Sorrindo Sempre VozesO Sotaque André Ritchie - 18 Mar 2016 Era eu estudante do Liceu e tinha umas amigas de origem africana que, quando juntas, falavam português com um sotaque próprio da terra delas. Faziam-no a brincar, mas não eram propriamente low-profile quando o faziam e até era visível um certo orgulho da parte delas. Um dia, para provocar, perguntei-lhes porque apenas falavam assim quando entre si: ou seja, para onde ia aquele sotaque quando falavam comigo e com outros, porque revertiam logo para um português de pronúncia neutra? A resposta que obtive foi categórica: “e porque não falas tu com sotaque macaense quando estás connosco?” * * * No meu ano de caloiro no Porto fui um dia jantar com uma conterrânea minha, Macaense, estudante universitária que já lá estava desde o ano lectivo anterior. À boa maneira maquista, a nossa conversa à mesa foi feita num misto de português e chinês. Contudo, quando chegou o empregado de mesa e começámos a fazer o pedido, algo de totalmente inesperado deixou-me boquiaberto: da minha amiga, Macaense de gema com apenas um ano de vivência na Invicta, saiu um português com fortíssima pronúncia do Porto. Frase que me ficou na memória: “E para mim é um cuópu de beinho bráunco”. * * * Uma das coisas que me fascina em Singapura é o Singlish, uma vez que representa bem o melting pot que é aquela Cidade-Estado. Além disso, não posso deixar de achar piada ao sotaque dessa particular forma de inglês e, sendo eu falante de chinês, consigo compreender na perfeição algumas expressões típicas do Singlish. Uma das minhas favoritas é o “like this also can” (leia-se “lái this also caaaaaan”), equivalente ao kam tou tak (*) em chinês. Costumava ir com alguma frequência a Singapura. Em tempos fui convidado para o casamento de uns amigos meus e, na igreja, tive de fazer uma leitura em inglês. No final da cerimónia uma senhora veio dar-me os parabéns pela minha excelente pronúncia. Fiquei surpreendido pois sempre considerei o meu inglês uma mistela, um broken english fruto do que aprendi no Liceu – onde tive bons professores – complementado com o que fui apanhando pelo caminho com os meus amigos filipinos e anglo-saxónicos de origem diversa. “Really?”, respondi sem esconder a minha surpresa. “Mine’s not really British or the Queen’s English, is it?”, acrescentei. “Well.. For one thing, it sounded like proper English, not Singlish…”, respondeu. * * * Caríssimo leitor, este é um assunto sensível para nós, Macaenses: o nosso sotaque quando falamos português e, numa abordagem mais alargada da questão, o nosso domínio da língua portuguesa. E ainda outros complexos. Não sendo linguista ou intelectual, homem da cultura, orador de conferência ou profundo conhecedor da História de Macau – muito menos do tipo que só é capaz de falar do antigamente, do presente tem pouca opinião e do futuro nem um pouco de visão – atrevo-me ainda assim a debruçar-me sobre este tema. O sotaque Macaense é como o Minchi: cada casa tem o seu, não existe propriamente um standard. Mas, tal como o Minchi, tem as suas características principais que todos reconhecem. O sotaque em si não é um problema e não tem mal nenhum: é o que é e até podia ser motivo de orgulho ou a nossa imagem de marca, tal como o Singlish em Singapura. O problema é quando o sotaque é misturado e/ou confundido com o português gramaticalmente mal falado, que por sua vez é associado àquele que não é instruído. Conversa de elitista? Não. A conversa do “tem curso, não tem curso” é um complexo que de certa forma herdámos de Portugal, onde ainda se mantém a formalidade de se colocar o título à frente do nome das pessoas – é o senhor doutor, o senhor arquitecto ou o senhor engenheiro – e até se inventou o título Comendador para quem não tem canudo. (Não fique ofendido quem tem esse título, não é minha intenção desrespeitar quem não teve a oportunidade de tirar um curso superior e que subiu a pulso com base nos conhecimentos da “escola da vida”, e que por essa razão até merece