As afinidades colectivas

23/09/17

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]ue árido viver a solidão quando o sujeito insiste em afirmar-se de “uma só peça” -uma poça tem pouco enredo. Outra forma muito distinta ocorre quando o sentimento avulso de estar ilhado se torna apostila e nos refazemos em arquipélago, entrosados num feixe. Tem sido essa a minha experiência do “exílio”.

Isolado do meu meio ambiente “natural”, qualquer incidente ganha as perspectivas de uma categoria que se irisa ao vento, porque o mais leve tecido de dúvidas e expectativas nos compromete, gerando uma tensão dinâmica. Desabrocha aí uma energia, dir-se-ia desaforada, que desencadeia a paisagem interior que equilibra o que nos assalta pelos poros e o olhar parecia esgotar.

Contra a cronologia dos acontecimentos ergue-se então a trama luminescente das afinidades electivas e a realidade que nos sitia evola-se num ramo, confina-se. E onde antes só jorrava a imaginação agora associa-se a memória, num ajuste novo, o mais fecundo quando a memória é ejectada pela imemorialidade arquetípica.

Sem ficarmos livres do mal, já vivemos aí num universo paralelo, obliquamente simples, isto é plural, com uma consciência em arquipélago ou em continuada transumância.

É assim que imagino “o encontro” de Pessanha com Ruben Dario (1867-1916) como um outro eu, que nele fez carne, a carne do verso reminiscente. Nunca tinha lido o sul-americano com a devida atenção e as afinidades que confessa o poeta de Clepsidra em relação ao autor de Azul… encorajou-me. Ruben Dario, é simplesmente monstruoso, volve até perdoável a saturação dos cisnes.

E várias coisas são coincidentes. Começando pelos elos familiares, pois igualmente Dario padece do sentimento de que a sua origem é um desconcerto que engendrou desvarios: “A voz do sangue, escreve, que flácida patranha romântica!” Também ele escolhe viajar cedo e parte para o Chile, reside em Costa Rica e Guatemala; mais tarde rumará a Espanha, que encantará (como Pessanha em Portugal, exultam com ele os salões e os ágapes), em França é elogiado por Victor Hugo e prende-se de amizades com Verlaine e Gautier; desembarcará nos States… e a sua liberdade vai brotando de um patriotismo que, paulatinamente, se faz universal.

Igualmente em Dario, a sintaxe do poeta não é senão a matemática de sua música. E onde quer que esteja, apesar da absoluta seriedade do seu trabalho literário, não se entrega à vida como um literato e antes bebe e fuma e não hesita em empregar palavras fortes e o seu humor é truculento, sendo um dandy que frequenta a prostituição. Se num campeia o ópio, no outro há uma feroz entrega ao vinho e ao uísque, ao ponto da calcinação. A ambos interessa sobremaneira «desacreditar a realidade», posto que carregam a sua própria realidade consigo. E pede Dario Em Prosas Profanas: «Ámame en chino, en el sonoro chino de Li-Tai-Pe». E podia não ter escrito mais do que estes dois versos: «La onda, cuando el viento canta,/ llora.», que chegava.

Experimente ler a biografia Yo, Ruben Dario, de Ian Gibson, que hoje se baixa, free, na net.

24/09/17

O problema com a Catalunha é a existência de cinquenta bandeiras que aguardam por precedência para assomarem às janelas. Catapultada a Catalunha nas nuvens da independência suceder-se-á uma marcha de imensos esqueletos até aqui escondidos nos armários e que poderão significar uma pulverização de inúmeros países europeus.

Portugal deve à Catalunha a sua independência dado a Espanha em 1640 ter preferido manter a riqueza catalã à perfídia em que o carácter luso se transformara.

Também eu intelectualmente devo muito à Catalunha. Muito do precário pensamento que consiga elaborar, a nível filosófico, estético e cosmoteândrico, devo-o às drageias que fui recebendo de Barcelona. Eugenio Trías, para a filosofia, Rafael Argullol e Xavier Rubert de Ventós para a estética, Raimon Pannikar para a antropologia das religiões, e Pere Gimferrer, Joan Brossa e Gabriel Ferrater na poesia, são minhas referências quase diárias há vinte anos. Gostaria de saber o que Trías, a par de Ortega y Gasset, o grande filósofo hispânico do século XX, pensaria desta derrocada para que o estulto autoritarismo de Mariano Rajoy, que ele toma por destemor, empurrou o país.

Já não há recuo – sou a favor do referendo catalão. Com angústia, mas só depois se avançará com legitimidade para quaisquer tipos de negociações que esclareçam a nova relação entre as duas nações ibéricas.

26/09/17

No dia em que as mulheres são autorizadas a conduzir na Arábia Saudita – meu Deus, adivinho o abuso dos polícias de trânsito que aproveitarão para exigir às mulheres que tirem o tchador para supostamente conferirem o rosto do motorista com as fotos nas cartas – leio que o rapper norte-americano B. o B quer enviar satélites para o espaço para tentar encontrar a curva da Terra.

«O artista deu início a uma campanha de GoFundMe para tentar provar cientificamente que o planeta azul é mesmo plano e descobrir a curva da Terra, pois sustenta que se o planeta tivesse a forma circular isso seria possível perceber a olho nu.

Por isso. B. o B, pretende lançar satélites no espaço para refutar o que a ciência e a tecnologia têm como provado. Para dar corpo à sua ideia necessita de 200 mil dólares – 168 mil euros ao câmbio actual – e da autorização das autoridades, refere.»

Pois se a curva das ancas de uma mulher se percebe logo a olho nu, como pode a curva da Terra, que é muito maior, não se notar de imediato? E deve ser esmagador viver com a certeza de que triliões de imagens manipuladas nos querem enganar, de que não há um cientista ou um astrónomo de confiança no mundo! E porque mentem tanto o Papa e os telescópios? A lua é chata como uma moeda!

A mim choca-me que um artista tão grande venda tão poucos cds que precise de pedir emprestado 200 000 dólares. Estou devastado!

Eu por 250 000 dólares provaria que a Terra tem a forma da popa do Elvis Presley. Só elucubra quem pode!

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