Diário (secreto) de Pequim h | Artes, Letras e IdeiasPequim, 15 de Dezembro de 1977 Hoje Macau - 15 Ago 2016 * por António Graça de Abreu [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]í vamos, meu amor nos lábios do sonho beijar os lírios e o mar, na música do sangue ouvir o vento cantar. Pequim, 18 de Dezembro de 1977 Ontem caiu o primeiro nevão do Inverno. Desabituado a olhar uma cidade coberta pelo branco da neve, envolta pela pureza que não tem, o meu espanto de circunstância, em Pequim, longe de Portugal. Vieram-me à mente os versos já muito batidos, conhecidíssimos, de Augusto Gil, alusivos a um Inverno beirão, um poema que jamais recitei em qualquer récita escolar mas que sei de cor. Assim: Bate leve, levemente, Como quem chama por mim. Será chuva, será vento? Vento não é certamente e a chuva não bate assim, (…) Cai neve na Natureza E cai no meu coração. Hoje veio a chuva gelada, a neve está a desfazer, o trânsito e os homens estão outra vez a conspurcar isto tudo. Sempre as reviravoltas dos dias, o encantamento branco não permanece muito tempo. Mas há-de nevar outra vez. Pequim, 2 de Janeiro de 1978 Dia 31, no réveillon, fui jantar com o Hua Guofeng, o sucessor de Mao Zedong. Banquete de Ano Novo no enorme salão do Grande Palácio Povo, ali em Tian’anmen. Era eu e mais cinco mil pessoas em volta de três centenas de mesas redondas com umas tantas iguarias, uma espécie de manjar frio a comer exactamente no espaço de uma hora, o tempo certo destinado ao banquete. Os convidados de honra foram os quadros de topo do Partido Comunista, uma boa quantidade de embaixadores estrangeiros e umas dezenas de “especialistas” também estrangeiros, gente de confiança que trabalha para os chineses, por exemplo nas Edições de Pequim, como é o meu caso. Um sóbrio jantar, com música ao vivo, uma banda do exército que tocava marchas militares, e a subida de Hua Guofeng ao pequeno palanque dos discursos para referir os sucessos obtidos no ano de 1977, antecipar as vitórias a obter em 1978 e desejar um Bom Ano a todos. Admirei a pompa e circunstância. Pequim, 20 de Janeiro de 1978 Reunião dos quatro portugueses da célula do PCP (m-l) em Pequim. Eu digo: “Somos todos diferentes, eu gosto mais do isolamento, dos meus livros, de ouvir o silêncio, de escrever, da minha música na paz da minha casa. O meu tipo de vida terá necessariamente de ser diferente do vosso. Gostava de aproveitar estes quatro anos para aprender tudo o que puder sobre a China, gostava que isso fosse possível convosco. É importante que me compreendam e me aceitem como sou”.