Justiça | Portugal está a exigir que magistrados portugueses em Macau regressem ao país

O objectivo será preencher os quadros do MP em Portugal. O Conselho Superior português não está a autorizar a renovação das licenças dos magistrados portugueses em Macau e está a fazer com que os profissionais não tenham outra escolha senão o regresso a casa

vítor coelho
Vítor Coelho, magistrado português a viver há 16 anos em Macau
[dropcap style=’circle’]V[/dropcap]ítor Coelho é magistrado do Ministério Público (MP) e trabalha em Macau há 16 anos. Ainda este mês tem de deixar o território, por vontade do Conselho Superior do Ministério Público português, que está a repescar os magistrados que há anos trabalham na RAEM. E não é o único.

A cooperação entre Macau e Portugal ao nível do Direito é um tema constante entre os dois governos e a falta de magistrados na RAEM é uma das queixas mais ouvidas pelos profissionais da área. Mas a questão parece agora adensar-se. É que a licença especial – autorização que a maioria das pessoas ligadas a Portugal que trabalha nos vários organismos da Função Pública de Macau possui – está a ser negada e, por consequência, a fazer com que os contratos que cheguem ao fim não possam ser renovados. Mesmo que tanto o magistrado, neste caso, como a RAEM assim o pretendam.

“Não se percebe muito bem porque é que vou embora querendo ficar e quando, da parte de Macau, fui até convidado a ficar”, começa por explicar ao HM Vítor Coelho, um dos magistrados nesta situação, enquanto mostra uma carta onde é convidado pelo procurador do MP a ficar e a tratar da renovação da licença portuguesa. “O que se passa é que não há possibilidade nenhuma [de renovar] e já me foi negada a licença especial uma vez. Este ano já não tive essa licença.”

A licença especial permite aos trabalhadores com vinculo a Portugal exercerem em Macau com as mesmas regalias de lá e foi terminada. Passou a não ser a única via utilizada pelos magistrados para cá ficarem mas, como ela, também as outras formas deixaram de funcionar.

“Este ano estive com uma licença chamada de ‘longa-duração’ com base numa nova lei. Havia a licença sem vencimento, mas também acabou no ano passado”, descreve o magistrado, explicando que, já no último ano – em que conseguiu a renovação do contrato com a RAEM por mais 365 dias -, as condições da licença eram diferentes. “Não me deixavam descontar para aposentação, por exemplo.”

Também os magistrados que optaram por cá ficar sem essa licença especial não foram promovidos e não tiveram qualquer progresso na carreira.

Um 2016 negro

Ao que o HM apurou, Vítor Coelho não é o único nesta situação. Actualmente, estarão dois magistrados com licenças sem vencimento e um ainda com a licença especial, renovada antes da decisão de Portugal. E até estes deverão seguir o mesmo caminho de regresso.

Nas justificações do Conselho Superior – escritas em acórdãos a que o HM pediu acesso -, já disseram que seria a última vez que renovavam também esta licença especial. Até porque, assumem, para o ano será pior, porque haverá falta de profissionais.

“As justificações nos acórdãos são de renovação de quadros e da necessidade do preenchimento dos quadros por causa de aposentação. É normal que seja para preencher os quadros lá, mas se é assim, então é para não vir mais ninguém para cá?”, questiona o magistrado.

E se recusar regressar? “Não tenho essa hipótese”, explica Vítor Coelho ao HM. “O Conselho Superior é o nosso órgão de gestão e disciplina. Suponhamos que aceitava: aqui estaria tudo bem, eles até queriam que ficasse, mas não poderia ficar sem a licença desse órgão de gestão. Seria, na prática, uma espécie de abandono do lugar. Sou magistrado do MP em Portugal, sou procurador-geral adjunto e, não tendo licença para estar aqui, em Portugal era como se abandonasse o lugar, saía demitido, perdia a minha carreira. Para isso já basta este ano, que já estive a penar um bocado com isso.”

E o futuro?

O problema da não renovação das licenças está a acontecer apenas com magistrados do MP. Vítor Coelho explica que nunca presenciou situações semelhantes noutro órgão até porque, diz, sendo a China a pedir quadros de Portugal, isso deveria ser motivo de orgulho.

“Os acórdãos dizem que, a partir de 2016, há-de ser muito difícil renovar ou conceder licenças para Macau, o que para mim é uma coisa incompreensível. Tanto quanto sei, essa licença especial concedida pelos órgãos em Portugal nunca foi negada. Acontece que a mim e também a colegas magistrados, de há quatro anos para cá, o Conselho Superior do MP começou a pôr muitas reservas e muitos entraves à renovação desta licença especial, que por norma era renovada – através de um pedido ao Conselho – de dois em dois anos.”

O problema é pura e somente com o MP de Portugal e a situação não existe da parte da RAEM, sendo que Vítor Coelho só aceitou falar com o HM precisamente para terminar com os “rumores” de que o problema seria made in Macau.
“A coisa é clara: o senhor procurador pretendia renovar. Fui eu que não pude, porque não tenho condições, caso contrário ficaria. Se tivesse licença ficaria. Não foi Macau, Macau queria que eu ficasse.”

Apesar da dificuldade na renovação ter sido “previsível” para Vítor Coelho, o magistrado não sabe ainda para onde vai trabalhar quando aterrar em Portugal.

Para o profissional, os entraves podem estar a acontecer porque o Conselho Superior gostaria de ter alguma palavra a dizer sobre os magistrados que cá chegam, uma vez que quem os nomeia é a China.

“É normal que a China queira que estes magistrados fiquem devido à experiência e até pela estabilidade. (…) Isto é de uma inconsistência atroz. Há sempre uma grande cooperação e o país tem compromissos importantes com a China em relação ao preenchimento dos quadros dos magistrados aqui. Não entendo, mas respeito, tenho de respeitar e, por isso, vou obviamente regressar.”

A grande questão que se coloca agora é se Portugal vai continuar a colaborar no envio de magistrados portugueses para Macau – algo que o HM está a tentar perceber junto do Conselho Superior do MP português, do Ministério dos Negócios Estrangeiros e do Ministério da Justiça que, até ao fecho da edição, não nos enviaram resposta. Também quisemos saber junto do Gabinete da Secretária para a Administração e Justiça e da Direcção dos Serviços para os Assuntos de Justiça da RAEM se existe conhecimento do caso, mas não foi possível.

PERFIL

Vítor Coelho não nega que Macau foi a sua casa durante 16 anos. Uma casa da qual “gostou muito” e onde se integrou “muito bem”. Adepto do desporto, o magistrado confessa ao HM que pertencia ao Clube de Ciclismo Recreativo da RAEM, onde tinha um cargo superior, e também ao Clube de Atletismo Fung Loi, tendo até participado na meia maratona de Macau deste ano. À parte destes ciclos, e das “jogatanas” de ténis, Vítor Coelho fala em amigos de várias nacionalidades que vai deixar para trás. “Temos sempre os nossos altos e baixos, mas Macau dá-nos muito e começamos a reflectir nisso. É uma sociedade muito próspera, nunca me faltou nada.” Ficaria, se pudesse, até porque está “muito ligado a Macau”. “Macau deu-me muito e fico satisfeito e conto cá voltar, de vez em quando, até porque tenho interesses emocionais.”

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