Celina Veiga de Oliveira, historiadora: “Aqui ainda se respira um aroma português”

Viveu quase 20 anos em Macau e, quando regressou a Portugal, Celina Veiga de Oliveira levou o Oriente consigo. A historiadora guiou o HM por três séculos do “ténue equilíbrio” das relações sino-portuguesas, que culminam nos dias de hoje. Traz na bagagem um livro sobre uma figura histórica de Macau, intitulado “Carlos D’Assumpção – Um Homem de Valor”, que apresenta no Albergue SCM no próximo sábado

[dropcap]P[/dropcap]rivou de perto com Carlos D’Assumpção. Descobriu alguma coisa nova sobre o homem durante a pesquisa para o livro?
Esta pesquisa já foi feita há muito tempo. Conheci muito bem o Dr. Assumpção, ele morreu em 1992, eu cheguei cá em 1980 e nesse período de 12 anos ele era, sem dúvida alguma, a figura mais prestigiada de Macau. Era presidente da Assembleia Legislativa. Era um senhor, ao estilo daqueles conservadores britânicos, sempre muito bem vestido. Uma pessoa muito elegante fisicamente e também de cabeça. Era um cavalheiro. Quando cá cheguei, fui professora de liceu e dei aulas ao João, o seu filho, uma pessoa pela qual tenho um afecto especial. A Dr.ª Nini Assumpção, a sua mulher, foi médica das minhas filhas desde pequeninas, isso também nos aproximou um bocado. Conheci o Dr. com alguma proximidade, frequentava a casa dele, fui a muitos jantares. Ele, normalmente, jantava tarde e gostava muito de estar rodeado de amigos. Era um grande conversador, com muito sentido de humor, apesar de ser uma figura muito respeitada. Como todos lhe tinham muito respeito, nem toda a gente pôde aperceber-se dessa faceta bem-humorada que tinha. Era uma característica da sua personalidade e uma prova da sua inteligência.

Como é que Carlos Assumpção, um político conservador, viveu a década de 60 com a revolução cultural em plena ebulição aqui tão perto?
Os anos 60 em Macau foram de grande turbulência. Quando foi o 1,2,3, o Dr. Assumpção ainda era novo e foi um terramoto político muito grande. Os ecos da Revolução Cultural chinesa sentiram-se cá. O Governador Nobre de Carvalho, coitado, tinha acabado de chegar, e quando uma pessoa chega a Macau é muito difícil apreender logo toda esta diversidade de ideias. O Dr. Assumpção participou nas negociações mas teve de as abandonar, porque tinha uma posição de firmeza e, provavelmente, devem ter considerado essa postura perigosa. Era necessário uma pessoa mais consensual. No entanto, o consenso, que é uma característica da personalidade do Dr. Assumpção, depois veio a manifestar-se toda a vida, até ao fim. Ele foi uma pessoa que serviu sempre de mediador entre as duas comunidades.

Como explica não ter havido nessa altura, e noutras, derrame de sangue?
Isto nunca foi uma colónia, a situação de Macau e Hong Kong têm um processo histórico diferente. Há uma frase, que talvez não consiga citar bem, de Franco Nogueira que diz que isto é uma espécie de condomínio. Macau sempre foi uma coisa especial, desde a altura em que cá chegámos, no século XVI. Nunca tivemos plena soberania, era sempre partilhada, houve sempre um equilíbrio ténue com alguma capacidade diplomática. O século XVIII talvez tivesse sido o período mais frágil do poder político português. Isto porque a China atravessou um período forte, com os três grandes imperadores chineses do século XVIII. Aqui havia dois pontos de poder. O poder dos mandarins de Cantão e o poder imperial, e muitas vezes esses poderes não eram, propriamente, coincidentes.

Mas houve forma de ir equilibrando os pratos da balança.
Tivemos sempre uns diplomatas fantásticos, os jesuítas. Muitas vezes quando Macau tinha proximidade mais directa com Pequim, isso não era muito bem visto pelos mandarins. Esta proximidade de Pequim em relação a Macau, por vezes, entrava em conflito com os interesses de Cantão. Ao contrário, se tínhamos ligações mais estreitas com Cantão, esvaziava-se um bocadinho a nossa proximidade ao Império. O século XVIII foi difícil porque sentiu-se muito o poder mandarínico, através de legislação e restrição do comércio. O porto de Macau só podia ter um contingente de 25 barcos, se algum de estragasse e fosse necessário um novo, tinha de ficar com o registo do antigo. Era tudo muito controlado.

Entretanto, o cenário muda de figura.
O século XIX foi diferente. Por razões conjunturais, que não têm propriamente que ver com Macau, os portugueses puderam assumir um certo controlo. Houve a Guerra do Ópio, que acabou com a derrota humilhante da China e que culminou com a cessão de Hong Kong aos britânicos. Certo é que os portugueses aqui de Macau, por estarem perto de uma ilha ocupada por europeus, sentiram algum conforto. Em caso de necessidade podiam pedir protecção. Nessa conjuntura, era preciso que Macau ficasse munido de certas condições que Hong Kong tinha, para não desaparecer completamente. Então, D. Maria II implantou o porto franco de Macau, à semelhança do porto franco de Hong Kong, e as mercadorias podiam circular. Hong Kong sugou muita da energia económica de Macau, tivemos de mudar alguma coisa. Depois veio para cá o Governador Ferreira do Amaral que resolveu aplicar o domínio, a soberania portuguesa aqui em Macau, e pagou caro por isso, tendo sido assassinado. Isso fez, outra vez, tremer a posição de Macau. Mas continuámos cá, a presença portuguesa nunca teve interrupções. Este ano é o aniversário do primeiro Tratado entre Portugal e a China sobre a situação de Macau, que legitimava uma soberania limitada. O Tratado de 1887 trouxe uma alteração do estatuto político, que nos deu um bocadinho de alívio, apesar de continuarem os problemas quanto delimitações de Macau.

