Onde moram as algas – Conto de quase natal

[dropcap style=’circle’]À[/dropcap]procura daquela latinha de chá onde guardo o menino Jesus. A única figurinha do presépio que tenho minha. Há quase vinte anos já era vintage, agora continua, porque o menino não cresceu. Em minha casa, a dos meus pais, também o presépio toda a vida se guardou numa caixa de sapatos. Este ano o meu presépio, reduzido a esta única figura como sempre, tem um cenário diferente. Um asteroide. Cinza, queimado, de Raku. Penso nele como o pequeno planeta do principezinho. A sensação de não ter havido salvação é a mesma para um e para outro. Defraudada humanidade pela troca do ser transcendente que era imaterial, superior e triplo sem o ser, por um humano na arrogância do próprio deus, idêntico aos outros, mas com missão impossível. Por isso voltou. Morreu por amor, supostamente, e para aquilo que não conseguira em vida, a salvação dos mortais, que talvez não se reconhecessem na fé por um igual. Voltou aos céus para que a humanidade pudesse voltar interiormente o olhar para cima. Suponho que é mais ou menos a isto que Žižec chama a monstruosidade de Cristo. Morrer por amor é lindo, afinal. E difícil para além de todas as metáforas. Talvez ele fosse então superior. Não estou preparada para mais um Natal. De novo. E isto não é um conto de natal. Que não saberia escrever. É do lugar onde moram as algas. Na minha casa. E, a fazê-lo seria afinal muito curto, a começar na palavra não. Ou a acabar. Somos pessoas que precisam de vez em quando de sair de si. É o que farei mais uma vez. Arrastada para outro lugar. A pensar que talvez valha a pena ou a pensar que não tenho coragem e que depois vou decidir aliviada que será a última vez. E nunca é. Como nada do que pensamos ser.

Vem este tempo que não vem de lado nenhum e que não tem nenhum lado bom. Sair à rua, e todos os desconfortos etéreos e fundos da alma ficam difusos por detrás de uma sensação mais urgente. Dominadora. A de um mal-estar exterior, físico, sem protecção de abafos que valha. Há sempre uma parte do corpo a receber o frio gelado. Há a crescente humidade a tomar conta da roupa a chegar lentamente ao mais interior. A luta contra o vento de frente, o chapéu que se vira. O nariz quase congelado. As mãos escondidas com força. Não há maneira de este tempo odioso de inverno ser suportável. Também porque a alma anda caída de pequenas alturas, é certo. A queda não é grande. Ou então é uma maneira de todo o transtorno das sensações, todo o desgosto omnipresente, se substitua, em parte, àquela infelicidade maior. O inverno há-de passar como sempre.

Naquela noite, outras sensações, uma casa com gente que bebe até aos confins da alma, que dança e dança mesmo em cima da mesa, que despeja agruras, e ingredientes a cru, pelo meio das cartas. Do Tarot. Despindo-se de si como é urgente de vez em quando, e como se de um casaco pesado demais para se trazer em casa. Há momentos em que um adulto tem que se sentar no chão, ou subir para cima da mesa. Intervalos de si. Sair do lugar. E o caminho para casa, depois de vencido um sono quase mortal a certa altura. Caminho curto nas ruas já desertas. Quase desertas. É ainda a luta do corpo a querer despertar o suficiente para chegar ao desmaio na cama, no calor e no arrumar da noite. Os passos a tornar-se rápidos, a dor de cabeça a subir de tom, mal escondida por detrás daquele gelo de noite, como um saco de gelo natural sobre a fronte. A dor de cabeça a tornar-se insuportável à velocidade a que os passos se tornavam ritmados. Insuportável lá atrás, mas estancada pelo gelo. A perturbação das sombras inquietantes que se tornavam várias ou voltavam a uma só. A fazer querer olhar em volta, a sentir-me seguida. Que recuavam ou avançavam mais depressa do que os meus passos e sem descolarem deles. Como um grupo incerto a diferentes velocidades, que me acompanhasse. Solto de mim. Independente no seu móbil, mas ironicamente. E era. Nas luzes amareladas das ruas. O frio da noite a sobrepor-se à melancolia que volta a tomar conta da memória até ali entretida com outras vozes. É o que o frio tem de bom. Ser mais forte que outros males. O mesmo para males de qualquer coisa. E aos mal- de- amor ou mal de amar, e dos males do amor, há dias em que só nos acompanha o amor. Outros em que só nos acompanha o mal. Como duas sombras diferentes que por vezes se arrastam pelo chão, velozes ou a deixar-se ficar um pouco para trás. E que nunca se desprendem dos passos. Dependendo das luzes da cidade que percorro. Mesmo com o frio e mesmo enquanto dormem de pálpebras cerradas, são amareladas e quentes. A noite presta-se. E há aquilo sempre. Aquilo que sempre me aperta a alma de dentro. Ser com dúvidas de ser. De o ser. Momentos da noite. Uns são os meus e outros de ninguém. Que sou.

