Kim Jong-nam | Activista acredita que “questão de sangue” esteve na origem do homicídio

Ninguém duvida que se tratou de um homicídio. Washington e Seul acreditam que Kim Jong-nam morreu a mando de Pyongyang. Mas por que sentiu Kim Jong-un necessidade de matar o meio-irmão? Há um investigador japonês que tem uma teoria: por uma questão de sangue, o líder da Coreia do Norte não tem direito ao poder. É a verdadeira guerra dos tronos

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]aiu do país em 2001 e, segundo contou há uns anos a um órgão de comunicação social japonês, já nos últimos tempos em que viveu em Pyongyang se sentia afastado do pai. O primogénito de Kim Jong-il, assassinado esta semana num aeroporto de Kuala Lumpur, era defensor da reforma e abertura do país, um pouco aos moldes do que aconteceu na China de Deng Xiaoping. Por isso mesmo, era contra a lógica da sucessão no poder da Coreia do Norte.

Kim Jong-nam não parecia ter aspirações políticas – pelo menos foi essa a sensação que deixou nas poucas entrevistas que concedeu e junto dos amigos que fez em Macau, terra onde passou longos períodos, até começar a sentir que teria a cabeça a prémio. Foi nessa altura que passou a viajar mais, sendo que França era um dos destinos predilectos do homem que estudou no Liceu Francês de Moscovo. Foi nessa altura também que a actividade no Facebook, com o nome Kim Chol, deixou de ser tão regular – mas é possível ver ainda fotografias junto a vários casinos de Macau.

A residência no território, casa também da mulher e dos dois filhos, tem um significado claro para os analistas, reforçado pelas viagens frequentes a Pequim: a China protegia o filho mais velho do Querido Líder, apesar de as relações com o pai terem deixado de ser as melhores. Era Kim Jong-nam, de certa maneira, um trunfo para Pequim, numa altura em que Pyongyang lhe escapa, por ser controlada por um líder imprevisível? Teria Kim Jong-nam um papel importante a desempenhar numa eventual abertura do país ao mundo? 

São perguntas que ficarão, por certo, sem resposta. Assim como deverá ficar sem justificação a verdadeira razão do homicídio do meio-irmão de Kim Jong-un. As agências internacionais de notícias davam ontem conta de que a Malásia vai entregar o corpo à Coreia do Norte, a pedido de Pyongyang, depois de concluídos os procedimentos em curso – à hora de fecho desta edição, ainda não tinha sido divulgado o resultado da autópsia. Desconhece-se que tipo de funeral pretende Kim Jong-un organizar para o meio-irmão que não terá conhecido em vida.

Uma linha de sangue

O investigador Ken Kato não tem dúvidas sobre quem mandou matar Kim Jong-nam. “Ao assassinar o irmão mais velho, Kim Jong-un atravessou mais uma linha vermelha e o regime é mais perigoso do que nunca”, comentou ao HM. O activista japonês – que se dedica sobretudo à luta pelos direitos humanos na Coreia do Norte – faz um enquadramento familiar do clã Kim para sustentar a afirmação.

“O pai de Kim Jong-un, o ditador Kim Jong-il, também teve um irmão que foi seu adversário, Kim Pyong-il. No entanto, Kim Jong-il não o mandou matar ou prender”, observa o director da Human Rights in Asia. De facto, Kim Pyong-il foi embaixador da Coreia do Norte durante várias décadas. “Até mesmo Kim Jong-il se sentia incapaz de matar um filho de Kim Il-sung [o fundador da Coreia do Norte]. Mas Kim Jong-un matou um filho de Kim Jong-il e um neto de Kim Il-sung”, sublinha. “Isto tem um enorme significado.”

Ken Kato aponta uma razão concreta para que o que aconteceu no aeroporto da Malásia, admitindo que haverá outros motivos para o homicídio. Trata-se de uma “fraqueza” de Kim Jong-un, uma “questão de sangue” que o líder da Coreia do Norte jamais poderá resolver, porque se trata de uma traição imperdoável aos olhos da cultura e da lei norte-coreanas.

“Tenho provas documentais de que o avô materno de Kim Jong-un trabalhou para o Exército Imperial Japonês, o que faz dele ‘um traidor’ na Coreia do Norte”, declara o activista. Ora, o avô materno do jovem líder nada era a Kim Jong-nam. Já o fundador da Coreia do Norte era avô dos dois. E foi ele que determinou, em 1972, que “faccionários ou inimigos da classe, independentemente de quem sejam, a sua semente deve ser eliminada nas três gerações seguintes”. Ou seja, pela lógica política de Pyongyang, “Kim Jong-un deveria ser enviado para um campo de detenção e morrer lá”, uma vez que teria de pagar pelos pecados do avô materno.

A filha que valeu a vida

“Para os estrangeiros, isto pode não parecer uma questão importante”, continua o investigador, que viu a descoberta de há cinco anos ser publicada pela imprensa internacional. “Mas, para os norte-coreanos, trata-se de uma questão de legitimidade extremamente importante.”

De acordo com a documentação encontrada por Ken Kato, o avô materno de Kim Jong-un, Ko Gyon-tek, trabalhou numa fábrica em Osaka, no Japão, onde eram feitos os uniformes para o exército que queria derrubar Kim Il-sung.

