Análise | Internet cara e má complica criação de território inteligente e inovador

Durante a apresentação das Linhas de Acção Governativa para 2018, Chui Sai On reiterou dois dos objectivos mais mencionados nos últimos anos: a construção da cidade inteligente e a diversificação económica, sem muitas medidas concretas de real impacto no tecido socio-económico. Entretanto, o preço e a fraca qualidade do acesso à internet estrangulam a competitividade das empresas locais, forçando-as a procurar serviços no exterior

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uem em Macau nunca se exaltou e ficou a berrar com o telemóvel por uma chamada de WhatsApp cair devido a má ligação? É uma constante, assim como a velocidade de upload e download que por vezes atingem limites exasperantes. Quando o cliente é uma empresa, especialmente do ramo das altas tecnologias, a questão pode representar não só perda de competitividade como a perda do lugar num mercado de concorrência implacável.

Aquando da apresentação das Linhas de Acção Governativa (LAG), Chui Sai On prometeu empenho “na promoção das participação das pequenas e médias empresas e dos residentes, especialmente dos jovens, do pessoal técnico e de gestão e dos profissionais no aperfeiçoamento da construção de software e hardware”. O compromisso prestado perante os deputados não é novo e tem como objectivo “estimular uma cultura inovadora e aumentar a capacidade empreendedora e de emprego dos residentes” no processo de construção da cidade inteligente.

A ideia é boa. Apostar na inovação para contornar a notória dependência do tecido económico local da indústria do jogo e turismo.

Outro chavão muito ouvido é a busca de talentos nas mais variadas áreas. Sendo que o sector da alta tecnologia é uma das apostas mais óbvias para prosseguir as metas pretendidas. Nesse domínio, Jorge Valente, candidato a deputado pela lista de Melinda Chan e empresário do sector das altas tecnologias, reconhece a boa vontade do Executivo, porém admite que “não se passa disso”. O macaense entende que a formação há muito que não é suficiente, assim como os incentivos nos primeiros instantes de vida de uma empresa, especialmente do ramo das tecnologias da informação.

A diversificação económica acaba por ficar pelo caminho quando um jovem se forma nestas áreas, por mais talentoso que seja, tendo em conta a segurança dada por um emprego no ramo da hotelaria, ou numa concessionária de jogo. A remuneração é boa, com francas oportunidades de crescimento numa carreira que não enfrenta os riscos de um negócio começado de raiz.

“Criar uma start-up em Macau, onde os custos são altos e a probabilidade de sucesso é mais baixa do que nos países e zonas vizinhas, é muito arriscado. Claro que os jovens vão trabalhar num hotel ou casino, em vez de arriscarem criar uma empresa num ramo onde as probabilidades de sucesso são menores”, explica Jorge Valente. O empresário entende que o talento que fica por Macau é residual, apesar da educação subsidiada pelo Governo, quando é natural que “uma pessoa que tenha uma boa ideia na área das altas tecnologias decida ir para Silicon Valley, Inglaterra, ou Lisboa, que está com um bom ambiente para startups”.

Neste domínio existem medidas pouco concretas em termos de objectivos claros nas LAG como, por exemplo, “apoiar as organizações de jovens empreendedores de Zhuhai, Macau e Portugal no estabelecimento de ligações e no reforço da parceria para as startups das três partes”.

À espera de rede

Tendo em conta as idiossincrasias da economia de Macau, torna-se mais fácil abrir uma empresa do sector tecnológico nos ramos económicos tradicionais, como a restauração, as agências de viagem, ou outros domínios turísticos.

Mas para quem tem o seu negócio na internet, a fraca qualidade prestada pode fazer a diferença num mundo altamente competitivo. Ignacio Valls, o fundador da Honect, uma empresa de marketing digital que também cria websites, confessa que já teve o seu negócio mais afectado pela velocidade da internet. Hoje em dia é suficiente para o tipo de trabalho que desenvolve. Porém, não tem papas na língua ao afirmar que “em Macau não há escolhas em termos de fornecedor, ou seja, a CTM é como o Governo”. O empresário revela que mesmo que uma empresa queira fazer o seu próprio servidor, isso não é permitido.