O sono a vencer de novo. Boa noite ao candeeiro da mesa. Só umas palavrinhas sobre o trabalho, antes de dormir: o grande problema é quando o hoje parece não existir, mas somente o ontem, na sua etérea, progressiva diluição, e o amanhã na sua inultrapassável ainda não existência e imprevisibilidade. E, quando, neste mecanismo de resistência ao autoapagamento, apenas tenho como suporte cristalizar no eterno presente só meu. E aí, o que sobra são sentimentos. Os mais duradouros, apenas. E nesses, custo a ancorar os mais inseguros com tendências fugidias. Porque os resistentes são como o vírus, que instalado, simultaneamente se alimenta e destrói a partir de dentro.
Primeiro a incerteza do que existe.

Depois, quando a incerteza começa a ser substituída por formas ainda ambíguas, instala-se uma primeira fase de insegurança. A partir daí crescem na mesma razão e expressão as possibilidades de definição das formas, que tendem a assumir progressivamente com a maior clareza diferentes vocações, e as potencialidades de insegurança. E um dia, o culminar do lirismo. Momento seguinte: terror absoluto. O que no fundo poderiam ser metáforas para ontem e amanhã…E são duros e resistentes, ambos os sentimentos. É o que por agora existe, e o hoje é um nada só meu. Assim, termino como comecei.

Ou não…porque na pintura, na vida, no jogo, os grandes jogadores são os que perdem e ganham grandes fortunas. E, perder e ganhar pode ser ainda uma outra maneira de dizer ontem e amanhã.

A pensar no desabafo de Virginia Wolf: “Oh the delicacy and complexity of the soul”, quando deambula pelos escorregadios meandros da alma (“ the slipperiness of the soul”), e fantasia acerca de escrever um diálogo da alma consigo própria: “As for the soul…the truth is, one can’t write directly about the soul. Looked at, it vanishes; but look at the ceiling, (…) at the cheaper beasts in the Zoo which are exposed to walkers in Regent’s Park, and the soul slips in. It slipped in this afternoon.”

A tentar pensar nas pequenas, muito pequenas coisas que trazem sempre agarradas metáforas possíveis. As coisas de nada, e de entre essas, a tentar fixar-me na mais pequena em cima da mesa. A tentar fugir a uma prévia definição de um tema, sempre algo triste. A tentar que algo venha por si. A enrolar um cigarro. O filtro. Já para não pensar na mortalha como a roupa que todos os dias vestimos para morrer mais um pouco e isso acontece. O filtro.

Ou o filtro do café. Também. Às vezes sinto-me tão perdida. Tão, tão perdida nos labirínticos corredores. Que gostava que tudo fosse tão simples como as minhas latas de chá.

Levantar pela manhã e começar o dia a abrir janelas. Estender a mão para a prateleira do meio. Aquela em que a caixa de lata do cacau tem café, a latinha dos biscoitos de limão tem bolacha-maria, a dos bombons tem orégãos, a do chá de Jasmim tem chá de três anos, a do Earl Gray, raiz de Valeriana, a do Pu-Erh, Camomila, a de Orquídea, Tília. E assim sucessivamente…E depois aquela mais nova de todas, oferecida. Decorada com rosas que tem dentro, simplesmente, chá preto com pétalas de rosa. Ao lado, o bule da avó, o da bisavó e o da tia- avó. Um outro de um mercado de rua em Cantão. Esta prateleira está em ordem. Ao lado, a caixa do pão vinda dos anos cinquenta, guarda chocolates e algas Wakame. Todos os dias, por assim dizer começo e acabo a estender a mão para aquela prateleira de enganos inofensivos. Pelo meio está o pior.

Se tudo fosse tão simples. Como elas. Que basta abrir ou simplesmente abanar. Todas produzem um tsch tsch tsch diferente. Todos os meus dias começam e muitos deles acabam naquele estender da mão, para aquela prateleira. E com tudo o que trazem e levam pelo meio. Naquele dia, algo em mim se recusava a acordar. Nem mesmo porque o sonho fora mau. É mau sonhar com os anjos. De um modo geral o sonho é menos sonho e naquela noite teve a realidade que os sonhos têm, e que entristece não mais do que a realidade. Uma daquelas manhãs em que o olhar é mais lento e fixo. Fixado por momentos no filtro do café. Fixado nessa realidade tremenda. Depositar uma essência na fronteira de que passa só uma realidade líquida, imparável mesmo ao filtro. Que se bebe todos os dias. Igual, diferente. Nunca a mesma, mas sem uma identidade própria. Como se todos os dias se tomasse o mesmo café. Que passa. Sem deixar nada de específico. Talvez um dia, muito discretamente mais amargo. Num outro, um tanto excessivamente açucarado. Pequenas diferenças desprezáveis. Há um único café. E do pó nada mais a dizer, que não de que ao pó retorna. A origem, a essência, não permanece, é discreta e descartada sem se lhe sentir o sabor directo. Da realidade visível também. Algo fica preso no filtro do café. Mediatização existencial logo pela manhã. Ausência de corpo. De alma. Como um livro. E que mora em outro lugar. Como as algas.

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