Melancholia revisitada

[dropcap style=’circle’] F [/dropcap] austo na versão de Thomas Mann vende a alma ao diabo para obter anos livres de criação. Em troca, o compositor Adrian Leverkuhn não podia amar. Nem sequer “abrasar-se”. Era paradoxal, segundo uma das projecções da configuração do diabo. O diabo inspira a luxúria, a violência, o priapismo. O próprio casamento para o apóstolo Paulo era a segunda melhor opção. Melhor seria que nunca ninguém vivesse com outrem. O celibato era a melhor opção para o cristão militante. O exercício da castidade é o método.

Fausto, Adrian Leverkuhn, não chega a fazer bem a promessa. Facto é que durante 24 anos, qualquer forma de amor que o ligue a um qualquer ser humano: a uma mulher ou a um sobrinho, acabaria sempre por abortar. Ninguém fica impune a um coração partido. Como se sobrevive a uma decepção romântica? Uma mulher amada que faça a vida longe com outro homem com quem teve filhos é uma abstracção concreta. Não é nunca ninguém. É sempre alguém com o volume espesso do inatravessável. É compreendida com o coração como uma transparência absolutamente opaca. Uma criança amada que tivesse morrido ou fizesse vida fora das nossas vistas é o quê? É um vulto com uma biografia e uma cronologia que passam ao largo da nossa vida. Revisita-nos de quando em vez ou sempre, na realidade ou em sonho, mas não tem a espessura que o quotidiano dá às relações humanas.

O pacto de Fausto com o Diabo é feito, quando o artista é jovem. Na versão de Goethe é completamente diferente. Fausto é um homem velho que se apaixona por uma rapariga muito jovem. Compreende-se fora de prazo para o amor. A sua compleição física não é erótica nem sensual para a menina. Vende a alma ao diabo em troca de tempo. O tempo agora é de juventude e é um tempo para amar. O sábio abdica de tudo para regressar a um tempo em que era possível recomeçar de novo. Este recomeço é feito com a certeza de que não esbanjará de novo a vida com o estudo. Será para ter uma vida amorosa, banal para o teólogo e o filósofo, burguesa para o artista.

Não nos enganemos, vivemos a projecção existencial que compreende a vida a partir da situação esboçada por Thomas Mann. Talvez Nietzsche lhe sirva de modelo. E poderá mesmo servir, porque na sua biografia há elementos importantes que o deixam na situação de Fausto. Não se sabe se terá sido ou não correspondido. Não terá sido de certeza correspondido por quem quis ter e com quis ser, pressupondo que teria tido o talento para ser marido. As vidas fora da ordem da normalidade não são compatíveis com nenhuma forma de amor, não pelo menos aquela forma de amor que faz do outro a representação do tudo que nos diz.

O ricochete dessa impossibilidade não dá a paz da neutralização. Dá outra coisa. Se todas as acções ficam em quem as pratica, a renúncia ao amor é a mais poderosa das acções. Não se rejeita toda a gente, nem todas as mulheres, nem todas as crianças, nem todas as pessoas em geral. Só aquelas que nos podem tornar escravos delas. É que a renúncia ao amor que tem como objectos amores efectivos, reais, poderosos, violentos, traz consigo o poder criativo. É desse poder criativo que vive o sacerdote, o artista, o político, o poeta, o filósofo.

Sem querer pode ter-se feito o pacto. É-nos concedido tempo, muito tempo. Mas o pacto não nos blinda em absoluto. De quando em vez, vem até nós um sonho de amor. Como teria sido se tivesse ficado com alguém para ter sido a outra versão de mim próprio?

Talvez o Fausto de Goethe seja a versão velha do Fausto de Thomas Mann. Na verdade, quer-se tudo e não se pode ter verdadeiramente nada sempre nem da mesma maneira.

As asas da melancolia, ao baterem, afastam qualquer espécie de vida que tenhamos escolhido, presumindo que a escolhemos efectivamente.

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