Bacalhau

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]ecidi no outro dia dispensar uma hora e meia do meu tempo para assistir ao filme “A Gaiola Dourada”, um retrato mais ou menos actual da emigração portuguesa em França. O filme não é recente, tem quase cinco anos, mas na altura passou-me ao lado – estando aqui no extremo oriente, é perfeitamente normal. Contudo, e desde que o filme estreou, não tenho parado de ler os maiores encómios a seu respeito.

Pessoas que dizem ter visto “quatro ou cinco vezes”, outras que, e passo a citar, “se mijaram a rir”, enfim, pensei que estava ali o “Citizen Kane” do cinema português, e eu arriscava-me a morrer estúpido se não visse “A Gaiola Dourada”. E assim, através do milagre do “streaming”, fui inteirar-me do que se tratava.
O filme é sofrível, e isto é o melhor que posso dizer dele. Não é um filme português; é uma produção francesa – 99% dos diálogos são na língua de Dumas – que conta com um elenco de actores portugueses e franceses.

Está muito longe de ser uma comédia; não me ri, nem sequer me deu vontade de sorrir, e muito menos me comoveu. Em causa não estão as (excelentes) interpretações dos seus actores principais, Joaquim D’Almeida e Rita Blanco (outra coisa não seria de esperar), ou sequer a realização do jovem Ruben Alves, ele próprio um luso-descendente. O problema é do próprio argumento, previsível e redutor. Todos temos mais ou menos uma ideia de que como é a vida da comunidade portuguesa em França, e o filme não nos traz nada de novo, ou de surpreendente.

O José trabalha na construção civil, a Maria é empregada de limpeza, sonham voltar a Portugal de vez depois de mais de 30 anos emigrados em França, os filhos estão relutantes, uma vez que já ali nasceram, sentem-se mais franceses que portugueses, etc. etc. etc.. Há uma cena perto do fim do filme, onde a patroa francesa de Maria chega a casa acompanhada de um painel de juízes de um concurso de jardinagem em que participa, e o casal português está em pleno jardim, no meio das rosas, a fazer uma sardinhada e a escutar o tema “Bacalhau à Portuguesa” de Quim Barreiros. Aliás, o “bacalhau” é um tema recorrente em todo o filme. Isto não só não tem graça, como chega a ser ofensivo; eu sou português, gosto do fiel amigo, mas não é por isso que sou um “comedor de bacalhau”.

Talvez eu não tenha a sensibilidade necessária para apreciar “A Gaiola Dourada”, para ver o filme repetidas vezes e rir-me até ficar à beira da apoplexia. Vivo em Macau há 25 anos, mas nunca me considerei um emigrante. Tal como muitos dos leitores que chegaram ainda durante o tempo da administração portuguesa, adquiri a residência poucos meses depois de chegar, não tive quaisquer problemas de adaptação, nem sequer ao idioma, sendo o português ainda hoje uma das línguas oficiais da RAEM.

Não deixo no entanto de ter simpatia pela comunidade portuguesa em países europeus como a França, a Bélgica ou a Suíça, e que ultimamente os portugueses nativos resolveram apelidar (depreciativamente) de “avecs”. Se eles têm uma vivenda na terrinha, são proprietários de terrenos no Douro vinhateiro, ou conduzem BMWs e Mercedes, certamente que foi à custa de muito esforço e sacrifício, fruto do seu trabalho, e mais nada.

Fico a aprender muito mais a respeito da actual diáspora portuguesa em programas como “Portugueses no mundo”, transmitido assiduamente pela RTPi, onde damos conta de compatriotas nossos que são empresários ou que exercem profissões liberais um pouco pelos quatro cantos do globo. Longe vão os tempos em que a emigração era apenas uma forma de fugir à pobreza.

Actualmente, temos uma massa de gente inteligente, qualificada e empreendedora que dignifica o nome de Portugal por esse mundo fora. Uma realidade que vai muito além daquilo que nos mostra “A Gaiola Dourada”, que repito, não é um mau filme, mas que deixa muito a desejar neste aspecto em particular. Não me faz sentir de todo representado.

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