Deus é o nada a olhar-se ao espelho

[dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]itornelos, Abysmo, 2014, é o primeiro e único livro publicado pela poeta Joana Emídio Marques, até à data. O livro é composto de três partes: “Ritornelos”, com 52 poemas; “Cânticos da Floresta”, com 14 poemas; e “Litanias”, com 8 poemas. E entre cada poema da primeira parte do livro encontramos as belas ilustrações de Bárbara Fonte (nas duas partes finais do livro, as ilustrações aparecem no início e não entre poemas).

Uma vez mais, o título do livro dá-nos alguma indicação fenomenológica acerca daquilo que nos mostra. Ritornelos é um termo musical (dois pontos seguido de uma barra vertical), que indica a repetição de uma parte da partitura, isto é, a repetição da sua execução musical. Pode também tratar-se da indicação de um refrão. Aqui, e partindo da sua função musical, a palavra remete para uma ideia próxima da do devir e não da repetição, como se se tratasse da vida como uma repetição infinita, mas sempre diferente. Em suma, um voltar atrás, não da mesma maneira – isso seria um eterno retorno – mas sempre de modo diferente. Múltiplos modos diferentes e nenhum melhor do que o anterior, pois trata-se de um devir sombrio, como se o infinito ou a repetição do infinito não passasse do eco de uma gargalhada de Deus: “(…) tudo isto / que se repete repetindo-se / eco da gargalhada de Deus.” (p. 51) O devir aparece-nos logo nos primeiros versos: “Acordando infinitamente / para o que há-de vir / (…)” Embora seja ao ritornelo 25, da primeira parte, página 57, que o devir se assume em toda a sua pujança:

O que se torna tempo
não poderás somá-lo
é abissal e infinito
esperar que nasça o princípio
no interior do que só vês de fora.
Não, não podes somá-lo
entre os dedos idênticos
nem à verdade nem à carne,
o que se torna tempo
é este exacto instante
que se cumpriu
se perdeu.

O termo devir aparecia já à página 47: “como se soubesses o devir do tempo / (…)”. Não há, contudo, ou parece não haver um sentido positivo neste devir, em Joana Emídio Marques. O devir é negro, sombrio, onde a morte mesma não é abrigo. Escreve à página 29: “O Ser não devolve o não Ser / o símbolo não devolve o sentido.” Ou ainda nos versos finas do poema à página 63: “Um homem cai / num buraco aberto pelo tempo / mergulha / na láctea corrente de lírios e desaparece. / Depois outro e outro ainda / até não haver qualquer rumor / que  não seja o da Babilónia / bebendo sofregamente / na corrente fluvial os lírios de leite.” Esta presente consciência da perda, contínua consciência de uma falta de sentido, ou pelo menos de uma qualquer possibilidade de alcançá-lo, vê-lo-emos melhor no final deste texto. Por ora, mostremos como no humano, a única possibilidade de fuga, que seria a invenção do outro, a transformação do outro numa amplificação do eu, acaba sempre por se virar contra nós, porque é sempre nas palavras e na necessidade que elas têm de sentido que o outro vive, como escreve a poeta no belo ritornelo 39:

Eras
agora voltas ao fogo
à tarde de experimentar estar entre os reflexos.
Eras
agora a voz vem desmembrar o passado em presente.
Eras
sem acidente que evocasse o princípio.
Eras,
quando eu era eu
te designava
te existia.

Este poderoso poema, imerso numa ontologia do devir, em que tornar-se é o único lugar disponível, repete a palavra “eras”, como expressão fundamental do humano. “Eras”, segunda pessoa do pretérito imperfeito do verbo ser, sugere a ideia de nevoeiro, a ideia de estarmos imersos num ambiente em que não vemos o que está a acontecer, ambiente próprio da memória e da literatura – era uma vez –, que pressupõe um nunca ter sido. Este ver, em cada um de nós, simultaneamente uma memória de outro e um nunca ter sido, revela-nos antes de mais como um ser de palavra, um ser de continua transformação através da palavra, que é o modo como a consciência tem acesso ao que não é a própria consciência, um reflexo de si mesma, que é já um outro. Dito de outro modo: “Eras / agora voltas ao fogo / à tarde de experimentar estar entre os reflexos”; cada um de nós é para nós mesmos um reflexo derivado de se experimentar, isto é, um reflexo derivado dos outros. “Eras” é uma expressão reflexa de nós mesmos, aqui e agora e no tempo, que também ele só existe numa permanente mudança, “o que se torna tempo / é este exacto instante / que se cumpriu / se perdeu.” (25, p. 57) Por isso, Beirute – no ritornelo 27 – somos todos nós e todos os tempos do mundo. Beirute será ainda amanhã, quando amanhã talvez nem exista; Beirute será ainda no início dos tempos, quando este talvez não tenha sequer existido. “Beirute / e já não há carne que possa chamar um nome / (…) // E já não há carne / a que se possa chamar um nome. / Só Deus atravessando uma palavra, / carregando-a nos braços / devolvendo-a ao sono, anuncia: / Beirute.” A capital da Síria, para além do que hoje é, para além do que foi ao longo dos tempos, assume também aqui o símbolo de não sentido do mundo, de não sentido do humano. Estamos continuamente entre, a caminho de nos tornarmos nós mesmos – em sentido nietzschiano – e de nos tornarmos nada; um nada que já fomos e que tornaremos a ser. Mas também encontramos a identidade entre devir e existência na segunda parte do livro, em “Cânticos da Floresta”. À página 131, cântico 3, Joana Emídio Marques escreve: “Já não sou a minha carne / e o carrossel gira, / gira, gira, gira, / passa por ti e não pára. / Já não sou a tua carne / és Outra, és Tu.” No fundo, a vida não pode ser vivida a não ser que seja uma criação. Melhor seria dizer, como se adivinha que a poeta diga, a vida só pode ser vivida se imaginada, como quem agora lança uma linha ao mar e imagina um peixe no futuro.

