Formas de dizer

Museu Picasso, Paris, 27 Janeiro

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]rouxe lições desta riquíssima exposição, a primeira a cruzar olhares, obras e percursos, enfim, a amizade e os desencontros dos «monstros» Picasso e Giacometti. Não precisava, bastava o deleite de saltitar de uma forma para outra, da enormidade para o detalhe, do delírio para o pensamento, do mundo para o corpo. Esmagado percebi que artista será apenas aquele que tome por matéria-prima a energia e se deixe atravessar pelo raio do desejo. As vontades dionisíacas e primitivas destes colossos viraram as formas do avesso em vagas incessantes de criação. Nem a tristeza os travou. Em fundo, invariavelmente o eterno feminino abrindo-se em V de vitalidade, para se estender campo de batalha e principal soldado contra a morte, esse disforme enigma final. Na Baigneuse alongée, de Picasso, de 1931, braços e cabeça entrelaçam-se num nó que, abraçando o espaço, lança e recebe o resto do corpo feito mar. Na praia, onde o encontro incessante dos elementos sussurrará para sempre. Giacometti, em 1929, diz que uma Femme couchée qui rêve faz-se de ondas paralelas mantidas juntas e esvoaçantes um pouco acima da linha de terra por colunas, uma delas encimada por volume côncavo, talvez uma cabeça. O vazio, sempre ele a desafiar-nos, a conter-nos, a definir-nos. Como bem revela G. na série Femme (plate I) e depois sucessivamente (plate II) e (plate III): pelo nada somos definidos. Sublimes platitudes.

Ainda bem que fui a tempo, mesmo contra o tempo e o cansaço, sendo este primeiro sintoma daquele outro a roer-me, apertando cada vez mais nós. Na barriga, afinal onde, como dizia Manuel António Pina, deve ser o lugar do coração já que aí sentimos tudo, nervos como alegria, preocupação como desejo. Sofro de falta de tempo para me perder nele.

Santa Bárbara, Lisboa, 29 Janeiro

Nos anos 1930, Alberto G. compôs pequenas esculturas em palcos de branca fragilidade e fundos de silêncio, nos quais desenhou tensões e equilíbrios com sensibilidade a rasgar feridas, dando-nos a ver o gesto de as retirar à informe paisagem do ar com x-acto. (Note-se a ajuda que esta estranha palavra oferece com o cruzamento em alvo, chaga que acolhe a potência. E como nos faz falta o c para acentuar carnes). Uma delas chama-se Pointe à l’oeil: longa e orgânica forma cónica, afia-se em direcção ao exacto meio dos vazios que olhos ocupariam naquele pequeno crânio e costelas, esboço de corpo, espetado em solo níveo riscado de quadrícula e sulcos. Um prego negro de cabeça branca atravessa e sustenta a massa. Depois a luz dança de mil modos para não prejudicar as sombras que repousam. Quanta dor aqui se encerra e desvela?

Dirão que exagero, mas tant pis: incluo Paysage Après la Bataille, de Éric Lambé e Philippe de Pierpont, nesta bruta linhagem. Este P aponta-se-nos aos olhos, extraído ao branco com requintes de bisturi, P de paisagem e de perda. Com magistral gestão do ritmo, a batalha de uma mulher contra a morte da filha entrança-se, sob pesado manto de neve, com mão cheia de outras figuras a desfazerem-se no entorno. O pano de fundo sobre o qual evoluímos faz-se de amor e amizade e custa-nos negar à morte a possibilidade de fazer da paisagem beco sem saída. Corpos e fundos, nesta coreografia de encontrões se joga o essencial do labor de Éric. Nunca o silêncio foi tão bem desenhado. Nunca o branco foi tão negro. Mesmo quando a cor se junta à melodia com substância de personagem. Acontecem desenhos de estonteante pureza. Nada foi deixado ao acaso, basta conferir a rima entre a capa e as guardas, que alude à colecção de despojos que se diz vida. A narrativa longa estende-se sem perder, em momento algum, fulgores de verso. Algumas sequências agravam enigmas. E nunca deixam de brilhar as pequenas histórias de cada um dos actores, tratados com comovente ternura. Respira-se aqui humanidade. A leitura de «P» pode bem mudar-nos. Pena de quem não sabe.

Horta Seca, Lisboa, 2 Fevereiro

Perde-se no claro-escuro da desmemória o encontro com o trabalho de Jorge dos Reis, primeiro na sua qualidade de compositor de alfabetos, logo na de investigador atento das nossas artes tipográficas. Admiro muito o seu esforço de projectar atenção à obscuridade das oficinas quando a pele do mundo era de chumbo. E vibro com o divertido jogo com que faz das letras formas do olhar. A exposição, «Fragas Falantes», que celebra vinte anos e vinte tipos de letra, ergueu-se na faldas da serra, na Universidade da Beira Interior, mas veio ver o mar às paredes da abysmo galeria. O livro, com o mesmo título e grande formato, transpira saber e sabor. Foi feito em velhas máquinas, mas propõe mostruário de seres vivos, que outra coisa não são tais alfabetos. Cada página afirma-se poster, afirmação a um tempo subtil e gritada, útil e abstracta. Ajuntou-lhes pequenos comentários de gente do mesmo ofício, mas não apenas. Curiosa coincidência, vários dos convidados viram música nas suas composições. Também ouvi melodia na que me dedicou (na ilustração ao lado): Baco, que me surge inspirado em correntes de bicicleta. Percebo o deus desbragado, já as bicicletas… só se for metáfora para o esforço de locomover letras.

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