a minha maior consideração). O caríssimo leitor poderá não concordar com esse ponto de vista, mas entenda como a opinião de quem o sentiu com alguma intensidade ao longo da sua infância no seio da comunidade Macaense. Não sendo propriamente do tempo em que se anunciava no jornal que fulano de tal, filho de tal, tinha partido para Portugal para prosseguir com os seus estudos superiores – sim, porque ir estudar para Portugal era motivo suficientemente importante para notícia no jornal – é um facto que esses tempos existiram aqui em Macau, pelo que regressar da Metrópole com canudo na mão conferia por si só um certo estatuto na nossa comunidade ao recém-licenciado. O sotaque prende-se então com isso tudo, com esses complexos todos, e naturalmente com a insegurança de muitos. Aliando-se isso tudo às crises de identidade e todas as tempestades emocionais que nós, Macaenses, de vez em quando, por razões diversas, enfrentamos dada a nossa natureza mestiça, isso tudo leva a que por vezes tenhamos comportamos inexplicáveis no que concerne ao uso da língua portuguesa. Não é por acaso que temos a expressão “torâ português” em Patuá, a qual se refere àquele que, de uma forma forçada e pouco natural, procura falar português com pronúncia de Portugal. Há umas décadas atrás chegámos até a ter no hemiciclo um ilustre Macaense que o torrava de forma particularmente anedótica, transformando todos os “r” em “rr”. Aliás, o senhor era de tal forma diligente que até aplicava essa fórmula ao seu próprio nome. Por outro lado, há também aqueles que, por insegurança, têm vergonha de falar português à frente de determinadas pessoas, refugiando-se no inglês ou no chinês. Em que ficamos, então? Não tenho nenhuma conclusão e nem sequer me atrevo a tecê-las. Mas apetece-me referir que, felizmente, muitos são os que não têm complexos nenhuns e falam à sua maneira, com o sotaque maquista e mesmo cometendo calinadas gramaticais. E ainda bem que assim é. Afinal o Patuá, de que tanto nos orgulhamos e do qual se deriva a nossa maneira particular de falar português, é também fruto de uma interpretação local da língua portuguesa, com inúmeras frases e expressões feitas com base numa construção gramatical chinesa e, de certa forma, um português mal falado, não? Além disso, Não estamos nós já habituados de ver na televisão, mesmo da boca dos ilustres políticos portugueses dirigentes do nosso país, erros de português? Os habituais “há-des” em vez do “hás-de”; o “interviu” em vez do “interveio”; o “evolóiem” em vez do “evoluem”; o “fostes” em vez do “foste”… Portanto, se o senhor doutor de Portugal pódi, porque temos nós tantos complexos, porque nós tamém num pódi? Sorrindo Sempre Karma hits you back, costuma-se dizer. No entanto, este ditado muito em voga nas redes sociais é aplicável nas situações em que fazemos mal a alguém, certo? Ora, porquê decidiu o karma hit me back numa situação em que tratei bem alguém é algo que não consigo compreender. Pois que há tempos escrevi um artigo a defender a polícia de Hong Kong na sequência daquela (absurda) revolta do yu tan. E, numa interpretação mais abrangente do artigo, defendi também os representantes do Governo que são vulgarmente maltratados pela população. (**) Contudo, dias a seguir, acabei eu por ser vítima de maltrato de um polícia de trânsito. Estava o senhor a passar-me a multa quando me aproximei do carro. Sem eu ter dito uma única palavra que fosse, o agente da autoridade decide desancar-me de cima a baixo, com um tom de voz agressivo em que faltaram apenas os palavrões para completar a coisa. Não me contive e respondi que achava inadmissível ele falar assim comigo. Houve uma pequena troca de palavras, embora nada do outro mundo porque, ainda assim, mantive a calma – ao contrário do outro. Moral da história? Nada de especial. Mas não havia necessidade. (*) 咁都得 : em tradução directa para português, o equivalente a “assim também pode” (**) “Rebeldes do Yu Tan”, edição de 19 de Fevereiro de 2016 do jornal Hoje Macau