Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | 15 – O estripador

*por José Drummond

[dropcap styçe’circle’]“M[/dropcap]eu Amor.
Escrevo-te aqui de uma cidade perdida nas montanhas do Japão. Espero que esta minha primeira carta desde que nos separámos te acalme e que te possa dar alguma esperança. É importante que saibas que eu não te esqueci. Vives dentro do meu coração. Sempre. Desculpa não ter conseguido contactar-te antes da minha partida. Tenho a certeza que ele desconfia de alguma coisa. Estou a ficar assustada. Ontem a voz dele alterou-se e frequentemente fica em suspenso e não acaba as frases. Como se estivesse realmente a pensar noutra coisa. Não sei porque não tive coragem de acabar isto aí. Deixei arrastar tudo e depois pensei que seria mais fácil de lidar com este palerma durante a viagem. Na verdade gostava que estivesses aqui ao meu lado. Agora. Neste preciso momento, para não ter que te escrever e poder sussurrar tudo ao teu ouvido. E deixar-me abraçar. E deixar-me beijar. Só estou bem ao pé de ti. Quero dar-me toda. Para que me conheças ainda melhor do que eu própria me conheço. Espero que não estejas triste. Não tolero o pensamento de que possas estar triste. Como sabes não sou o tipo de mulher que se enrola em infidelidades. Tudo isto é tão complicado. Tudo isto é tão novo para mim. Não sei como tens paciência para mim. Não sei o que vês em mim. Posso garantir-te que não estou nesta relação contigo para perder tempo ou para brincar com os teus sentimentos. Por favor acredita na minha sinceridade. Tu és o homem que eu amo. Que mais me iluminou. Que mais me faz feliz. O único que realmente me faz feliz. Aqui, ao lado dele, sinto-me rodeada por esta miséria. Untitled1

Espero com todo o meu ser que acredites que sou honesta quando te digo que tu és aquele que o meu íntimo deseja. Aquele que trago sempre no peito. Como gostaria de poder planear o tempo exclusivamente em tua função. Desculpa-me, sabes que nunca tive jeito para escrever, mas todas as palavras são puras e saem do meu coração. Contigo sou tão diferente. Estou sempre com vontade de fazer coisas. Como gostava de voltar a cantar ópera cantonense. Aquelas escapadas à sala privada de karaoke, onde acabamos uma vez por fazer amor, acordaram em mim o meu gosto em cantar. Sabes que quando era pequenina sempre quis ser como a minha mãe. Ela cantava frequentemente na associação de bairro. Ouve um período, no qual, fui a muitos concertos tradicionais com ela. Lembro-me que ela chegou a ganhar prémios. Dava gosto ouvi-la. ‘Uma mulher que sabe cantar bem pode hipnotizar o homem certo’, dizia-me ela com frequência. Ela podia cantar em todos os lugares. Era uma mulher muito corajosa e confiante de si própria e das suas decisões. Como gostava de ser um bocadinho mais como ela. Depois aquela horrível pneumonia acabou com as forças dela. Foi nessa altura que os meus tios me levaram para Macau. Nunca mais a vi e eles esconderam-me a sua morte até eu fazer 16 anos. Mentiram-me durante anos e anos. Nessa altura a minha vida começou a deixar de fazer sentido. Acreditei que o mundo estava contra mim e que Deus não existe. Acabei por seguir o trabalho mais estúpido do mundo. Como sempre odiei estar por ali a deitar fichas para jogadores porcos, almas penadas, pessoas sem interesse nenhum. Por causa do meu trabalho eu tinha que usar aquele uniforme completamente amorfo e sem estilo. Sempre que saia dirigia-me às casas de banho, na parte de trás do hotel, e carregava um pouco nos cosméticos até alterar o rosto. Trazia sempre um vestido leve num saco que me ajudava a voltar a fazer sentir-me pessoa de novo. Era mais forte que eu. Era o desejo de conseguir ter uma existência.

Sabes que a verdade é que eu sonhava um dia ainda conseguir fugir para Paris e estudar moda. Foi numa dessa noites depois do trabalho no Casino Lisboa que acabei por conhecer este palerma. Levou-me a comer ostras e lagosta e confesso-te que me deixei seduzir pelo seu dinheiro. A cada encontro comprava-me a alma com mais uma jóia. Não demorou muito até nos casarmos. Proibiu-me logo de trabalhar. Muitas vezes pensei que a minha vida acabou ali. Mal sabia eu que ainda te viria a conhecer. Uma vez resolvi pintar o cabelo com tons vermelhos. Nessa noite não me falou e na manhã seguinte deixou-me um bilhete, antes de sair para o trabalho, que dizia: ‘é favor mudar a cor do seu cabelo. Não é uma cor decente para a mulher de um político. Se alguém a vê com esse aspecto o meu lugar na assembleia fica em risco.’ E foi assim que nunca mais mudei o meu corte de cabelo nem o pintei de outra cor que não preto. Lembro-me que quando era miúda cuidava imenso do meu cabelo longo. Sonhava encontrar o meu príncipe e sonhava que ele me ajudava a lavar o cabelo. E que depois, com imenso carinho ajudava-me a secá-lo. E que brincava com ele quando encostava a minha cabeça no seu peito. A minha felicidade quando nos conhecemos. Meu amor. Finalmente alguém brinca com o meu cabelo. Finalmente alguém despertou em mim o romance. Esta paixão que me revelou que afinal a vida não tinha acabado.
Agora, aqui perdida de saudades tuas, sei que estou pronta para te dar todo o meu amor. Tu és tão especial. Espero que nunca te arrependas de estar comigo.
Sonha comigo meu amor. Dá-me tempo para acabar isto que estarei de volta muito, muito em breve.

Sempre tua.
Daphne.”

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