Entrevista MancheteCarlos Duarte, médico: “Hospital Psiquiátrico não faz parte das necessidades” Andreia Sofia Silva - 1 Jul 2016 Na zona do Caminho das Hortas, na Taipa, continua a existir a única clínica psiquiátrica do território. Carlos Duarte, médico nestes serviços, diz que a clínica é hoje maior do que há cinco anos, com mais pessoal e casos, ainda que não tenha um serviço de Alcoologia. Sem necessidade de um hospital psiquiátrico, Macau deve estudar mais a doença mental, defende A dependência do Jogo domina a sociedade, mas dependências como a do álcool e da droga acabam por estar relacionadas com esse vício e podem passar despercebidas. Concorda? Isso é um pouco difícil de responder. São tipos de dependência que são, na sua essência, bastante diferentes. Por norma as pessoas que desenvolvem a dependência de substâncias são diferentes das que desenvolvem a dependência do jogo, embora possa haver algumas características semelhantes. A problemática da dependência do jogo não está entregue directamente aos Serviços de Saúde, mas sim ao Instituto de Acção Social. O que nós aqui neste serviço, de Saúde Mental e Psiquiatria, nos debruçamos mais é sobre problemáticas da saúde mental e os problemas de jogo são situações que nós frequentemente observamos, mas são associados a outras perturbações psiquiátricas. Há um duplo diagnóstico nesses casos: um problema de ansiedade e depressão associado ao vício do jogo, por exemplo. Depois há também uma ligação com a chamada dependência de substância. Vemos muitas vezes pacientes que têm situações psiquiátricas, uma depressão, um estado de ansiedade, perturbações de adaptação, e associadas a essas situações encontramos abusos de substâncias ou álcool. Essas dependências estão, digamos assim, diluídas noutras problemáticas. Podemos falar nesses termos, são dependências combinadas. Falamos de casos de duplo diagnóstico, com situações diferentes. [Na] doença bipolar, que é persistente, a pessoa pode, nos períodos em que está deprimida, refugiar-se no álcool, mas esta dependência pode ser considerada como secundária em relação à doença psiquiátrica que está subjacente. Estas situações são relativamente frequentes. Considera que, de certa forma, deveria haver uma maior junção de tratamentos, criar um novo tipo de infra-estrutura para abranger todas estas dependências? Pode-se pensar que isso seria uma opção, dado que, no fim de contas, todos estes quadros têm subjacente uma situação de dependência. Mas temos de nos lembrar que a população que vai desenvolver uma toxicodependência é tipicamente diferente daquela que desenvolve um abuso de álcool ou uma dependência do jogo. Tornar-se-ia difícil que fosse criado um serviço que abrangesse todas estas situações. Em muitos países, como em Portugal, há serviços com tratamento do álcool que são separados dos serviços para a toxicodependência. Falamos de grupos populacionais diferentes com problemáticas diferentes. O que está indicado são serviços especializados. Esse serviço de Alcoologia existe aqui, portanto. Em Macau não existe especificamente um serviço de Alcoologia. Deveria haver? Eventualmente. Os serviços de saúde mental têm vindo a ter um grande desenvolvimento, sobretudo nos últimos anos. A política de saúde mental está regulada por um decreto-lei, que foi um dos últimos diplomas da Administração portuguesa. Aí diz que a assistência de saúde mental deve ser feita sobretudo junto da comunidade. É em linha com o que acontece nos chamados países desenvolvidos: o tratamento deve ser virado para a comunidade e não para um hospital psiquiátrico. Nós aqui em Macau não temos um hospital psiquiátrico, temos uma clínica psiquiátrica que está integrada no hospital geral, o que é uma coisa já de si melhor do que ter um hospital psiquiátrico. Os hospitais psiquiátricos têm associados a si uma série de problemas. E são alvo de estigmatização por parte da sociedade. Nesse aspecto não temos essa questão. A única coisa que não é tão favorável a esta clínica é a distância física, mas há uma integração no hospital. Mas há uma estigmatização da doença mental, sobretudo junto da comunidade chinesa? Isso foi estudado. Em todas as comunidades chinesas, quer estejam em Taiwan ou em Hong Kong ou no mundo, o estigma tem uma grande importância. Tem uma dimensão considerada mais negativa do que noutras sociedades. “Macau é uma sociedade em mutação acelerada. E todas as sociedades em mutação acelerada são locais onde os problemas psiquiátricos