h | Artes, Letras e IdeiasTodo o Atlântico Amélia Vieira - 26 Ago 201629 Ago 2016 [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Atlântico é como uma estrada de Atlas: ele corta continentes e nele sempre o mesmo verde-mar, o mesmo drama, a mesma costa agreste. Ele paira-nos como aqueles ventos que se cruzam em grito, nos sussurra e nos fala e toda a paisagem contínua como selva atlântica até às densas brumas. É em muitas costas de um profundo silêncio e grandeza agrestes. Sem a tranquila noção de um útero como o Mar Mediterrânico, o Atlântico abre para o mundo como uma boca indivisa e um lúgubre tormento de marear, voltado a norte. Temos medo, ele arranca-nos o sono com o ruído da sua proximidade de uma grandeza que cilindra a paz dos seres. Penso que ninguém é feliz junto a ele. As mulheres sofrem muitas vezes da função hirsuta que lhes chega do denso iodo e as transformam em Medusas desfiguradas e de dura cerviz. Os homens secam as carnes num sal que destempera toda a pele, que têm como um lenho, e estas povoações, peninsulares, albergam fantasmas e não são susceptíveis de maciez. Para sul ele torna-se mais macio, mais doce, menos vulcânico, talvez, e sem dúvida por isso lhe estão associados os mais alegres efeitos e quase a rumar para África fiquem para trás as densas manifestações do seu corpo de gesso, da sua imensa transfiguração como Ventre da Baleia. Por isso gostamos de rumar para o sul de todos os sóis, para lhe fugirmos onde ele está mais sombrio. Bafejado pelas correntes do Golfo, ele torna-se um Mar, mas um mar onde já os Cânticos se podem ouvir sem a urdidura da gemida força da sua massa poderosa. O calor produz um reconfortante silêncio das funduras e talvez os vulcões sejam mesmo inaudíveis e por isso nos fascinem com tanta coisa que se vê em cintilação sem nos dizer dele mais nada. Entre a lava e o levante das ondas atlânticas este efeito talvez não nos atemorize tanto. Por vezes levam-nos os sonhos até ao mar cobalto, fundo azul-redondos fundos até aos encantos onde os deuses moram, vagueamos pela secura da costa com aquelas árvores que quase lhes mergulham dentro, toda a beleza da fronteira entre terra e céu e água nos parece uma dança, esse líquido que tem dentro as sereias que enlouquecem Ulisses, expulsam Orpheu, e à sua entrada tange a lira, pois é ainda o sonho líquido que dele ficou. — Mas o Atlântico é um soberbo corredor de monstros marinhos, tão imenso como a Via Láctea e jazendo de pujança fria a nossos pés. Talvez que a natureza de cada um de nós já não tenha um mapa anexo nos destinos a percorrer na viagem terrena mas, em todo o caso, não era este o implante que gostava de ter tido. Ainda agora, toda esta costa me ofende e perturba como um choro de harpias por detrás do verde azul — há todos os mortos e toda a força de um volume que há-de, em tempo impreciso, galgar a descarnada costa e suas audazes valentias de chamar a tais margens, terra; são chãos colossais e arenosos, mas não são ainda terra. Hoje, 24 de Agosto, há uma prática lusíada que equivale a um Jordão, mas as crianças não gostam das águas do oceano daqui e mergulhadas em ondas em números ímpares, depois de rondarem a vila de Bartolomeu do Mar, são atiradas ao denso e fundo escuro deste instante. Diz-se que lhes faz bem: lhes tira gaguez, cegueira, epilepsias, talvez sim, porque antes sacrificam uma galinha negra que também será atirada ao mar. Todo o terror quando superado vence o mal que lhe estava subjacente. Penso que não haja memória de um Jordão assim, nem das águas de Lesbos estarem tão revoltas que as belas não fizessem delas os seus espelhos. Narciso precisou de uma suavidade translúcida e parada para contemplar tão forte emoção: ser aquele por quem os elementos se apaixonavam. Os elementos por vezes reúnem-se para uma grande declaração de amor, assim como os sentidos todos concordarem na corrida para um encaixe perfeito entre partes. Chama-se a isso talvez Amor, mas é certamente um sistema de simpatias que de tão harmónicas formam o Encontro. Nestas paragens oceânicas tudo se perde… Entre o pinhal de Leiria e a costa oeste há uma desassossegada vibração que nos domina, aquele mar deveria ter entrado sem impedimento, nós devíamos não ter sustentado a costa e com ela ter deitado ao mar os últimos habitantes de uma orla tão primitiva quanto os dinossauros. Mas há reis, que sendo poetas, são mais que reis: são missões no altar dos tempos e talvez soubesse dos bens merecidos destas vertentes e daquele de que viria a restar como matéria prima e que lhe falou mais alto que todos os apelos de erosão. Passar rente a tudo isto não é fácil, olhar o Atlântico altivo e fero faz-nos uma angústia de morte e nem sempre estamos destituídos de memórias antigas, que nos levam ao colo pela infância onde tanto horror nos parecia paradoxalmente… belo. É a saudade que ficou de frutos silvestres como camarinhas, de tudo o que é ácido e amargo, para sarar as feridas onde o sal penetrou tão fundo que deixamos de chorar e percorremos estes locais como a mulher de Ló- Alfeizerão, o pão é dele — Estranhos topónimos, nomes, tipografias… Sodoma ainda é longe de Nazaré e nada mais seca e disseca que o peixe aberto e assado ao sol das ondas. Quando por artes de navegação aqueles povos semitas se deram conta destas costas agrestes, eles, que vinham segundo Homero do Mar Vermelho e do Golfo Pérsico, tendo depois florescido no belo Mediterrâneo, não andaram mais e na Finisterra de todos os ocasos marítimos assim se foram tornando sombras. Os rios ficam entre sonhos e entre rotas-Jordão, Litani, Tigre, Eufrates… os nossos ficam entre sombras, Tejo, Douro, Mondego… Litani! Foi nas suas margens que a escrita das antigas litanias floresceram e em Biblos se fundou a fina pasta para comer o Livro: Ezequiel 1- come este Livro…! 2- Então abri a boca, e ele me deu o rolo para comer. «Engole o Atlântico» e vi um Ser surgido das estrelas que engoliu de um trago o mar tamanho e dele também levou as nuvens que são nesta costa fria e dura, as eternas neblinas matinais. Este Oceano não gosta de suicidas, mesmo sendo assim, devolve-os às margens, e deixa-os sem a dignidade de uma sepultura no seu ventre, as mulheres de cabeça para baixo e os homens invariavelmente de cabeça para cima. Só naqueles barcos que não eram feito de madeiras do Líbano mas de juncos e carvalhos, se deleitava com os náufragos que ele mesmo fazia descer às suas funduras. Tem miragens dignas dos maiores poetas em visões cegas de antanho quando, ao largo nas noites perto do Solstício do Verão, levantavam blocos de Ilhas, e ao longe pareciam douradas… Pessoa nem delas se esquecera num ramo insular e lhes deixou de prestar o belo culto: “não sei se é sonho se realidade se uma mistura de sonho e vida aquela terra de suavidade que da orla esquerda do sul se olvida… É a que ansiamos. Não é com Ilhas de fim do mundo nem com palmares de sonho ou não que a alma cura seu mal profundo e o bem nos entra no coração… É em nós que é tudo! Aí, aí, meu ser é jovem e o amor sorri”. Ao largo atlântico de uma Ilha que esperamos ver um dia.