Na apresentação de Li Bai – A poesia é o lugar do espírito onde a alma dos povos tem a sua morada

Intervenção inédita de Natália Correia sobre o poeta Li Bai (701-762) e a poesia clássica chinesa, na apresentação dos Poemas de Li Bai, trad. António Graça de Abreu, na Missão de Macau em Lisboa, a 6 de Julho de 1990

[dropcap style=’circle’]F[/dropcap]ui convidada para dizer algumas palavras sobre Li Bai, mas eu não sou especialista em literatura chinesa, sou uma pessoa curiosa como qualquer poeta, e mais nada.
Li na imprensa que vinha aqui fazer uma palestra sobre o poeta Li Bai, imaginoso exagero que me força a esclarecer que as palavras sobre esse magnífico anjo abolido da poesia chinesa, as palavras que ouvireis, nem de longe, nem de perto têm uma dimensão palestrante. Feito este esclarecimento que me iliba da precariedade do meu discurso, começo por lamentar que a actividade editorial portuguesa não venha acompanhando a larga difusão que editoras estrangeiras, nomeadamente em Inglaterra, têm dado à literatura chinesa, lacuna porventura ou certamente causada pelo velho fantasma da exiguidade de recursos económicos — para não dizer a palavra exacta que é miserabilismo —, que ensombra a nossa cultura.
Contudo, em boa hora desta omissão nos vem ressalvar o Instituto Cultural de Macau, dando-nos a conhecer através da excelente tradução acompanhada de valioso prefácio e notas, de António Graça de Abreu, a poesia de Li Bai.
Este poeta é considerado pelo seu tradutor “talvez” o maior poeta da China. A reserva do “talvez” não será alheia ao reconhecimento do génio de outro poeta, Du Fu, coevo de Li Bai no século VIII, ao tempo da dinastia Tang, período de “ouro” da poesia chinesa, florescendo num universo de paixões, refinamentos e extravagâncias que atingiu a perfeição numa produtividade espantosa.
A China bem se podia orgulhar de possuir este extraordinário património poético quando o pensamento europeu obscuramente ruminava aristotelismos ou devocionismos agustinianos à volta de sentenças patrológicas. Mas não me cabe aqui dilatar conhecimentos em que não passo de modesta amadora, e que são da área de António Graça de Abreu a quem já devíamos, de resto, o grande préstimo cultural de dar a conhecer, por iniciativa do Instituto Cultural de Macau, a peça de Wang Shifu “O Pavilhão do Ocidente” que também nos convida à humildade de reconhecer que já no século XIII o teatro era um património da cultura chinesa quando na Europa germinava em dramas litúrgicos, tutelados pela igreja.
Não resisto a realçar na poesia de Li Bai, esse grande poeta chinês, dois aspectos que algo têm a ver com a nossa literatura.
O primeiro constitui um traço importante da poética chinesa enaltecendo como valor supremo da poesia a brevidade, valorizá-la-á mais pelo que sugere do que pelo que diz. A quadra tem assim um relevo muito significativo no discurso poético chinês, pois que cessando a palavra por imposição da economia formal, o sentido prossegue. Ora é de assinalar que esta valorização da quadra dentro do conceito do “pouco que diz muito” é idêntico ao critério que na nossa poética popular elege a estância de quatro versos, a redondilha menor, como a quinta essência da expressão lírica conceptualista e satírica, ou seja, tudo aquilo que realmente traduz o génio português, Um elemento que a sabedoria popular agrega ao valor da quadra é o dom de a improvisar. Do repentismo de Li Bai nos dá notícia o seu tradutor que nos informa que as quadras breves de cinco caracteres por verso eram improvisadas pelo poeta, sendo só depois passadas ao papel.
Outro aspecto incide sobre Fernando Pessoa, sobretudo na sua hipóstase Alberto Caeiro. Observa com justeza António Graça de Abreu que este verso de Pessoa, enquanto Caeiro “a vida é sombra que passa sobre um rio” podia ser da autoria de Li Bai. Assim é. E direi mais, a identificação entre a temática da perenidade da sábia natureza e da fugacidade da vida no lirismo de Li Bai, e a tópica que caracteriza a poesia do heterónimo de Pessoa, Alberto Caeiro, mesmo a de Ricardo Reis, pode ser reduzida a este principio taoista “se queres conhecer o Tao, expulsa de ti o teu pensamento, tal como a serpente larga a sua pele.” É o que por outras palavras Caeiro nos diz “compreendi isto com os olhos, não com o pensamento.” Ora neste apelo ao outro compreender que o pensamento interdita, seria de estimar o vinho como desorganizador da máquina pensante. Li Bai – outro paralelo com Fernando Pessoa que era beberrão –, junta assim à glória de astro da poesia chinesa, a fama de emérito beberrão. Fama e proveito pois que na sua errática biografia são pitorescamente frequentes as bebedeiras que o poeta translada, de forma encomiástica, para os seus versos. E nisto, repelindo o moralismo confuciano como muito bem acentua António Graça de Abreu, o poeta Li Bai prossegue na senda da poesia dos taoistas em que anteriormente brilha entre os sete Sábios do Bosque de Bambus o amante do vinho Liu Ling, numa busca da evasão que liberta o espírito dos entraves da visão racional. 01
O fundador do espírito da poética moderna, Arthur Rimbaud, far-se-á eco, sem o assumir, sem o conscencializar, desta conexão da embriaguez e do olhar poético ao dizer “Proceda-se ao desregramento dos sentidos para atingir o desconhecido.” A prática poética do surrealismo que em Portugal foi uma cumeada da poesia das últimas décadas seguiu esse princípio criador do desconcerto dos sentidos que, libertando a imaginação, a investe de plenos poderes.
Por fim uma importantíssima e pouco conhecida identidade nos alvores do nosso lirismo, nas Cantigas de Amigo, as paralelísticas, com as poesias chinesas do Shi Jing, o clássico Livro das Odes. O processo rítmico é idêntico e para a semelhança ser perfeita ambas executavam-se por coros alternados. Nas poesias do Shi Jing, tal como nas Cantigas de Amigo, a voz era dada à mulher. Prova-o este poema traduzido para o francês por Marcel Granet:

“Oh, tu, senhor de belo rosto,
que me esperavas na rua,
ai de mim,
não te segui…

Oh, tu, senhor bem talhado,
que me esperavas na sala,
ai de mim,
não te segui…

Compare-se com esta cantiga que Pêro Gonçalves Portocarrero pôs na boca da amiga, como era habitual nas cantigas de mulheres do nosso lirismo medieval, visto que não faziam mais do que reproduzir temas arcaicos, uma poesia arcaica em que era a mulher quem compunha as poesias. Os trovadores eram muito gentis com as damas, como se sabe, de maneira que lhes faziam essa homenagem. Eis, portanto a poesia comparada:

O anel do meu amigo
perdi-o sob o verde pino
e choro,
eu, bela.

O anel do meu amado
perdi-o sob o verde ramo
e choro,
eu, bela.

O facto de uma poesia semelhante à nossa Cantiga de Amigo paralelística ter aparecido na China alguns séculos antes de Cristo tem causado perplexidade aos historiadores, aos investigadores dos cancioneiros medievais. Atenua-se porém essa perplexidade se averiguarmos, como eu averiguei em porfiados estudos, que a nossa cantiga paralelística tem remotas origens, o que é confirmado por Theodore Frinz que enriqueceu os estudos desse lirismo demonstrando que a cantiga feminina é o género lírico mais arcaico com que deparamos nas mais diversas culturas. Pergunto: Um ponto comum, esse perdido ponto do espírito? Um horizonte de poetas, uma desaparecida unidade, todos os povos despedaçados por catástrofes e guerras?
A poesia tem direito a admitir que é sua vocação unir o que está separado. E a própria realidade histórica que vivemos nestes dias de aceleradas mudanças aconselha-nos, a nós ocidentais, que abdiquemos desse logocentrismo, dessa encapotada transferência do moribundo imperialismo histórico para o imperialismo do pensamento ocidental que tem dado frutos aberrantes. Vou citar só um. Recordarei o conceito de primitivo adoptado por Lévy Bruhl, nomeadamente no seu livro As Funções Mentais nas Sociedades Inferiores. Pois bem, esse pilar das teorias sobre a mentalidade primitiva tratou, por assim dizer, como primitivos e inferiores todos os antigos povos extra-europeus, incluindo nestes os chineses e japoneses.
Importa pois varrer, de uma vez para sempre, das mentes europeias os resíduos deste dasaforado logocentrismo que até se metamorfoseia agora na inculcação de modelos políticos em territórios culturais a que eles são espúrios. O mesmo é dizer que devemos acolher as mensagens de outras culturas como uma dádiva feita ao universalismo que se alimenta de diversidades culturais, políticas e civilizacionais.
É dentro deste espírito que deve iluminar todas as nações que saúdo o Instituto Cultural de Macau e o António Graça de Abreu por revelarem aos portugueses os Poemas de Li Bai, expoente da poesia dessa China que, passando por enigmática, nela, poesia, mostra a sua alma, porque a poesia é isso mesmo, o lugar do espírito onde a alma dos povos tem a sua morada.

Lisboa, 6 de Julho de 1990
Por Natália Correia

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