aumentam muito” Tem notado um aumento de procura da clínica nos últimos anos? Falou-me do decreto-lei de 1999 e a sociedade evoluiu bastante desde aí. Se houve um aumento de pacientes, a que se deve isso? Esse decreto-lei fala numa integração dos serviços de reabilitação com o hospital e a comunidade, algo que, desde há umas décadas para cá, se encara como a solução ideal para o tratamento destes doentes. Mas estes serviços são muito difíceis de pôr em marcha. Este ano começou a funcionar a equipa de psiquiatria ambulatória. Fazem serviços ao domicílio. Fazem avaliações de vários tipos junto das famílias, onde as pessoas trabalham, visitam os doentes em casa e isso é uma coisa absolutamente imprescindível para existir num serviço que se pretende completo. Apesar do decreto já em 1999 referir que o ideal seriam serviços de saúde mental centrados na comunidade, só agora é que isso foi implementado. Este trabalho pode evitar um internamento e é fundamental. Temos de ter a noção de que Macau é um território muito pequeno, então quando se fala em hospitais psiquiátricos, outros países têm uma área muito diferente da de Macau. Não é então necessário um hospital psiquiátrico. Um hospital psiquiátrico não faz sequer parte das necessidades que Macau tem, já desde há bastante tempo. Existem números relativos aos casos de dependência de alcoolismo? Cheguei à conclusão que os números sobre o alcoolismo não são muito fiáveis porque são números muito baixos. Isso tem a ver com a situação de que, não sendo este serviço virado para o tratamento do álcool, encontramos sobretudo situações de duplo diagnóstico. Para se ter uma ideia, num país como os EUA, os problemas clínicos de abuso de álcool chegaram aos 70% da população internada na psiquiatria. Aqui não chega a esses valores sequer. Falamos de menos de 10% dos doentes internados? Não temos dados específicos. “É imprescindível haver estudos que possam orientar as nossas prioridades. Mas aqui em Macau infere-se sobre o que existirá, considerando as características da população e as necessidades, e tomam-se medidas mesmo que não existam estudos avançados” Quanto às doenças mentais, qual a tendência? Tem havido um aumento, mas é bastante difícil avaliarmos as circunstâncias em que este aumento acontece. Houve um aumento do serviço em termos do pessoal que aqui trabalha. O serviço de psiquiatria é hoje muito maior do que há quatro ou cinco anos. Há mais médicos, mais terapeutas. A oferta é maior, mas por outro lado a população também tem vindo a aumentar. Se aumentaram os problemas psiquiátricos isso é uma coisa um pouco difícil de gerir, teríamos de fazer estudos epistemológicos com base nos valores que falamos aqui, e se haveria razões para os números aumentarem. Podemos falar de novos panoramas em termos de saúde mental? Há hoje diferentes cenários que podem afectar a saúde mental? Macau, e toda a gente concordará com isso, tem uma sociedade que tem vindo a mudar muito nos últimos anos. E mudou bastante quando se instalaram os casinos, que alterou por completo o modo de vida das pessoas. O nível de vida subiu, o custo de vida aumentou, até ao nível das casas. Todos esses factores levam-nos a pensar que a sociedade de Macau é uma sociedade em mutação acelerada. E todas as sociedades em mutação acelerada são locais onde os problemas psiquiátricos aumentam muito. Existem enormes pressões para que isso possa acontecer, basta pensar que as pessoas em Macau trabalham frequentemente por turnos e esse é um factor de transtorno mental significativo. Longas horas de trabalho, perda de empregos, subida do custo de vida fora de controlo em muitos dos casos. Quais as doenças mais comuns? As depressões, problemas de sono? Podemos pensar em dois tipos de população. A população que é atendida no nosso serviço de psiquiatria (o único no território) é muito especial e não reflecte os problemas que há na comunidade. Na comunidade poderemos ter alterações do sono, depressões, problemas de adaptação. No próprio serviço acabamos por ter aqui situações mais graves. São necessários mais estudos sobre a área da saúde mental? Sim, é imprescindível haver estudos que possam orientar as nossas prioridades. O que deve ser feito e o que não deve. Idealmente os serviços seriam orientados em função das prioridades identificadas. Mas aqui em Macau infere-se sobre o que existirá, considerando as características da população e as necessidades, e tomam-se medidas mesmo que não existam estudos avançados.