Mas, para além desta sombra de Nietzsche, evidentemente um Nietzsche apropriado pela poeta, ou até mesmo um Nietzsche à revelia da poeta, estende-se também uma solidão enorme, onde o início do cântico 4, à página 133, o enuncia de modo belo e aterrador: “Aqui / na casa das cadeiras vazias / (…)”. Este aqui somos nós na beira da página, e sempre na beira da vida. Mas esta solidão, que é reflexo da impossibilidade de reconciliação com o espelho, com os outros, connosco – e qual nós, aquele que estamos para ser, aquele que fomos ou aquele que vamos sendo? – já se encontrava desde o início do livro, em todo o primeiro poema, que começa “Acordando infinitamente / para o que há-de vir / as horas caminham no sentido contrario ao dos pássaros” (e poucos livros terão um início tão próximo da perfeição), e o poema termina “E agora onde me vão eles enterrar?” Esta impossibilidade de reconciliação, seja com o que for ou com quem for, ancora num imenso solipsismo, fazendo deste livro, já longe de Nietzsche, um devir negro, um devir sombrio. Este solipsismo, encontra-se enunciado de modo mais metafísico ao poema 3 da primeira parte do livro: “Entre os possíveis e as coisas / não ser nada, / nem sequer inclassificável.” Por isso, podemo-lo dizer agora, a presença contínua de Deus ao longo do livro nos aparece mais como nada do que como Todo. Deus é a solidão perfeita, redonda, sem mácula, sem passado, sem futuro, sem lembrança ao rés da pele, sem desejo. Quando se escreve Deus, neste livro, escreve-se nada e solidão. Deus surge no livro apenas ao poema 16, com os seguintes versos: “No fim da penumbra / Deus chamou-te a olhar / três noivas-cilindro / erguendo sobre o mundo seus corpos brancos / seus corpos-silo / prostrado na solidão dos milénios.” Aparece depois várias vezes ao longo do livro e, quando não aparece literalmente, aparece em metonímias, sinédoques, antonomásias. Mas sempre significando o misterioso absoluto e infinito nada. Deus é o nada que se olha no espelho. O silêncio a parte musical do nada. Porque a solidão, que é o nada fazendo-se humano, tem também o seu lado musical, o silêncio, e que percorre as páginas deste livro, como não poderia deixar de ser, sendo ele tão musical, desde o título ao último verso.

Recuperemos agora aquilo que mostrámos atrás acerca da consciência de uma falta de sentido, ou pelo menos de uma qualquer possibilidade de alcançá-lo. Este livro de Joana Emídio Marques, uma espécie de itinerário de Deus a Deus (que é o nada a olhar-se ao espelho), começa com os versos já citados, “Acordando infinitamente / para o que há-de vir”, e termina com este “Se acordar agora adormecerei?”, perfazendo formalmente um percurso no sonho. Toda a existência é sonho, ou parece ser um sonho, algo que não é nem ser, nem não-ser. Ritornelos mostra-nos que nunca chegaremos a saber se existimos ou se sonhamos, se estamos vivos a caminho da morte ou mortos a caminho da vida. O devir, o nada, a solidão… o que é este mundo? O que é eu? Por quê a vida? “ – Eu Sou, / gritei depois de morta.” (p. 107) Terminamos com um poema de Joana Emídio Marques, o cântico 8, à página 139:

Não sou eu que vivo, mas a flor
que dando-se às eternidades pretéritas
respira no que desconhece
a beleza inaugural do dia.
Já não sou eu que vivo
mas o tempo estranhado pelo sem-tempo
em madrugadas tão plenas que tecem caminhos.
Um dia, quando voltar da morte e me detiver em frente à janela
que me puxa par adentro do segredo e do mistério
ter-te-ei despido.
Já não sou eu que vivo
e se gritar afogo-me no meu próprio eco
neste campo de escombros
átomos explodindo nas carnes das casas.
Já não sou eu que vivo
mas o grito
o milagre nos corredores da noite
nas mãos dadas a ninguém.
Entranhas de Deus espalhadas sobre a tua ausência.

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