O dono da Honect explica ainda que apesar de Macau ter um regime fiscal atractivo para o empreendedorismo, esse requisito também existe em Hong Kong, onde o serviço é muito melhor. Daí não ter dúvida de que “a fraca qualidade da internet não permite que Macau seja atractivo para negócios”.

Outro empresário do ramo da alta tecnologia, que não se quis identificar, confessa que costuma dizer que “um dos problemas mais graves que a sua empresa tem chama-se CTM”.

Também neste domínio, as promessas do Chefe do Executivo foram reiteradas durante a apresentação das LAG para 2018. “Iremos reforçar a supervisão dos serviços de telecomunicações, garantir a qualidade das redes e ampliar a área coberta pelas redes sem fio”, afirmou Chui Sai On perante os deputados. O dirigente máximo da RAEM reiterou que pretende “acelerar a elaboração do plano de desenvolvimento a longo prazo para o sector das telecomunicações, actualizando os respectivos diplomas legais e regulamentando a emissão e renovação de licenças”.

Preços altos

Outra das promessas anunciadas por Chui Sai On nas linhas mestras para os dois anos que restam da sua governação é a intensificação do desenvolvimento científico e tecnológico e o “incentivo à exploração de aplicações para dispositivos móveis inteligentes”.

Rui Pereira é um empresário que desenvolve aplicações, essencialmente “web based”. A fraca qualidade de internet afecta o negócio dos seus clientes devido à perda de performance, o que “é absolutamente dramático”. Ainda assim, o gerente admite que na maior parte das vezes os clientes têm consciência de que o problema está mesmo na internet.

Actualmente, Rui Pereira não se queixa do serviço, por conseguir desenvolver a sua actividade e por poder contar com a compreensão dos clientes. No entanto, há serviços que não consegue ter no território, nomeadamente ao nível de hosting. “Tenho de recorrer ao exterior porque não os consigo obter aqui, já para não falar que quando tento obter esses serviços em Macau os preços disparam de forma inacreditável”.

Rui Pereira não é, nem por sombras, o único empresário a passar por esta situação. Aliás, mesmo no domínio privado quem compra um pacote de internet de fibra, com a garantia de 300 Mb/segundo está longe de obter a performance de internet que comprou. No entanto, o consumidor não pode simplesmente anular o serviço e procurar outro fornecedor de internet… porque não há.

Para as empresas a qualidade não é o único problema. “As pessoas individuais não notam, porque os preços são ligeiramente mais caros mas aceitáveis. Mas para empresas é, para aí, 500 ou 1000 por cento mais caro do que em Hong Kong e na China”, revela Jorge Valente.

Esta é a principal razão pela qual a JV-Tech, tem todos os seus servidores fora de Macau. “Pelo preço que se paga nem vale a pena considerar”.

Sempre que o empresário tem um projecto novo, ou um trabalho em que o cliente tenha requisitos especiais, Jorge Valente pondera “se é mais viável pôr na China, Hong Kong, Singapura ou Tóquio”.

Oportunidade desperdiçada

Jorge Valente vai mais longe ao considerar que todo o esforço para diversificar a economia acaba por esbarrar nas coisas mais básicas. “A electricidade é mais cara, telecomunicações mais caras, velocidade e qualidade menor, quando estamos no mundo competitivo de empresas isto é incomportável e Macau acaba sempre por ficar atrás”, conta.

Aos poucos, são dados passos tímidos em direcção à tal cidade inteligente. “Vão-se fazendo umas coisinhas, mas muito pouco”, comenta Rui Pereira. O empresário acrescenta ainda que “Macau tem todas as condições para fazer um brilharete a todos os níveis, nomeadamente neste, porque há dinheiro, não faltam investidores para projectos, mas acaba-se sempre por fazer mais tarde que os outros”. A acção começa tarde e sempre para correr atrás do prejuízo e apanhar um comboio que já passou.

De acordo com dados do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, no ano passado Macau era o terceiro território do mundo com maior produto interno bruto per capita, tendo em conta a paridade com o poder de compra. Trocado por miúdos, um dos territórios mais ricos do planeta, apenas superado pelo Qatar e Luxemburgo. A oportunidade económica trazida pela liberalização do jogo e o superávit dos cofres do Executivo deveriam permitir contornar os obstáculos mais básicos com que os empresários locais se defrontam no dia-a-dia. Talvez a busca de talentos se deva fazer ao mais alto nível.

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