Tédio profundo (“acedia”)

[dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]oão Cassiano, João Damasceno, João Crisóstomo com São Tomás de Aquino consideram a “despreocupação” um pecado mortal. Não um pecado venal (“perdoável”). A tradução do substantivo feminino latino “acedia,-ae” é polissémica.

Ou “aborrecimento”, “tédio”. Ou “despreocupação”, “ausência de cuidado”. A etimologia da palavra na segunda acepção vem do grego “akedos”. “Kedos” quer dizer “cuidado”, preocupação. A grafia “A” em “A+kêdos” representa o alfa privativo. Assim, a palavra quer dizer “sem cuidados ou preocupações” “desprovido de cuidados ou preocupações”.

O interessante é que a primeira acepção da palavra é inteiramente latina. Tomás de Aquino na Questão 35 da Suma Teológica concebe-a como um processo, não apenas como um estado de espírito, mental ou corporal. “A-cedere” é a situação de estar a tentar fugir a Deus. Esta fuga não é passiva mas é um debate dramático para nos libertarmos de Deus e do seu sentido (Theunissen). Deste modo podemos ler o sentido etimológico da palavra grega: tédio, aborrecimento, exaustão, fadiga, neura, etc., como o resultado de um processo activo de fuga.

“Ab-horresco” é um verbo incoactivo de fuga em face do horror. Todo o aborrecimento é, de facto, o que provoca uma fuga em face do horror. Não é um horror que meta medo por causa de um ente, que crie a angústia do pavor, o pânico. É um horror que é interpretado como esvaziamento activo, falta de sentido, inanidade. As horas do dia não levam a lado nenhum, o tempo parece não passar. O tempo não passa. As horas passam ao largo. O fim do dia é exactamente tão estagnado como o princípio do dia. As semanas trazem sempre o mesmo desespero, o mesmo vazio, não fazem sentido, não orientam nem dirigem.

São João Cassiano diz que a hora da “Acedia” chega ao meio dia, para inquietar os monges com a sua força máxima. A situação do aborrecimento inquietante do tédio de não ter nada para fazer, estar des-preocupado, é estudada no laboratório existencial que é a vida monástica. A divisão do tempo do dia é dado pelo tempo da oração, das refeições, do trabalho comunitário. Mas as pessoas que se encontram nos mosteiros afastaram-se das preocupações do dia-a-dia do mundo, da sua ambição, das várias tentações provocadas pela “cobiça, dos olhos e da carne”. A vida num mosteiro é pensada “de fora” como afastamento, exclusão, reclusão. No interior da vida pessoal quer dizer uma escolha activa para viver uma vida “a fazer a vontade de Deus”, uma vida que expressa a exposição ao sentido dos dias que vem de uma dimensão diferente, absolutamente diferente, da agenda do nosso quotidiano, seja ela profissional, seja ela afectiva ou até mesmo religiosa. Este ponto fundamental decide o princípio de compreensão de um fenómeno que projecta de certo modo a modernidade.

O mosteiro e a vida monástica representam a vida com sentido, a cumprir-se na realização da vontade de Deus. É a possibilidade extrema e radical em que se fizeram todos os votos positivos para a consagração a Deus, uma vida dedicada a Deus. Não se trata apenas de abdicar do mundo nem de abdicar da ambição mundana. Trata-se de uma escolha positiva em que todas as acções são acções de graça. Orar é a expressão máxima da vida, porque resulta do contacto em “conversa” com o Pai. A “dieta” e o “regime” do dia são o resultado da renovação, que é o processo de “meditação” no sentido que configura o “monge” sob o “desígnio” e a vontade do Pai. Esta hipótese existencial faz sentido, preenche, enche o coração de alegria. O mundo e as suas ambições ficam de lado, esquecidas, obliteradas. Deixam de fazer sentido.

Mas o que se passa na sexta hora quando a inquietação do monge é máxima? Há alguma recidiva? Quererá o monge regressar ao mundo, como o prisioneiro quer sair da sua cela para um mergulho atlântico ou sentir o calor do sol no rosto? Não. A possibilidade extrema do aborrecimento é o da fuga à vida, ao quotidiano, da repetição, da ausência de novidade, do mesmo que é inultrapassável. A eternidade é a vida no mosteiro com as mesmas divisões de horas, as mesmas refeições, o mesmo trabalho. Deus desapareceu do mosteiro. Um mosteiro sem Deus é como um templo em ruínas. O monge não tem já o mundo para onde regressar, porque nem o mundo é habitado por Deus. Atirado violentamente para a interrupção total da passagem das horas, o momento é de horror, desespero, angústia. Não há apenas a abertura à consciência de si próprio como eu. É a vida, o mundo, e Deus que surgem na abertura resolutiva (“Erschlossenheit”, Heidegger) total.

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