Entretanto, chega o século XX, a turbulência política e as guerras.
O século XX foi a afirmação do Partido Comunista Chinês, mas houve sempre aqui na parte sul, sobretudo em Cantão, uma afirmação nacionalista. Os próprios jornais de Cantão falavam sempre que os estrangeiros de Macau deviam sair, que isto era território chinês. Apesar do Tratado, Macau ficou sempre a ser um foco de conflito e reivindicação.

Como é possível, em plena Revolução Cultural, a China permitir um território ocupado por um país com um regime fascista?
Para já porque não lhes interessava, na altura, criar outro foco de conflito. Eles são muito pragmáticos. Mas havia algo sempre latente, subliminar. Mas o pragmatismo chinês também vem de uma noção de tempo diferente. Nós, ocidentais, temos a noção de tempo diferente de um chinês, somos muito impacientes. A questão de Macau teria de ser resolvida de acordo com o tempo e o modo que eles definissem. A Revolução Cultural, claro, tinha de ter ondas de choque aqui. Nessa altura, isto tremeu de facto. Mas depois, com alguma cedência da parte do poder português, a coisa, de certa forma, apaziguou-se. Mas as pessoas lúcidas daquela altura tinham a certeza de que a isto teria de ter um estatuto diferente num futuro próximo. Era inevitável e seria irreversível.

Em 1999 regressa a Portugal. Presumo que se lembre bem do momento da partida?
Lembro-me perfeitamente. Trabalhei tanto naqueles últimos tempos que tinha alguma vontade de regressar a Portugal, estava um bocadinho cansada de tanto trabalho. Mas em termos emocionais foi terrível. Tive de pensar: “Tens de pôr em prática alguma lucidez oriental, vive o dia de hoje, não penses muito no que vai ser amanhã, não penses muito que tens de te ir embora e procura esconder a emoção, procura amuralhar a emoção”. Preparei-me durante meses para que nos últimos momentos a minha emoção, o meu coração, estivesse preservado de emoções, porque tinha receio da minha reacção. Preparei-me psicologicamente para esse momento. Procurei vivê-lo, sempre muito desperta, mas sem interferência emocional, que depois veio em Portugal. Lembro-me de dizer, há muitos anos, que nunca mais poderia ser só de um sítio. O nosso coração fica dividido e tem de dar afecto a Macau, mesmo depois de regressar a Portugal.

Por que regressou a Portugal?
Tinha lá as minhas filhas e alguns problemas familiares para resolver. Não sei se foi boa opção. Estou em Portugal mas, sem querer exagerar ou ser piegas, não há um dia que não pense em Macau. Sou membro da Sociedade de Geografia de Macau, que está dividida em comissões, e eu sou vice-presidente da comissão asiática. Estou sempre com o pezinho no Oriente, sempre. Durante 13 anos, tive uma editora, a Tágide, e os temas fulcrais, a linha editorial que prevaleceu, era sempre o Oriente.

No sentido inverso, como é regressar a Macau?
Regressar é sempre uma emoção. Chego e aqui e fico espantada com as coisas novas que apareceram. Havia ali na Doca dos Pescadores uma espécie de um vulcão, até achava aquilo um bocado feio. Já lá não está. Noto que aquela parte junto ao mar está em completa e em contínua actividade, com mais terrenos conquistados ao mar. A primeira vez que regressei a Macau foi em 2000, poucos meses depois ter partido. Nessa altura, senti um ambiente um bocadinho estranho, embora os meus amigos chineses me tivessem acolhido muito bem. Mas, por exemplo, ao ver a fachada do Leal Senado fiquei triste por não ver o escudo português, mas temos de compreender. O que é que podemos fazer? Não podemos estar a chorar sobre as pedras da calçada, porque isto era natural.

Sente que a mudança foi assim tão grande?
Houve muita coisa que a RAEM preservou. Apesar de ter mudado a ordem da toponímia mantiveram os mesmos nomes, assim como a calçada portuguesa. Aqui ainda se respira um certo aroma português. No entanto, estamos a aproximar-nos de 2049. De acordo com a Lei Básica, a língua portuguesa é uma das línguas oficiais. Neste capítulo, a realidade não é assim tão forte como aquilo que está no papel. Esperemos que o bom senso prevaleça. O povo chinês e o poder político que vem de Pequim têm mostrado bom senso e respeito. É complicado o português sobreviver, mas vamos ver, enquanto estiverem cá portugueses, jovens que queiram cá ficar, isso é muito bom. É uma maneira de se continuar a falar a língua de Camões em Macau. Isso é que é bom, gente nova!

Aproveitou para matar saudades de Macau?
Tive oportunidade de ir passear com amigos, alguns que nunca tinham cá estado, pela Macau que eu gosto. Sem nostalgia, também gosto de movimento. Mas aquela Macau romântica, em que ainda há partes da velha muralha que dividia a cidade cristã. Fartei-me de andar e foi uma tarde muito boa. Andámos pelos becos e ruínas dessa Macau, que ainda é a do nosso tempo. Está cá e tem um lugar muito privilegiado no coração dos portugueses.

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