Falhar menos

02/02/17

[dropcap]N[/dropcap]ão escrevo para que me interpretem. Como Melville acredito que o mundo e o mistério são maiores que eu. Há, por isso, momentos em que uma leve sintonia me faz bem como quando leio numa conferência de Foucault de 1966, intitulada O corpo utópico, que o pensador francês opõe a utopia ao corpo. Diz ele que «o corpo é o único que não se pode trasladar para um espaço imaginário perfeito», porque todas as manhãs o espelho mostra-me mais calvo e que os músculos me caem lassos e a pele começa a ter manchas inarredáveis e que o que se passa com o meu corpo se afastou milhas do modo com que imagino todas as minhas construções. Ou seja, o que eu idealizo e por outro lado a minha presença que, dia a dia, se desvanece. Bom, a clivagem desta consciência toda a gente a adquire por experiência própria. Até aí nada de novo. O que me parece inédito é a chamada da utopia para um contraponto com o corpo, habituados que estamos a localizá-la no campo das ideias. Seja pois a utopia o inverso do corpo, a sua sombra: isto supõe que todas as outras ideias, porque menos radicais, se inscrevem no corpo, florescem à margem do seu desgaste, como órgãos, extensões daquele, ou vidas virtuais possíveis, para o que aprende a ausentar-se. Suponho que esta será a melhor das maquilhagens.

Em relação a este aspecto são interessantes as reflexões com que Michel Onfray demonstra a presença do corpo (ou a sua censura) no delineamento do pensamento, mesmo em Deleuze, que quis teorizar o «corpo-sem-orgãos».

05/02/17

Nina Simone, vi-o agora, teve direito à sua biopic. Vale o filme o que vale a sua intérprete – Zoe Saldana, magnífica – e por três ou quatro pormenores que iluminam uma vida e as suas circunstâncias. Uma entrevista na rádio de Nina com um jornalista francês funciona como a vértebra do filme, voltando-se repetidamente a ela; a uma pergunta sobre porque decidiu Nina ir viver para França, onde é adorada, Nina responde: “A América falhou. Falhou com o meu povo, e comigo. A América falhou como país”. Fala evidentemente do racismo. Noutro filme sobre Miles Davis, o genial trompetista, que a dado momento se exilou em Paris, onde é idolatrado como artista, também diz que na “cidade luz” vive uma liberdade que nunca conheceu na América. A América falhou.

Se formos vinte anos atrás, à história de Josephine Baker temos outro exemplo de uma vida extraordinária e fustigada pelo racismo e que encontra em Paris o porto de abrigo. Porque em Paris é respeitada e no seu país era perseguida. Três exemplos que atravessam um século mas que atestam pelo menos que a meritocracia na Europa tem menos cor – é de artistas que falo, gente comum terá mais problemas, mas o modo como se tratam os artistas é um indicador civilizacional.

Entretanto sabemos: a América de Obama falhou, a América de Trump, já se viu, vai falhar melhor. Hoje, no essencial, o racismo mudou o seu foco mais encadeante, é menos étnico que islamofóbico, contudo, o que está em jogo nas eleições europeias deste ano é saber se a Europa – que, na generalidade, resolveu melhor a condição pós-colonial que a América as suas tensões internas – vai continuar a ser um porto de abrigo ou se as restrições que decorrerão de resultados contrários aproximarão a Europa de um modelo afim do americano, racista, xenófobo e áspera e orgulhosamente clivado. Às vezes era preciso falhar menos.

06/02/17

A descoberta dos sete exoplanetas semelhantes à Terra, com possibilidades de ter água, excitou meio mundo. Era uma descoberta que faltava à necessidade de descomprimir a solidão do homem no vasto, álgido, universo que nos rodeia. Digamos que, no meu caso, foi o modo mais feliz da realidade contrariar o convincente mas terrível diagnóstico que o ensaista de arte e poeta de Barcelona, Rafael Argullol, fez em Maldita Perfección/ Escritos sobre o sacrifício y la celebración de la belleza (2013), e que nos colocava à beira de uma depressão irredimível. Num texto intitulado A Solidão de Shakespeare, Argullol sustenta o seguinte: «Nenhum poeta posterior ao século XVII teria podido escrever como o fez Shakespeare sem ser acusado de inverosimelhança total. Se um escritor actual, por exemplo, vinculasse as paixões humanas a supostas paixões dos astros, ventos ou moléculas, seria justamente culpável de um maneirismo que lhe faria perder toda a eficácia literária. Ninguém imagina um cenário deste tipo como campo metafórico de um poeta contemporâneo. Todo o contrário acontecia com Shakespeare, cujo enorme potencial de metáforas há que entendê-lo, em boa medida, como consequência da sua disposição, convergente com uma consciência todavia era da sua época, para enlaçar os fenómenos da natureza humana com os fenómenos do conjunto do cosmos». E a seguir Argullol mostra como a grande fronteira do espaço se revelou um poço sem fundo: «Inalcançado qualquer indício de diálogo, nunca como agora parece evidente a consciência de solipsismo. O homem é um relato sem ouvintes no qual se conta o seu solitário protagonismo no mundo».

E esta viragem das esperanças antigas para um horizonte tão abissal como mudo, este confinamento, imaginei eu a partir da leitura de Argullol, foi desde a desilusão da aventura espacial, destapando (como uma Caixa de Pandora) todas as depressões, com correspondências visíveis desde a sensação de uma «falta de alternativas políticas», à crença de que os fármacos podiam substituir a psicanálise, até à suposta incapacidade da poesia sair do beco do quotidiano: atravessávamos um mundo sem exterior fora da alucinação, sem saídas, gélido e destituído de – lá está – utopias.

Esta descoberta da astronomia, de sete planetas com condições para ter vida, devolve-nos um ponto de fuga, uma ilusão que nos faz de novo exigir o impossível: a derrota das distâncias insalváveis.

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