O ano da máscara

[dropcap]P[/dropcap]revisões fazem os bruxos ou, na melhor e mais enigmática das hipóteses, o Yi Jing. Da minha parte, teríeis cassandricas opções, pois que a paisagem não inspira discursos belos e ainda menos idílios. Mas tal não será caso para grandes desesperos. Aliás, a malta de hoje não é de desesperar. A coisa sagra-se mais em deixar andar o comboio e aproveitar o deslizar da carruagem, sem mesmo reparar por quais carris se rola ou se enrola ao deslizar.

É assim o mundo e podia ser pior, rezaria o Dr. Pangloss* se rezar lhe ajuntasse vantagem, nesse exacto mundo que ele percepciona e não noutro, lamentavelmente, oculto a olhares burgessos. E assim continuaremos em 2017, não muito diferente de 1917, à excepção de uma revolução cujo desfecho resultou na morte das revoluções.

Andámos muito desde então. Para a frente e também para trás. Muito se liquidou: algumas coisas bem, outras não. Há uma cegueira cíclica nesta humanidade indecisa: o extermínio de pessoas e de livros. Aos últimos, hoje, não é preciso queimá-los. Eles encarregam-se disso.

E é neste espírito, imerso e paradoxal, que vos proponho em 2017 o adensar da máscara, o aumentar da distância em relação ao outro, a construção de muros entre nós e esse México que por aí anda. E esses mexicanos que o paguem. Sejamos realmente a trampa que estamos mortinhos por ser. Provavelmente alguém nos dará razão.

Propaguemos um outro email, ainda nosso mas não totalmente, domínio do nosso ego virtual e não realmente implicado no que verdadeiramente pensamos ou sentimos. Máscara. Máscara por trás de máscara. Máscara. Máscara pintada, retocada, maquilhada; máscara exultada. Máscara gigante ou máscara anã. Máscara matrioska. Sem sobressaltos por detrás da máscara da máscara. Máscara adamascada ou em tule. Não importa: em caso algum a pele se vislumbra.

Não ousamos outro modelo, outra via, que não a via das máscaras. Impotentes ou guerreiros, vagabundos ou burgueses, sedentos ou esfomeados, 2017 exigirá a mascarada, nos melhores momentos a mascarilha. Fingiremos ser; actividade que praticamos sem remorso e quantas vezes sem presunção.

E o que fica, perguntais, quando já manso no lar ousais a máscara tirar e por debaixo outro careto vos pergunta sem cessar o que fazer do abismo que mesmo num sono sem fundo arrogante se interpõe? Nada. Talvez viver.

Viver assim… ausente, no meio do nevoeiro. Sem cão, sem estrela, sem ideias de permeio. Só tactear: ser alheio, afastado das formas, dos verdadeiros corpos, dos verdadeiros copos, das orações; nada agarrar, passar fantasma, roçagar. Viver de exílio, mestre da saudade e da cidade interdita a contemporâneas efabulações. Preferir o nevoeiro às luzes rançosas. Escolher o tenebroso, a jugular impenitente, sempre a saltar à nossa frente, a deixar-se abocanhar, plena de vida, pujante de amor, ou não fôra ela natureza e mãe e tudo.

E o sabor do nosso sangue, interdito e intermitente, que tanto se ergue em tempestades como repousa ignorante e parvo em colos de além-fronteiras, onde o sossego nos maquilha de rosa e cor-de-vinho de Bordéus, alucinada cor de mantos e desmedidas cortinas.

Estaremos menos sós. A solidão é tão impossível como o convívio. As máscaras encontrar-se-ão. Dar-se-ão bailes, cruzeiros, manifestações de massas. Espectáculos de rua, mariposas, ajuntamentos. Serão breves como os dentes. Retornaremos ao sonho porque não há mais nenhum lugar para ir. O mundo encontra-se, francamente, esgotado. Nessas horas frágeis encontraremos o ano. 2017. Como poderia ser qualquer outro: os sonhos não conhecem o tempo, apenas se alimentam de espirais. Nós, omnívoros, comemos tudo.

Um Bom Ano para os uns e para os outros.

*Personagem de Voltaire para quem vivemos sempre no melhor dos mundos e da bajulação aos poderosos havemos de usufruir alguma vantagem.

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