h | Artes, Letras e IdeiasApresentação de um livro perdido e actual Paulo José Miranda - 7 Dez 2018 [dropcap]V[/dropcap]em agora a lume As Constituições Perdidas de Aristóteles, com tradução do filósofo António de Castro Caeiro. Trata-se de um livro envolto em mistério e polémica. Logo na introdução, Caeiro escreve “Os fragmentos são citações de livros perdidos, imputados a Aristóteles. (…) Os fragmentos foram coligidos a partir de obras de outros autores e cobrem um período de mais de mil anos.” Adiante, o filósofo que aqui faz de tradutor acrescenta: “Aristóteles não escapou ao processo de falsificação.” Estamos, por conseguinte, diante de um livro que levanta inúmeros problemas, mesmo antes de analisarmos o seu conteúdo. Mas os olhares que mais me interessam salientar neste livro são outros e dois: o literário e o político, ambos extremamente contemporâneos, actuais. E começo pelo sentido político que grassa as páginas deste livro. Ao lermos estas Constituições não podemos deixar de ser invadidos pelo sentimento de estranheza que habitava estes povos, que no seu conjunto constituíam a Hélade. Ao lermos o livro vemos bem que o mundo é todo ele constituído de diferenças, de estranhezas. O mundo é um lugar estranho. E é este o ponto de vista que grassa os fragmentos. As palavras mostram esta estranheza que é a verdadeira dimensão do humano. Só quando está a sós e sem pensar é que um humano não é estranho para si próprio. Fora desse momento a estranheza invade-o e tudo para quanto olha aparece como não sendo familiar. Ao se agrupar num mesmo texto estes fragmentos sobre “outros povos”, pois é disto que se trata, está-se a promover a visualização da diferença numa tentativa de compreensão do outro. O tom do livro não é o da crítica ou repulsa do hábito do estrangeiro, mas do espanto e da tentativa de aproximação, de querer entender, de querer ver para além da evidente distância que há entre esse hábito e o nosso. Num dos fragmentos, o 611, III parte, Constituição de Creta, 15, ficamos a ver que a hospitalidade aos estrangeiros não era comum, fazendo dos cretenses um povo à parte. Escute-se esta passagem: “Todos os cretenses costumavam-se sentar em cadeiras. Foram eles os primeiros a partilhar alimentos com os hóspedes. Depois de terem dado uma parte do rendimento aos hóspedes, davam quatro porções ao rei: uma tal como deram aos outros, a segunda para o seu reinado, a terceira para a sua casa e a quarta para as suas peças de mobiliário. Em geral, em Creta há uma enorme boa vontade para com os estrangeiros. Também lhe chamavam o lugar de honra” Há aqui de algum modo, com o elemento que nos parece estranho de mostrar terem sido os cretenses os primeiros a sentarem-se em cadeiras, um elogio aos cretenses, mostrando que eram um povo evoluído, civilizado, e que isso se mostrava também ou principalmente pelo modo como tratavam os estrangeiros. Como se a atenção ao diferente fosse uma marca de civilização, uma marca de evolução, fazendo da aproximação entre os humanos uma mais-valia, um universal desejado e ambicionado. Quero, contudo, deixar claro que este esforço pela anulação da distância não vai promover a anulação da estranheza. Veja-se como exemplo o fragmento 611, Constituição de Esparta, 13: “As mulheres espartanas não tinham nenhum adorno, nem sequer podiam trazer o cabelo comprido ou andar com ouro. Alimentavam os filhos de tal sorte que nunca ficassem saciados, para que se habituassem a ser capazes de suportar a fome. Também os ensinavam a roubar e castigavam com açoites quem fosse apanhado a roubar, para que fossem capazes, como resultado deste treino, a sofrer e a permanecerem acordados se caíssem em mãos inimigas. Começavam logo desde crianças a falar de forma breve e a serem comedidos tanto a gozarem com os outros como a serem gozados pelos outros. As suas sepulturas são simples e iguais para todos. Entre eles ninguém coze pão, pois não têm farinha de trigo, mas apenas cevada.” Mas talvez os fragmentos em que este esforço de entender a diferença, o estranho, apareçam de modo mais claro sejam os fragmento 538 e 539. Vejamos primeiro o 538: “A krypteia era chamada a agência secreta dos lacedemónios – se é que se tratava de um dos órgãos de governação de entre os que foram incluídos na constituição de Licurgo, como nos informa Aristóteles. Como quer que tenha sido, permitiu a Platão formar uma opinião sobre a Constituição dos Lacedemónios e Licurgo. A krypteia agia assim: os comandantes jovens enviavam, de tempos a tempos, aqueles que lhes pareciam ser os mais inteligentes para o campo, apenas com um punhal e ração de sobrevivência. Mais