h | Artes, Letras e IdeiasAs formas do tempo João Paulo Cotrim - 25 Jul 201825 Jul 2018 Horta Seca, Lisboa, 8 Julho Liga-me o Nuno [Ramos de Almeida] anunciando a morte de Steve Ditko (1927 – 2018), o criador do Homem-Aranha, com Stan Lee. Improviso comentário que não viaja longe do óbvio: este ícone da cultura popular há gerações foi o primeiro super-herói a duvidar da sua condição, a perguntar-se adolescentemente. A personagem não encaixava no mundo que era suposto salvar. Os longos monólogos, em versão brasileira, cedo me espantaram. Mas só muito mais tarde descobri a grande dinâmica gráfica, que fugia à gramática aparentemente simples, mas sempre eficaz, que, por alturas do voo abaixo dos radares, foi sendo construída peça a peça por operários, que não autores, como Ditko nos comics. Estou em crer que só a máquina da indústria cinematográfica, que remastiga até às migalhas a enigmática categoria dos super-heróis, consegue assinalar o desaparecimento de um obscuro obreiro. Confesso que não estou em condições de analisar o que se simplificou na passagem para as versões cinematográficas, portanto mais divulgadas, mas o Homem-Aranha contém original potência de mito. Vale de Santo António, Lisboa, 14 Julho Escolhos recebidos das marés vivas, por estes dias chegaram-me inúmeras colagens, na forma de propostas para exposições, enquanto acompanhantes de poemas, agora mesmo nos bastidores do labor actual do José Manuel [Rodrigues]. O eremita, que não deixará nunca o Alentejo, abriu atelier em Lisboa e estendeu festa. No meio das vitualhas, lá estava a sua actual matéria: velhas fotografias de todo o tipo, resgatadas pela gandaia nas feiras de antiguidades, aguardavam em repouso os cortes que, para começar, as tornarão ainda mais fragmentadas, antes de se fixarem em novas e unas composições. As primícias que nos foram dadas a ver estão cheias de potencial, de latências e pulsações. O jogo na colagem reside no descentramento do olhar, nas formas originais que surgem das ruínas, dos restos. Há muito que não as pratico, de tal modo o meu tempo se fez sucessão de nós por desatar. Tinha por material de eleição convites em papel que ia recebendo para exposições e lançamentos, isto além de múltiplas outras proveniências. Desconfio que me seria muito difícil sacrificar velhas fotografias. Bem sei que sacrifício talvez seja peso exagerado, e os anónimos renascerão, mas há um lado patrimonial que me custa ofender. Curiosamente ou mais que isso, os dois poetas que me têm acompanhado, o Luis Garcia Montero e o Felipe Benítez Reyes tratam o tempo por tu, escavam-no por dentro revelando o seu vazio de formigueiro. Acresce que o Felipe também compõe colagens, como as que incluiu na sua prova de amor a Pessoa e a Lisboa (uma delas ilumina aqui a prosa). Em todas as cinco, o mostrador de relógio com os ponteiros na sua marcha inexorável surge no lugar de protagonista. Faz-se mesmo cabeça nos casos agudos. O tempo persegue-me. Horta Seca, Lisboa, 15 Julho Folheio o catálogo que o Museu Internacional de Escultura Contemporânea, de Santo Tirso, dedicou ao desenho de Júlio Resende, nos idos de 1950. Para as lermos com o corpo todo, precisamos ver os originais ao vivo. Mas um livro, quando bem feito, transfigura-se em museu portátil, disponível em qualquer altura, sempre pronto a surpreender. Folheio e fico preso. Um após outro apresentam figuras em diálogo, confinadas à sua paisagem, às tantas quase caracteres, como se o gesto libertasse formas. Até que me encontro nas figuras compostas de finos traços, volutas que parecem evoluir até se fixarem numa forma, concreta aqui, abstracta além. «Homem com rede» só se faz corpóreo pelo título, mas assim que se lê o homem dança, feito forma pelos traços súbitos das suas horas. Talvez ganhe o dia, o peixe, o pão. Ou se perca no rodopiar, modos do cinzento ganhar um pouco mais a espessura de negro. E o mar sobrando no quase branco do papel, ressoando. Horta Seca, Lisboa, 16 Julho Devidamente notificado do lançamento das novas listas (primeiro semestre) do Plano Nacional de Leitura, descubro que temos dois títulos seleccionados, «Poetas Portugueses de Agora» e «Odes Olímpicas», mas a única forma de tal sabermos será usando o motor de busca da Rede de Bibliotecas de Lisboa (BLX). Torna mais difícil analisar o conjunto das listas e tinha curiosidade de ver o que mudou, se alguma coisa tiver acontecido, com os novos avaliadores. O que acabou por me tocar foi ver os livros aparecerem com os selos da biblioteca a que pertencem, encimados por traço verde, números e letras a marcarem com coordenadas a pureza. A minha aldeia lúgubre de infância foi uma biblioteca no topo da colina. Não perdoarei à Junta de Freguesia ter expulsado os livros de tão perto das nuvens. Nem mesmo por os mudar para a vizinhança da escola, no Vale Escuro. Hoje Macau, 19 Julho O mano António [de Castro Caeiro] continua a traduzir [Georg] Trakl, enchendo-me com os suspiros pestilentos da melancolia, rezando a quotidiana proximidade da morte, ainda ela: «Oh! a noite que chega até às aldeias lúgubres da infância./ A lagoa entre as pastagens/ enche-se com os suspiros pestilentos da melancolia./ Oh! a floresta que mergulha suavemente nos olhos castanhos,/ para aí das mãos ossudas do solitário/ a púrpura dos seus dias delirantes decair./ Oh! a proximidade da morte. Rezemos./ Nesta noite, desfazem-se sobre almofadas mornas/ amarelecidos pelo intenso os frágeis corpos dos amantes.» CCB, Lisboa, 19 Julho Fechamos a temporada do «Obra Aberta» com o Fernando [Sobral], a trazer sobretudo romances históricos, dos que nos poem a pensar quem somos, sobretudo na relação com o poder, e o Vítor [Paulo Pereira], oriundo dessa esfera do poder, mas do próximo, daqueles que fazem a diferença, e assente na cultura, soltou tocante e espontâneo, como é seu timbre, apelo à leitura. Por causa dos mundos que os livros contêm. Professor, que talvez não tenha deixado de ser, em comentário à crise da educação, Vítor afirmou depois que nada é mais importante do que a relação criada entre o professor e o aluno na sala de aula. Tudo o resto pode estar a ruir, mas o essencial acontece ali e dependendo pouco de terceiros. Deixou-me a pensar.