Governo, ou seja, o de aceitar ou não aceitar estas sugestões, mas pelo menos este teria informação que lhe permitisse tomar melhores decisões.

FOTO: Sofia Margarida Mota

Como é que este observatório funcionaria, por exemplo a nível de financiamento?
A fundação seria financiada pelas concessionárias. Nem acho que tenha que haver alteração ao status quo ou seja, as concessionárias já contribuem com 1,6 por cento para a Fundação Macau e com 2,4 por cento para o desenvolvimento urbanístico. O que acho é que este dinheiro pode ser fraccionado. É evidente que isto vai causar celeumas. Mas, como também digo na tese, o poder político serve para tomar decisões. Portanto, em vez de 1,6 por cento para a Fundação Macau, passa a ir outra percentagem e divide-se o valor, de alguma forma, entre a Fundação Macau e este observatório. Mesmo assim estamos a falar de uma barbaridade de dinheiro. Por outro lado, o dinheiro que vai para o desenvolvimento urbanístico também pode ser dividido porque, de facto, esta fundação tem tudo que ver com este sector e, nessa medida, faz todo o sentido que esse dinheiro seja canalizado para o observatório. Claro que também acho que esta ideia é virtualmente geradora de uma grande reacção por parte da Fundação Macau, mas nem sequer implica, para as concessionárias, uma maior obrigação financeira do que aquela que já existe. Implica, claro, outro tipo de envolvimento mas que acho que é perfeitamente justo de se exigir.

Como é que isso se operacionaliza, por exemplo, na renovação de contratos que está prestes a acontecer?
Os primeiros contratos terminam já em 2020 – a concessão da SJM e a subconcessão do MGM. A contribuição para a nova fundação deveria ser um requisito para se avançar com os novos contratos de concessão. Por outro lado, penso que o problema das subconcessões é um problema que tem que ser resolvido, até porque ao contrário do que defendem outros juristas, para mim as subconcessões são ilegais. Agora em 2020 temos uma questão a resolver primeiro e que é como tratar o final dos contratos de concessão e de subconcessão. A lei tem uma disposição que permite que, caso os contratos não tenham todos o mesmo prazo, que o prazo seja igualado. Isso é o que acho que vai acontecer. É uma solução inteligente colocar estes contratos em paridade uns com os outros. A proposta que faço é uma proposta que terá força nos contratos de renovação, ou seja se o Governo renovar tem alguma força negocial porque naturalmente as concessionárias terão interesse na renovação o que faz com que o Governo tenha outra capacidade de fazer exigências. No entanto, esta exigência também é perfeitamente legítima, e até se calhar mais eficaz, no âmbito de novos contratos. Isto porque são contratos a ser negociados de raiz e provavelmente com prazos muito mais longos do que se houver uma renovação que não sabemos em que termos vai acontecer.

Acha que vai haver mais concessões?
Não tenho exactamente uma opinião sobre isso. O que de facto acho é que não sabemos muito bem com quantas operadoras lidamos actualmente. Oficialmente temos três concessionárias e três subconcessionárias. Depois temos parcerias entre as concessionárias e outras operadoras de jogo que não sabemos muito bem o que são. Aliás, há um especialistas americano do sector que vem algumas vezes a Macau, Nelson Rose , que chama muitas vezes a atenção para isso: não sabemos com o que estamos a lidar. O mercado do jogo não é fidedigno nem objectivo. Ao abrigo destas parcerias que são admitidas não se sabe com base em quê, desconhecemos quantos operadores de facto estão no mercado. O que acho é era precisa que pelo menos uma situação mais rigorosa.

Há uma referência na sua tese a Berlim enquanto exemplo de aproveitamento de espaço. “Ao contrário de Berlim, que soube usar a oportunidade de ocupar o espaço deixado pelo muro com a melhor arquitectura e urbanismo do mundo, Macau ainda não soube e não quis chamar os melhores a desenhar a cidade”, aponta. O que quer dizer com isto, quando se fala de Macau?
O que justifica a necessidade de especialistas é o estado a que a cidade chegou e a necessidade de ter um plano integrado. A referência a Berlim é um apontamento que encontrei numa revista portuguesa de arquitectura que foi inteiramente dedicada aos 10 anos da transferência de administração e essa passagem está aí como ilustração de uma oportunidade que se perdeu. Ou seja, enquanto Berlim, quando caiu o muro, aproveitou a oportunidade para construir ali uma zona de referência na cidade em termos arquitectónicos, Macau quando se abriu ao Jogo, deixou as operadoras fizessem o que quisessem. Acho que Macau se deixou capturar pelos interesses privados. Um exemplo, apontado por um conferencista, Charles Landry, há uns tempos aqui em Macau é o caso do Venetian. Depois de mostrar um slide de Veneza e um slide do Venetian em Las Vegas diz “este é uma cópia do outro, e em Macau o Venetian é uma copia do Venetian que é uma cópia de Veneza”. Portanto, houve uma admissibilidade ou tolerância à repetição e à cópia. Não houve preocupação com aquilo que aí ser construído e com a identidade da cidade. Neste momento temos um Cotai que não é coisa nenhuma, é uma coisa perfeitamente descaracterizada que até tem uma Strip à semelhança de Las Vegas.

Já é tarde de mais para voltar atrás?
Acho que em certa medida é tarde de mais, de facto. Mas apesar de tudo e como sou esperançada proponho precisamente esta fundação. Claro que não sou ingénua. Senti muito entusiasmo com esta ideia, e acho de facto que é exequível embora seja ambiciosa. Mas também tenho a noção que ela não vai interessar a muita gente. A ideia parte de uma esperança que é a esperança que ainda se possa fazer algo de positivo para a comunidade. Tenho esta convicção de que as pessoas perderam o direito à cidade e acho que isso não é aceitável. Não é aceitável receber milhares de turistas todos os dias e os locais não poderem circular, não é aceitável o custo de vida ter chegado aos valores que chegou. Há uma série de coisas que são reflexo desta hegemonia das concessionárias que, se não puder ser revertida, porque isso dificilmente será, tem que ser minimizada e trabalhada de modo a contemplar a cidade, a sua identidade, o seu património, a sua população com os seus idoso, as suas crianças, todas as suas camadas. A partir do momento em que exigem resorts integrados, porque é que não exigem coisas que no fundo projectem Macau a outros níveis, no mundo. Não temos que ter só uma indústria do jogo. A cidade tem que ser ambiciosa e tem que estar motivada para ser melhor. Macau tem-se degradado nas suas condições e na sua sustentabilidade. Precisamos de uma cidade vivível, transitável, equilibrada e a fundação que proponho vai no sentido de proporcionar, ou pelo menos de tornar possível a adopção de políticas públicas que favoreçam outro modelo de cidade. Acho sobretudo que temos que ser mais ambiciosos, mais capazes e mais arrojados. O poder público tem que ter essa ambição. O facto de querermos apenas ser a cidade mais rica do mundo não me parece que seja suficiente. A RAEM é muito rica mas depois está cheia de problemas que têm urgência em ser resolvidos.

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