Três vistas sobre uma rua

[dropcap style≠‘circle’]U[/dropcap]ma rua absorve o espaço todo de uma cidade. Implode-o em si. A rua vai dar a outras ruas e outras ruas vão dar a ela. Pode fazer-se a pé o caminho que leva a ela ou a partir dela se vai a outras ruas, mesmo contra o sentido da marcha dos automóveis. A rua, onde vivemos, é um cenário que acaba nos seus extremos, nas ruas à esquerda e à direita de que só adivinhamos a existência, mas não temos em percepção. Há prédios de gente que o habita. Há jovens casais e velhos. Há o sapateiro, a mercearia, casas de pasto. Há paragens de autocarro, casas de habitação e agências de viagem, agências bancárias, casas de moda. Carros passam e pessoas caminham pelos passeios: avós e netos, pais e filhos, irmãos e irmãs. Uma rua é um ecossistema complexo. Demora tempo a habitar uma rua. Pode ser a “personalidade” orgânica, onde uma criança brinca com outras crianças desde sempre: joga à bola, corridas de carros nas bermas do passeio. Pode ser a rua, calcorreada a passo lento de quem é decrépito e tem a vida toda vivida e espera pacientemente pelo último suspiro. Todas as ruas são este ecossistema para quem vive nelas. Mas há também as ruas, onde ficam os sítios em que trabalhamos ou o liceu ou o ginásio. Há as ruas onde vivem os nossos amigos que são também por direito próprio as ruas dos outros. Cada rua, excepto a nossa, é a rua dos outros. Podemos até vir a viver nas ruas dos outros, próximos dos outros e das suas ruas. A rua onde vivemos vai ficando esbatida. O seu sentido permanece. O seu significado fica sempre algures a fazer-se sentir. O que se esfuma são os rostos de quem por lá passou. Nem nos apercebemos de que são agora adultos, quando há quarenta anos eram crianças. O parque automóvel mudou. As fachadas dos prédios foram pintadas com cores diferentes. Os velhos morreram. O sapateiro fechou. Não há mercearias, nem agências de viagem, nem agências bancárias. Há prédios novos no lugar de prédios velhos. É uma outra rua.

Mas há tantas ruas, também, quantas as pessoas que as habitam. Num prédio de quatro andares, por exemplo, e quatro apartamentos habitados, há uma multidão de gente. A rua das pessoas do segundo andar esquerdo é diferente da rua das pessoas do segundo andar direito. O que se passa nas suas casas é inacessível, mesmo quando ouvimos falar do que acontece a cada família: um filho que adoece e um pai que morre. Mas, mesmo no habitual habitável, quando tudo é normal, as ruas são influenciadas pelas casas, porque as pessoas habitam uma rua, vivem numa rua, existem nela! Não estão lá postas nem para lá são atiradas, para serem referenciadas por coordenadas. É outra a maneira de ser numa rua. A rua toda entra por olhos adentro. Há os sons omnipresentes dos elétricos que passam, sem nós os vermos. Há o ruído dos carros a passarem na Ponte Sobre o Tejo. Há cães que ladram à noite. Há o som que se silencia ao entardecer, quando as pessoas chegam a casa e preparam o jantar. Há os sons das crianças que gritam de chegar a casa e estarem no serão à espera do sono dos anjos.

E a mesma rua pode ser completamente diferente. Uma rua que é a nossa referência na cidade tem épocas. É uma rua onde podem viver pessoas que nunca se conheceram e um dia percebem que a viveram em dias diferentes da semana. A rua pode ser habitada ao fim de semana sem poder conhecer ninguém que lá viva aos dias de semana. A rua é a da infância, da juventude estridente, dos primeiros anos do envelhecimento dos avós. A rua é diferente, quando nos chega uma notícia boa e quando nos chega uma notícia má. A rua é diferente na solidão do solitário e quando é partilhada na geografia e na biografia de duas pessoas que se encontram. A rua é diferente, quando é habitada e quando é só preenchida pela vida azul da melancolia solitária. A rua congelada no tempo, em que nada acontece, é diferente da rua que se funde e derrete, num dia solarengo de Verão, quando se espera a chegada de alguém, apenas por servir de chegada a alguém por quem faz sentido esperar.

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