Arquitectura e poética 

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Maputo existe um hotel, o Taj Mahal, onde os mictórios do bar se localizam exactamente por trás do balcão da recepção. E a porta de tal fétido lugar tem de há muito os gonzos enferrujados pelo que a primeira visão que algum hóspede pode ter, quando faz o registo de entrada ou pede a chave do quarto, será a de uma morcela que urina.

Será igualmente um modo insólito para se entrar no teor desta crónica que pretende dar conta de uma feliz exposição de arquitectura que inaugurou em Maputo, mas através do bizarro exemplo talvez se entenda a oportunidade de uma verdadeira lição de arquitectura numa terra que foi perdendo qualquer noção do que seja um plano urbanístico, a ordenação do território, o respeito pelos planos directores das cidades ou a adequação arquitectónica.

A exposição é de José Forjaz, o arquitecto decano no país, que aos 84 anos, decidiu mostrar 40 projectos não edificados, no Instituto Camões.

Numa nova deriva prévia, vou contar o que me aconteceu na ida à casa de uma amiga. Ela não estava e fiquei na sala à espera dela, a espreitar a estante. E então aí vi um livro que se chamava “How to think like Leonardo da Vinci”. Fiquei estarrecido. Eis que nos impingem métodos para chegar instantaneamente às vistas largas do Leonardo sem termos de passar pelo esforço de subir à montanha, aplainando de imediato o terreno. O que acontece é que o vale altíssimo a que ele chegou e a percepção que aí ganhou era indissociável do processo da subida, das dificuldades e dos conseguimentos na escalada e nenhum livro de 300 páginas, que se lêem em oito horas, supre os quarenta anos da subida, as vicissitudes, os méritos e os sentimentos frustres que tanto acompanharam o Leonardo no seu percurso. E só aí, na sua provação, pôde converter o estudo das topologias do terreno que tanto o cansaram em vantagens e conhecimento.

Ora a lição que se tira destes projectos no papel de José Forjaz, considerado internacionalmente como um grandes arquitectos de África, é o seu flagrante aspecto totalizador. A relação com a arquitectura é aqui pensada de um modo total – fazendo convergir no esquisso todos os aspectos da relação do homem com o ambiente e a paisagem, o corpo, o espaço físico, material, a memória tangível ou intangível dos lugares, o solo, a meteorologia, a antropologia, a economia, a energia, a estética, a funcionalidade, a geomancia, etc., etc. Ou seja, só a idade faz o arquitecto – não há recurso à mentira.

Vamos agora ao aspecto poético.

Não se confunda poético com estético, que pode ser a sua declinação em estereotipo, em cânone. O que em rigor é bom como aquisição vernacular imediata mas é sempre mau quando uma conquista expressiva se torna hábito.

O poético não é um mero jogo das formas, é uma relação mais profunda e exige, entre outras, duas características basilares. Uma delas, assenta naquilo que a arquitectura partilha com as outras artes, o ritmo.

O ritmo está para a arquitectura como as estrofes, as rimas e as aliterações estão para o poema. Mas também acontece que de uma forma plástica a arquitectura nos traduza, por vezes, acordes musicais. Um poeta espanhol, o José Bergamin chamava à tourada a “música calada”. Não está mal visto, mas podemos deslocar esta definição, se calhar até com mais propriedade, para certas obras de arquitectura.

Outro atributo da poética é especificamente arquitectónica e define-se pela empatia revelada entre o projecto e o lugar, numa espécie de co-nascimento retroactivo.

Bom, o sentido de uma paisagem, o que estrutura o seu campo visual, não resulta de uma análise intelectual dos elementos que a compõem mas de uma apreensão sintética das relações que os unem. É como se a paisagem ajudasse o seu espaço construído a encontrar a sua verdade perceptiva.

O José Forjaz que num seu texto fala sobre as relações entre a arquitectura e a medicina não poderia deixar de ser sensível a este aspecto.

A poética, nestes projectos, encontra-se no encontro entre a experiência sensível de estar diante da paisagem e de se tornar evidente que o espaço construído fala com ela, ou melhor que ele diz o que a paisagem queria dizer de si mesma.

Este sentido inscrito no sensível é mais do que uma troca, ao mesmo tempo material e cultural, que se estabelece entre o homem e o seu meio, é entender o mundo como uma ressonância em que todos os elementos interagem para dar mais do que a soma do todo.

Isto até pode acontecer de maneiras muitos diferentes. Pode dar-se por “substracção”, como na Casa de Chá, um projecto para o Japão, que ilustra a crónica, em que a transparência se funde no espaço em vez de lhe impor intrusamente um volume, ou noutro exemplo, este construído, no caso do Memorial de Mbuzini, erguido no lugar onde se deu o acidente de avião que vitimou Samora Machel, em que um dos elementos estruturantes para a idealização do memorial foi o vento, tão presente na colina. O que deve ter sido compreendido por muito poucos.

Mas é por isso que uns são dotados de poética e outros não.

O mais vulgar exemplo desta espécie de simbiose ou de sentimento-paisagem é a célebre Casa na Cascata do Lloyd Wright. Aquela casa enriquece a paisagem, era como se a cascata tivesse corpo mas lhe faltasse algo, houve a partir dela um co-nascimento, algo mais do que uma simples correcção sintáctica. A cascata e a vivenda mobilizam um traço de união entre o espaço e o espírito.

È o mesmo que eu encontro por exemplo no projecto do Museu de Arte Tomihiro, no Japão, um museu destinado a duas artes quase intangíveis, a aguarela e a poesia (cf. em Caliban.pt)

Aqui só lamento que a tecnologia não permitisse ainda ao José Forjaz ter posto o museu a levitar sobre a encosta, sendo aliás ao que o projecto propende.

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