O Verão há muito tempo

[dropcap style=’circle’] N [/dropcap] a minha infância, o Verão anunciava um horizonte inteiramente diferente daquele que vigorava no resto do ano. Era uma espécie de intervalo que redimia os meses de frio e de solidão em Clermont-Ferrand, França. O inverno em Clermont-Ferrand era sinónimo de frio e de neve. Ao contrário da imagem romântica que temos da neve – e num país como Portugal, só se pode ter uma imagem romântica – a época da neve não corresponde a parzinhos românticos dançando no gelo, felizes, em pleno Central Park, ou a bonecos alvos salpicados de vegetais fingindo narizes e olhos. Na maior parte do tempo em que neva, a vida quotidiana e a poluição encarregam-se de transformar as ruas num lamaçal castanho que toda a gente gostaria de evitar e não o consegue.

Eu tenho demasiados genes portugueses para a vida naquelas condições climatéricas. Para além de uma asma que acordava em Outubro para adormecer apenas em Maio, tinha amigdalites constantes no Inverno, período no qual a minha dieta se resumia a leite quente e antibióticos. O próprio acto de sair à rua, com temperaturas negativas e vestindo malhas sobre malhas, era um acontecimento para o qual tinha de me preparar psicologicamente. Os dias em que não tínhamos aulas eram, para mim, os mais felizes (e eu gostava de ter aulas).

Em Agosto, como a maior parte dos emigrantes, regressávamos a Portugal. Com o carro carregado de parafernália electrónica, queijo Brie e brinquedos, empreendíamos a viagem de carro que durava dois dias e duas noites de Clermont-Ferrand a Tavira. Em Tavira, os miúdos da minha idade ficavam a olhar para o nosso carro, um Renault 18 GTL que, não sendo de todo um modelo de topo, fazia ainda assim um brilharete. Lembro-me dos olhares de espanto das crianças quando eu lhes mostrava os vidros eléctricos. Aquela banalidade ao nível de ligar e desligar a luz, em França, era em Tavira pouco menos que magia.

As famílias das minhas irmãs recebiam-nos como reis magos temporãos. Da goela do porta-bagagens do Renault saíam objectivas e máquinas fotográficas para um cunhado fotógrafo, acessórios de caça para um cunhado de clique mais barulhento, brinquedos para os meus sobrinhos, roupa para as minhas irmãs, iguarias francesas para todos. Sentia-me feliz com aquela distribuição de prendas, sentia que bastava pouco para fazer os outros felizes. A família era como o Verão: tinha uma época e era simples.

Na praia eu era invariavelmente a criatura mais branca sobre a areia. Acabava o Verão com inveja do meu sobrinho, apenas um ano mais novo e consideravelmente mais escuro que eu. Eu começava a temporada num tom azul-claro e, passando de leve pelo branco, ia directamente para o vermelho. Não tinha jeito para aquela forma de ser português, descontraído e alheio à necessidade de protector solar. A minha pele absorvera demasiada frança, demasiada neve.

Quando acabava o Verão, a pouca cor que adquirira naquele mês de praia dissipava-se no regresso a França e, já na escola, quando me perguntavam pelo que tinha feito nas férias e eu respondia “praia”, orgulhoso, o resto da turma ria-se. Para aquela medalha de veraneante, os meus genes portugueses nunca chegaram.

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