nada. Escondiam-se durante o dia, espalhados por locais desconhecidos, e descansavam. Mas, de noite, faziam-se a caminho e assassinavam todos os Helotas que apanhassem. Aristóteles diz ter sido sobretudo quando os Éforos chegaram ao poder que decidiram declarar logo guerra aos Helotas, para o massacre poder ser praticado sem violação de escrúpulo religioso.” Percebemos claramente, no final, o esforço de Aristóteles em incutir racionalidade a um acto que em si mesmo parece falido de razão. E iremos ver o mesmo no fragmento 539: “Como diz Aristóteles, quando chegaram ao poder, os Éforos mandaram anunciar aos cidadãos que deviam cortar o bigode e obedecer às leis, para não terem de ser duros com eles. Eu acho que propuseram a coisa do bigode para que os mais novos se acostumassem a obedecer, mesmo a respeito dos mínimos detalhes.” Embora este último fragmento tenha um carácter cómico, à luz dos nossos dias, se em comparação com o primeiro, a verdade é que estamos diante da mesma espécie de fenómenos: por um lado a prepotência e irracionalidade dos actos perpetrados e, por outro, uma tentativa de compreensão, de conferir racionalidade ao que nos é estranho. Mas voltando ainda ao espectro da estranheza e da diferença, e neste caso em relação a nós aqui e agora, leia-se o fragmento 542: “Aristóteles diz que na Constituição dos Lacedemónios que estes usavam para os combates um uniforme cor de púrpura e isto por dois motivos. Primeiro, por causa da virilidade da cor. Depois, porque o sangue é dessa cor e assim ajuda a fazer pouco caso do sangue derramado.” Esta ligação da cor púrpura à virilidade soa-nos claramente estranha. Mas imbuídos do espírito do livro, deste exercício de aproximação ao estranho e distante, ficamos presos ao segundo argumento, o de ser duma cor semelhante à do sangue e por isso ter ou poder ter efeitos práticos e úteis. Esta aproximação contínua ao estranho e diferente faz deste livro um livro actual. Actual, porque necessário aqui e agora. Falta-nos hoje, e cada vez mais, este exercitar-nos na aproximação ao diferente e estranho. Aliás, o que temos visto recentemente é o nosso mundo a caminhar cada vez mais para uma anulação do diferente. Caminhamos perigosamente, e na contramão deste livro de Aristóteles, não num conferir racionalidade ao que nos parece carecer dela, mas conferir irracionalidade ao que nos escapa por falta de exercício racional. Isto só por si faz deste livro um livro urgente, um livro que tem um uso actual e necessário. Um livro político, na melhor acessão da palavra. Do ponto de vista literário, estes fragmentos estão repletos de pequenas pérolas narrativas, como se se tratassem de micro-contos, que, no seu conjunto, acabam por nos dar um retrato panorâmico da Antiga Grécia e da sua enorme diversidade. Relatos que nos instiga a querer ver mais do que nos é contado, a imaginar, a fazermos nós uma continuação daquilo que nos é contado, que é a função da grande literatura. E apenas como exemplo disto, vou ler-vos o fragmento 609: “Aristóteles, o filósofo, relata que alguns dos Gregos, quando regressavam de Tróia, foram surpreendidos, ao contornar o cabo Maleia, por uma tempestade violenta. Arrastados pelos ventos durante tanto tempo, vaguearam por muitos mares, acabando por ir dar a um local de Ópica, chamado Lácio, e que fica no mar Tirreno. Contentes por verem terra, puxaram os barcos para aí mesmo passarem a estação das tempestades, preparando-se para partir quando chegasse a Primavera. Então, numa noite depois de o fogo lhes ter destruído as embarcações, sem saber o que fazer para prepararem a partida, a inevitabilidade inesperada obrigou-os a fazerem vida justamente no local onde tinham ido dar. Isto aconteceu-lhes por causa das mulheres cativas que traziam de Tróia. Foram elas quem incendiou as embarcações, com medo da partida para a casa dos Aqueus, porque uma vez lá chegadas iriam para a escravidão.” Estamos assim perante uma versão da fundação da cidade de Roma, mais literária e mais humana do que a versão mitológica conhecida. E ao longo deste livro temos várias pérolas literárias semelhantes a esta. Terminava esta apresentação voltando à estranheza que percorre as páginas deste livro e que não vos deve ter passado despercebido ao escutarem os fragmentos que vos li. De facto, a estranheza está não só no conteúdo, para nós agora e para os povos da Hélade, confrontados uns com os outros nos seus hábitos, mas também na forma, neste confronto entre as línguas gregas que falam nos textos originais e a nossa língua portuguesa. Resta agradecer ao António de Castro Caeiro este livro fazer agora parte da nossa língua.