O cosmopolita

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] epicentro sou eu. Tudo em meu redor é suburbano e menor. Nasci e fui criado no campo e hoje, olhando para trás, sinto-me a milhas das minhas origens, renascido das cinzas da pessoas que fui.

Se há coisa que me põe mal disposto são manifestações de provincianismo, principalmente aquelas que reflectem o meu passado, aquelas nas quais me revejo a grande custo. Na realidade, tremo de terror só de pensar na minha antiga vida, na pessoa que fui, nas parcelas do somatório que resultaram em mim. Tão ingénuo que eu era, simplório como uma galinha, longe de saber o que é uma vernissage, incapaz de distinguir entre uma instalação e um amontoado de tralha, entre um monocasta e uma pomada de tasca.

Este belo edifício de erudição tem alicerces rudimentares, rebocos simplórios, chãos alcatifados e sofás forrados a plástico. Fui acrescentando, pouco a pouco, andares à barraca inicial que deu tecto ao meu nascimento e hoje sou um frondoso arranha-céus, um colosso que desafia a gravidade das mais aprumadas convenções sociais. Abri todas as minhas janelas às aragens do cosmos e é aí que fundo a minha cidadania e identidade.

Confesso que ao princípio até tinha algum orgulho em ser sufocado pela asfixia do stress. Gostava de descrever o reboliço, em tom de lamento, aos meus conterrâneos nas minhas primeiras visitas depois do meu sofisticadíssimo renascimento. Sentia-me grande como um continente ao ver os olhos esbugalhados dos meus antigos amigos. Coitados, pobres trogloditas, para sempre abençoados pela Santa Ignorância. Na realidade, a proximidade e o confronto com aquele provincianismo que me fundou agiganta o meu cosmopolitismo, faz de mim quem sou e sempre quis ser.

Sou o protótipo do novo Homem Moderno, essa raça que se reinventa a cada início de século, como uma aplicação biológica em constante actualização. Exibo a minha mulher-troféu, obviamente de outra etnia, pelos palcos da sociedade bem pensante. Pavoneio-me pela multiculturalidade que serve de álibi aos meus mil preconceitos, raízes últimas do meu passado primário. O meu corpo é o meu templo, preservado com cuidado extremo e cremes hidratantes, dietas da estação e as melhores vestimentas que o dinheiro pode comprar. Tudo o que sirva para ocultar o perfume a terra que ainda se sente debaixo das minhas unhas e a pele precocemente curtida pelo sol do labor campestre.

Ironicamente, este cosmopolitismo que orgulhosamente professo impõe que me retire para o campo, para fugir da cidade, que transforme aquilo que é natural em conceitos hediondos como “rústico”, ou “autêntico”. Um dia destes regresso, um estrangeiro na minha própria terra, orgulhosamente inapto perante a crueza da vida agrária. Minhas mãos suaves como as de uma criança mimada da cidade. Sem os sulcos que cicatrizam o labor campesino, esse mapa de calos e gretas onde se inscrevem os ciclos de colheitas e a alimentação das bestas nas mãos dos homens de barba rija. A minha é suave e cuidada com cera especial.

O mundo é a minha ostra, pronta para ser sorvida com champanhe gelado. Sou um pregador da indiferença perante a cultura nos ciclos onde gosto de projectar a voz. Fronteiras e soberanias nacionais são conceitos obsoletos, quando o universo é a nossa casa. Apenas uma delimitação terrestre subsiste como um quisto geográfico no meu peito: a aldeia, esse trauma irreconciliável com a minha posição.

Pelo-me de medo perante a possibilidade de dar de caras com um conterrâneo na minha metrópole. Como lhe poderei explicar que sou outro, que evolui para outro patamar de existência? Impossível.

Sou um Homem-Estado, tenho a minha própria constituição e rejo-me pelas leis do meu corpo. Esta é a unidade de soberania a que todos devem almejar para que se destrua, de uma vez por todas, a fantasia gregária das sociedades ancestrais. Curiosamente, apesar desta holística mundividência, quis o destino que viesse viver para Macau, essa representação exótica da minha aldeia, emparedada por fronteiras por todos os lados. Mas a minha alma não precisa de visto para viajar pela derradeira pátria universal. Haverá coisa mais cosmopolita que esta.

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