O facto de Ko Gyon-tek ter colaborado com a nação que ocupou a Península da Coreia teria valido o seu encarceramento, bem como o de toda a sua família. O avô de Kim Jong-un conseguiu escapar a semelhante destino, quando viajou para o Norte no início dos anos 1960, porque a filha caiu nas graças de Kim Jong-il.

Os documentos que sustentam a teoria de Ken Kato foram encontrados nos arquivos militares do Japão e na biblioteca do parlamento nipónico. “A Coreia do Norte não desmentiu a minha descoberta”, salienta. O activista acredita que Kim Jong-un desconheceria o passado do avô, que teria feito dele um elemento da classe mais baixa da sociedade norte-coreana.

Nascido na ilha de Jeju, território que hoje pertence à Coreia do Sul, Ko Gyon-tek mudou-se para o Japão em 1929, numa altura em que muitos coreanos procuravam uma vida melhor no país vizinho. A filha, Ko Young-hee [a mãe de Kim Jong-un], nasceu em Osaka em 1953, mas a família foi obrigada a mudar-se para a Coreia do Norte em 1961, depois de Ko Gyon-tek ter sido detido e deportado pela polícia japonesa, acusado de tráfico humano – isto de acordo com as investigações feitas pelo académico Lee Yong Hwa, professor da Universidade Kansai.

O avô materno do líder de Pyongyang conseguiu resolver as questões do passado e encontrou trabalho numa fábrica de produtos químicos, indicam os arquivos que Ken Kato encontrou. Já a filha começou a dançar no grupo artístico Mansudae. Foi precisamente como bailarina que despertou a atenção de Kim Jong-il, com quem viria a casar. A mãe de Kim Jong-nam não tinha contraído matrimónio com aquele que viria a ser o Querido Líder. Doente, morreu no exílio em Moscovo.

“Há um sistema de classificação muito rígido na Coreia do Norte, baseado na linhagem”, reitera o activista japonês. “De acordo com a filosofia norte-coreana, Kim Jong-un não reúne condições para ser líder porque a legitimidade de todo o regime tem a linhagem como fundamento.”

Ken Kato contou ainda ao HM que, há já alguns anos, enviou uma carta ao filho de Kim Jong-nam, Kim Han-sol, com cópias das provas documentais que reuniu sobre a família materna do tio.

Agora, numa altura em que teme como nunca pelos direitos humanos em solo norte-coreano, o activista tem apenas uma esperança. “Espero que possa agir pelo pai e pelas pessoas da Coreia do Norte, e atacar ‘a fraqueza’ de Kim Jong-un”, diz. É tudo uma questão de sangue nesta guerra dos tronos que acontece aqui bem perto.


E vão três

A polícia da Malásia deteve ontem um terceiro suspeito, durante a caça ao homem que está a ser feita por causa do homicídio de Kim Jong-nam. De acordo com a Agência Reuters, o detido mais recente é namorado de uma mulher indonésia que também ontem, ao princípio do dia, tinha sido levada para a esquadra.

A nacionalidade do homem não foi revelada. “Ele foi detido para facilitar as investigações, uma vez que mantém uma relação com a segunda suspeita”, explicou o chefe da polícia do Estado de Selangor.

A mulher indonésia vai ficar, para já, detida durante sete dias, juntamente com outra suspeita, que tinha um documento de viagem do Vietname e foi apanhada quando tentava sair do país, no terminal das companhias aéreas de baixo custo do Aeroporto de Kuala Lumpur.

Ainda em relação à suspeita de nacionalidade indonésia, sabe-se apenas que estava sozinha quando foi detida. A diplomacia de Jacarta pediu já para ter acesso à mulher.

Apesar de o regime da Coreia do Norte ter, no passado, ordenado execuções fora do país, as fontes das agências internacionais têm dificuldade em encontrar uma razão que ligue Pyongyang à morte de Kim Jong-nam.

Até à hora de fecho desta edição, a Coreia do Norte não tinha feito qualquer referência pública à morte do primogénito do Querido Líder, sendo que a embaixada de Pyongyang na Malásia não tem estado a atender o telefone.

A Reuters cita uma fonte não identificada de Pequim, com relações tanto aos governos da Coreia do Norte como da China, que garantiu que Kim Jong-un não esteve envolvido no homicídio, até porque não havia motivo para tal. “Kim Jong-nam não tem nada que ver com a Coreia do Norte. Não há razão para a Coreia do Norte o mandar matar”, frisou a fonte da agência de notícias, que adiantou que Pyongyang também está a investigar o sucedido.

A morte do filho mais velho de Kim Jong-il passou igualmente ao lado da imprensa estatal da Coreia do Norte. Ontem, o exército sul-coreano anunciou que o país iria recorrer aos altifalantes instalados na fronteira com o Norte para informar a população acerca do que aconteceu. Os militares estavam apenas à espera da confirmação oficial, o que aconteceu ao princípio da noite: a Malásia anunciou que o homem que morreu na segunda-feira em Kuala Lumpur era Kim Jong-nam.

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Manoel
21 Fev 2017 06:27

Que triste realidade. Até onde vai a fúria de um ser humano.