O Corpo Nu esse lugar incivilizado onde cresce a febre

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]élia Correia escreveu “ADOECER”, uma tragédia contemporânea que fala da insanidade e da dor dos amantes irredutíveis, e da arte, esse lugar da exceção, da insanidade da radicalidade da vida arrancada para fora da convenção perante o mundo também ele doente, pesa embora o amparo da vida comum esperada, quase higiénica, civilizada, onde afinal a doença também cresce, sempre mas mais modesta, menos catártica, mais aceitável, comedida.

“ADOECER” esteve em cena entre os dias 15 e 18 na Sala de Ensaio do CCB com encenação e dramaturgia assinada pelo Miguel Jesus, numa coprodução  do teatro “ O BANDO  com o Centro Cultural de Belém.

O tom geral é do ausência de luz, os corpos a habitar o flagelo dos nervos sensíveis, nessa realidade telúrica da recusa da convenção que escava fundo o caminho do abismo no fio cortante das emoções com sangue dentro.

A maquinaria expositiva coloca em cena a figura do narrador, que comenta e conduz a narrativa que nos fala da radicalidade da sua relação amorosa de Elizabeth Siddal, modelo, pintora e poetisa, com o pintor e poeta Dante Gabriel Rossetti, vivida na segunda metade do séc. XIX, alicerçada com a figura do coral. Encena a prestação exemplar da heroína trágica, a mulher que assume e escolhe a derrota como fim, coadjuvada pelo protagonista, o pintor, na demanda iniciática do mito de Pigmalião, não já na forma do simulacro da estátua que se torna viva com o favor dos deuses do escultor cipriota, mas no da relação entre modelo e representação, mestre e iniciada, em que a arte ocupa a totalidade da vida.

Vive-se a ruína da conformidade mimética entre modelo e representação. O corpo táctil é o objecto artístico na sua eficácia do desejo, da dimensão erótica-sexual  transgressiva dos modelos socialmente aceites como padrão da relação amorosa. O abismo da morte é pré-anunciado, e a maquinaria cénica e interpretativa consume esse anúncio e fim adivinhado.

Aristóteles , no que nos chegou da sua “Poética”, diz-nos que a “ tragédia é a imitação de uma ação elevada, dotada de extensão, numa linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma das suas partes, que serve da ação e não da narração e que, por meio da compaixão e do temor, provoca a purificação de tais paixões”.

O texto e a dramaturgia, bem como trabalho corporal dos actores, segue com exemplaridade esta definição proposta e até hoje aceite. A encenação é criativa e eficiente, nos desempenhos tem particular destaque a protagonista Catarina Câmera, com um diapasão expressivo da mais interior contenção à explosão catártica, num encontro conseguido entre o movimento coreografado da dança contemporânea com expressão e carga emocional que remete para o teatro de texto. De igual modo o trabalho físico do actor Miguel Moreira, na fronteira do hiper acting, é um esforço assinalável assim como o desempenho a todos os títulos superlativo da narradora Sara Castro.

O contexto da narrativa é o núcleo mítico do movimento pré-rafaelita inglês. O texto de Hélia Correia tem como eixo de partida a pintura “Ophelia” (1852) de John Everett Millais. Por aqui percorrem sombras de Shakespeare, da Beatriz de Dante Alighieri, na construção do texto que tem como figura central Elizabeth Eleanor Sidda/Lizzie, a modelo do quadro “Ophelia”.

Importa uma nota final sobre os músicos actores em palco, e música gravada, uma partitura que vai do clássico ao rock gótico, sem esforço, servindo sempre com eficácia a proposta estética e dramatúrgica.

Onde entra o cinema? É uma pergunta que pode ser feita dado ser esse o foco do que aqui escrevo. No trabalho de luz e sombra a matéria primeira do cinema, na contaminação com o cinema expressionista e ao cinema “noir”.  Numa cena do coro, um actor mimetiza os movimentos de Boris karloff no monstro Frankenstein ( 1931) ,  ou ao cinema de Jean Cocteau, de “ The Blood of a Poet” (1930), “Beauty and The Beast” (1946). Que o cinema contamina todas as artes e a vida, não é revelação nova.

No “ ADOECER” de Hélia Correia e nesta encenação e dramaturgia do Miguel Jesus, o corpo nu é o lugar do incivilizado, que ameaça e é ameaçado pelo corpo social estabelecido na sua radical afirmação.  Inflama-se a si mesmo e coloca-se em estado febril da doença. Ousa deslocar o lugar do vício e da virtude, torna-se ameaça, uma quase impossibilidade nestes nossos quotidianos ordenados, limpos sempre que possível de bactérias e vírus que possam ameaçar o bom comportamento social. No entanto a vida hospitalar também não se aconselha, os hospitais são territórios contaminados, é imperioso fugir a todo o custo. A Doença é dupla, tem lugar na sociedade com cartografia emocional com legitimação assegurada em guichés de bons comportamentos e na radicalidade dos nervos contaminados por sangue desobediente.  É neste paradoxo que se caminha, e a função da tragédia, como Aristóteles nos disse,  “é provocar a purificação de tais paixões” .  A mais recente criação do teatro “ O bando” , fala-nos disso, com excelente mestria artística.

A partir do romance de Hélia Correia

Miguel Jesus dramaturgia e encenação

Rui Francisco cenografia

Jorge Salgueiro música

Clara Bento e Sara Rodrigues figurinos e adereços

João Neca assistência de encenação

João Cachulo/ Contrapeso desenho de luz

Raquel Belchior produção

Nisa Eliziário assistência de produção

Com Catarina Câmara, Miguel Moreira, Sara De Castro e convidados especiais Antónia Terrinha/ Juliana Pinho, Bibi Gomes/ Raul Atalaia, Carolina Bettencourt /Rita Brito, Nélson Boggio/ Guilherme Noronha, Nuno Nunes, Paulo Campos dos Reis/ João Neca, Ricardo Soares/ Miguel Jesus e Rui M Silva

músicos Carlos Lourenço, Eurico Cardoso e Nélson Ferreira (ao vivo) e Bizarra Locomotiva (gravado)

Coprodução | Teatro O Bando | Centro Cultural de Belém

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