Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasTrabalho de casa II António Cabrita - 31 Ago 2017 26/08/17 [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]onfesso que os princípios estéticos taoistas me trazem um tópico que me fascina: o isomorfismo. Potenciar ressonâncias em sistemas distintos pressupõe a existência de isomorfismos – uma similitude de estruturas, como nos fractais, entre os diversos seres, níveis de realidade ou sistemas – e ilustra o velho postulado chinês da harmonia universal. É o que acontece naquela célebre história em que Tzang Tsu e Hui ’Tzu atravessam uma pequena ponte e desatam a discutir sobre como pode Tzang Tsu avaliar se os peixes que nadam e cabriolam na torrente se sentem felizes. Ao que sage responde prontamente: Eu conheço o gozo dos peixes no rio pelo gozo que eu sinto ao caminhar junto do mesmo rio. Entretanto, para que se perceba como o potencial estético do isomorfismo não está refém do mimetismo, piquei em Chesterton um exemplo que me delicia: Um homem que se apega à literalidade das harmonias, que não associa as estrelas senão com os anjos, ou os rebanhos com as flores primaveris, arrisca-se a ser bem frívolo, porque se limita a adoptar um só modo a cada momento; e passado esse momento ele pode esquecer o modo em questão. Mas um homem que se esforça em conciliar os anjos com os cachalotes deve, por seu lado, ter uma visão bastante séria do universo. Esta formulação afere a seriedade dos processos em muita poesia moderna, tantas vezes tão incompreendida: os anjos e os cachalotes não devem andar de costas voltadas – ainda que tenhamos que fazer as ligações porque elas não nos são dadas. Em suma, a poesia obriga-nos a sondar novas associações intelectivas que desencadeiam uma multiplicidade de relações nunca entrevistas, numa dinâmica que não se fecha mas se estua. Ou como diria o Chillida, sobre a arte, mas extrapolando-o para a poesia: trata-se de fazer luz onde estava escuro, o que nos empurra continuamente para fora da lógica do discurso em que nos movíamos, para vermos iluminados âmbitos novos. Se quiserem, a metáfora que traduz a transversalidade isomórfica é o passe vertical no futebol, que produz uma economia de tempo ao conectar automaticamente vários níveis do campo. Eis um bom ponto de partida para compreender o que a poesia nos ofereceu desde Baudelaire e para nos aquietar quando constatamos que a posição da arte é quase sempre um desmentido à posição do discurso (- ó Lyotard, estás bom, rapaz?). É no que creio e só por aqui começo a compreender como anjos e cachalotes rimam. 27/08/29 Provavelmente tudo o que vou dizer na palestra sobre Camilo Pessanha, dia 5, em Macau, seria desmentido pelo que se vazou nesse mítico caderno desaparecido do poeta de que alguns falam com, pasme-se, sete mil páginas. Confesso que suspeito desta cifra, não lhe encontro grande nexo. Sete mil páginas correspondem a catorze resmas de papel, seria uma árvore maior do que a floresta, e que não se deixaria ver. Provavelmente, na sua aludida letra pequenina, eis a hipótese que me parece plausível, João de Castro Osório viu sete mil linhas e cometeu um erro de simpatia. O que a trinta linhas por páginas daria algo como duzentas e tal páginas, um número mais viável. Mas preferia ser desmentido (tenho este carácter mole, que não se importa nada de ser desmentido) e que à chegada a Macau me contassem que o tufão da semana transacta removeu umas lajes e se encontrou embrulhado em couro o caderno perdido do Pessanha. Eu acredito em Shangrilá… 29/08/17 Prófugo, solerte, adrede, enteléquia: palavras com as quais não teço qualquer empatia, modo de emprego, sinal de apaziguamento. Já cem vezes as soube, já cem vezes as perdi, não pertencemos à mesma comunidade. Puro mármore, não me entram no sangue. E mais duas centenas delas, vieram-me agora estas, como se fossem o primeiro sintoma de um Alzheimer a vir. Há palavras de que não nos apropriamos, é caso para dizer, nem mortos. Cada um imagino ter as suas. Bom, para minimizar, sirvo-me de um dito de Bachelard, «Se dois homens se querem entender verdadeiramente, têm primeiro que se contradizer», que afinal até é o princípio das comédias românticas. Porém, elas não se dão ao trabalho de me contradizer – repelem-me. Se é assim com as palavras, pressinto que seja totalmente artificial qualquer ideia de comunidade. Um sentir comum, eis uma afecção a que sou ligeiramente avesso. Pontualmente sim. Mas de forma mais prolongada incomoda-me estar entre pessoas que não desapegam e nunca querem estar sós, no anonimato, ou entre dissonâncias, e que se pelam por montar discursos muito articulados sobre a necessidade de estar em grupo. Pessoas sempre a subir os estores e que para tudo acham argumento e nunca gaguejam e prosseguem juntas até ao fim, sem nunca se despedirem. Nunca tive um só grupo de amigos ou um só tipo de amigos. Nunca me adaptei a grupos, do mesmo modo que um cardume grande de palavras da minha língua nunca me adoptou. Ardem-me nos olhos as coisas que não sei nomear, mas uma palavra que mil vezes se relaxa no balde das coisas recalcadas, à qual só volto a encontrar irritantemente por acaso no velcro de uma página, que pretende senão capacitar-me de que nunca deixei de estar só? Creio que somos um quarto sem ninguém reflectido nos espelhos. Quando alguém aparece na superfície prateada há festa. Mas é como uma batida rítmica, tem intervalos. Querer mobilar o quarto com uma multidão não neutraliza a mudez do espelho. Mesmo que seja um espelho de Veneza. Pode ser lancinante o sentido comum e raramente uma partilha que é de todos e para todos é justa. E receio que a sociedade da comunicação se esteja a transformar numa sociedade holística, numa daquelas comunidades que se concebem a si mesmo como um todo. Mete medo! Um dia destes só temos por nós as palavras que não nos gramam. Que elas nunca transijam! Eu por mim abomino-as!