Gavetas e collants

Acabei de ler o artigo de opinião “Macaios, uni-vos! Um manifesto” de Fernando Eloy. (*) E achei-lhe uma certa piada.
Costuma-se dizer que “Quem classifica, classifica-se”. Precisamente por isso, raramente discuto assuntos em termos absolutos, com receio de ser mal interpretado, e também evito classificar ou dar nomes às coisas, sobretudo quando em causa estão assuntos sensíveis relacionados com a nossa identidade cultural.
Classificar é criar gavetas. Gavetas para meias, para cuecas, para calças, tentamos arrumar tudo na gaveta certa. Corre tudo bem quando de repente vem-nos parar às mãos um par de collants – e não sabemos em que gaveta colocar.
No contexto peculiar de Macau, o que não falta é collants.
Por essa razão fui sempre incapaz de dar nomes às gavetas – digo, aos diversos grupos de pessoas aqui de Macau – e muito menos àquela particular pessoa que sempre acreditei aqui existir e que tem para mim a fundamental característica que se reflecte nessa frase, tirada do mesmo artigo:
“Que me interessa a mim de onde vens ou para onde vais se aqui vives e aqui respiras, aqui te agasalhas e aqui procrias, se aqui comes e aqui amas, se aqui esmoreces e aqui rejuvenesces, se aqui estás, é tudo o que me interessa.”
No artigo essa pessoa é classificada como “Macaio”. Não que goste particularmente desse termo – aliás vários Macaenses com quem falei franziram as sobrancelhas pois essa expressão é, para muitos, depreciativa.
Esclareça-se todavia que essa pessoa não é necessariamente Macaense ou Macaio no “nosso” conceito – e não vou agora elaborar qual o “nosso” conceito dada a abundância de collants, mas é o que todos nós sabemos e aceitamos e que simultaneamente nos esquivamos de descrever por palavras para evitar limitar universos e deixar peças de roupa fora das gavetas.
Contudo, essa questão – a palavra Macaio – é para mim irrelevante pois ora interessa-me não tanto o nome que foi escolhido pelo autor do artigo para esse conceito, mas sim o conceito em si e a existência dessa tal pessoa em Macau com o perfil descrito.
Trata-se daquele que vive e que foi vivendo aqui em Macau ao longo dos anos e com quem partilhamos uma memória colectiva porque ainda se lembra do caminho das hortas para o Lok Iun, das noites no Mondial e no Moulin Rouge, da força destruidora do tufão Helen, do dia em que balas de Kalashnikovs varreram a entrada do hotel New Century, do chafariz do Largo do Leal Senado onde, à porta do restaurante Long Kei, o vendilhão dos bonecos de massa de arroz mantinha o seu pequeno negócio.
Essa pessoa encolheu os ombros e pouca importância deu às sábias palavras que lhe foram ditas por um veterano da terra: “Quem vem para Macau solteiro, casa-se. Quem vem para Macau casado, divorcia-se.”
Mas entretanto conheceu o(a) seu (sua) companheiro(a) de vida aqui em Macau. Foi aqui que amou, ou voltou a amar, e fez filhos. E diz a toda a gente, com orgulho, que os seus filhos aqui nasceram.
É fiel à sua Pátria – não interessa qual, mas é sempre distante. É um país espectacular, o seu. Mas quis o destino que aqui viesse parar porque veio ainda miúdo com os pais, ou porque tinha aqui um amigo, uma tia, um primo, um não-sei-quem que lhe arranjou um emprego.
Veio apenas para ver como eram aqui as coisas, talvez por dois meses, ou no máximo um ano – mas já aqui está há vinte ou trinta.
Nunca teve problemas em explorar as zonas antigas da cidade porque quando aqui chegou, ainda antes disto ser reinventado pela mais recente onda de investimentos estrangeiros, era esse o Macau que existia. Conhece bem, por isso, as Mariazinhas, a Rua da Palha, a zona dos Três Candeeiros e as ruelas todas com as lojecas onde se compra o tecido assim ou os botões assado. Tem também no seu passaporte o visto de entradas múltiplas para ir comprar os DVDs a Zhuhai.
Come com pauzinhos quando vai à tasca chinesa, pede lulas fritas com pimenta e piri-piri e mata a sede com uma Tsingtao, mas nunca em lata ou em garrafa individual: pede logo uma grande porque foi assim que aqui aprendeu a beber com os amigos.
Não se sente incomodado com o ar-condicionado exageradamente frio dos restaurantes – já se habituou a essa prática local e, afinal, sempre assim foi por cá, portanto também não vê nada de errado nisso. E se por acaso se sentir incomodado, também não tem problemas em pedir ao empregado para desligar o ar-condicionado porque o cliente pode e tem sempre razão.
Festeja o Ano Novo Chinês e já lhe sai da boca, com toda a naturalidade, o segundo “bom ano” do ano. No trabalho, em finais de Janeiro, diz repetidamente aos colegas: “vamos deixar isso pronto antes do ano novo”.
Finalmente, é também possível com essa pessoa desenvolver o seguinte diálogo:

A: Onde nasceste?
B: Moçambique.
A: És Moçambicano?
B: Fui ainda criança para Lisboa.
A: És Lisboeta?
B: Quer dizer, não sei… Vim para Macau adolescente.
A: Então sentes-te macaense?
B: Não sou Moçambicano, não sou Lisboeta… Sou português, é claro, mas já nem sei se era capaz de lá viver… Vivi mais anos da minha vida aqui em Macau do que noutro sítio. Portanto…
Pois que essa pessoa também não sabe ao certo o que é, mas tem noção da sua identidade nem que seja por negação – negação das outras suas possíveis identidades de origem.
Caríssimo leitor, se se sentiu identificado, não se preocupe pois talvez não se trate de coincidência – você é um par de collants.
E não pense que a descrição feita até aqui se encaixe unicamente aos collants de origem portuguesa. Porque, tal como diz o outro, a peça de roupa aqui em causa pode ser filipina, macaense, chinesa ou tailandesa. É isso que dá riqueza e colorido à textura social de Macau.
Não temos, por isso, de ser necessariamente unidos no sentido poético da coisa já que temos perfeita consciência e até assumimos que somos todos collants de cores e tamanhos diferentes.
De facto, até certo ponto, pouco ou nada interessa de onde somos ou viemos. Vivemos em Macau desde sabe-se lá quando e, sendo todos nós collants, quando estamos juntos acabamos por encontrar automaticamente a nossa química.
Foi sempre assim.

Sorrindo Sempre

Sobre essa coisa de não haver aulas por causa do frio, tal como dizia Diácono Remédios: “Não havia necessidade!”
Se está frio, então os meninos que se agasalhem melhor. Se ficarem doentes, então que fiquem – há medicamentos que curam gripes, certo?
Ou vão-me dizer que havia o risco de alguma criança morrer de frio na escola?
Atenção: também tenho filhos, preocupa-me e dói-me o coração quando ficam doentes.
Mas incomoda-me quando vejo pais que correm atrás dos miúdos nos parques com medo que caiam do escorrega ou que se magoem aqui ou ali. Esse nervosismo em excesso é muito típico de Macau e Hong Kong e aborrece-me porque impede que os meninos cresçam e se façam homens.
Estamos a criar flores de estufa.
Que depois, quando na idade certa têm de sair da estufa para prosseguir com os estudos, aiyaaaa, coitadinhos, não se adaptaram àquele país porque à noite há bêbados no autocarro e toxicodependentes no comboio, porque da faculdade até casa as ruas estão mal iluminadas, porque as salas de aula cheiram a mofo, ou porque… Faz muito frio.

Sorrindo sempre.

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