Os interesses da embaixada

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]e Duarte Coelho foi um dos responsáveis pelo início das hostilidades navais com os chineses, apesar de Joaquim Veríssimo Serrão dele dar uma imagem de homem honrado e ilustre diplomata, anteriormente, já Simão de Andrade, sem tacto diplomático, “cometeu um erro que originou o primeiro equívoco grave nas relações com as autoridades locais”, como refere João Paulo Oliveira e Costa, e, “após os conflitos armados luso-chineses, ocorridos entre 1521 e 1522, nas águas de Tunmen, a Corte de Pequim decretou o encerramento dos portos cantonenses. Inicialmente, (…) as autoridades de Cantão recusavam (os portugueses,) os de Aname e Malaca. Desde que os mais variados bárbaros de Aname e Malaca foram recusados, eles iam fazer comércio clandestino às águas da prefeitura de Zhangzhou (漳州, Chincheo) fazendo com que a província de Fujian (福建) lucrasse com isso, deixando o mercado cantonense numa situação paupérrima” segundo Revisitar os Primórdios de Macau para uma nova abordagem da História de Jin Guo Ping e Wu Zhiliang, “O encerramento total dos portos cantonenses provocou danos insuportáveis à economia de Cantão, que tem sido, desde as dinastias Tang (唐, 618-907) e Song (宋, 860-1279), um importantíssimo empório para o comércio externo chinês. As receitas locais caíram a pique. A ordem económica local e de uma boa parte do Centro e Sul da China estava afectada e desequilibrada. A situação financeira de Cantão era de tal maneira caótica que nem conseguiam pagar os soldos e os vencimentos da função pública. Esta situação dramática levou o vice-rei Lin Fu a moralizar a Corte Central em 1529, apelando à revogação das proibições marítimas impostas a Cantão. O memorial ao Trono foi favoravelmente despachado e restabelecido o sistema tributário em Cantão, mas os portugueses continuavam proibidos de vir às águas de Cantão. No entanto, alguns, após uma década de ausência do litoral cantonense, começaram a voltar ao negócio da China, a título individual e integrados em grupos tributários de alguns países do Sudeste Asiático, principalmente disfarçados de siameses.”

Com os dois conflitos navais no Rio das Pérolas ganhos pelos chineses aos portugueses, em 1522 terminou “o primeiro período que começara com a chegada de Jorge Álvares à China em 1513”. Iniciava-se um novo ciclo “em que os Portugueses começaram a frequentar o litoral de Fujian e Zhejiang e que acabou” em 1549 “e podemos designá-lo como Entre Chincheo e Liampó” Revisitar os Primórdios de Macau.

O antigo Sultão de Malaca

“As petições do enviado do antigo sultão de Malaca, ferozmente anti-portuguesas, encontraram um renovado acolhimento na corte imperial, onde foram analisadas pelo libo (Rui Manuel Loureiro, Cartas dos cativos de Cantão: O libo de Cristóvão Vieira corresponde ao Tribunal do Ritos pequinense, que estava encarregado de organizar o protocolo das missões tributárias (Hugh b. O’Neill, Companinon to Chinese History). A partir das informações, algo confusas, do prisioneiro português, pode deduzir-se que em finais de 1521 a missão de Tutão Mafame rumou novamente a Pequim, onde pôde apresentar as suas razões em audiência imperial. O embaixador malaio queixava-se da abusiva conquista de Malaca pelos portugueses, pedindo a intervenção militar do Filho do Céu para repor a legalidade, ao mesmo tempo que denunciava a embaixada de Tomé Pires como missão de espionagem. Subsequentemente, os malaios foram reenviados para Cantão, com a promessa de que brevemente [lhe mandariam o despacho]”. E continuando no Revisitar os Primórdios de Macau para uma nova abordagem da História de Jin Guo Ping e Wu Zhiliang: “A decisão imperial, com efeito, não tardou, após o lipu ter deliberado que [a terra dos franges devia ser cousa pequena chegada ao mar], uma vez que [depois que o mundo é mundo nunca viera a terra da China embaixador de tal terra].

O Imperador Jiajing (1522-66) ordenou, em primeiro lugar, que a carta do monarca português fosse queimada. Depois, o presente trazido por Tomé Pires devia ser recusado. Em terceiro lugar, o embaixador e os membros da sua comitiva deviam ser aprisionados e mantidos como reféns. Ou seja, a China não reconhecia a missão portuguesa como embaixada tributária formal. Finalmente, as autoridades provinciais deveriam escrever a el-Rei D. Manuel e ao seu representante em Malaca, com instruções peremptórias para que esta cidade fosse devolvida ao seu legítimo soberano. Após a entrega da praça ao antigo sultão, Tomé Pires e os restantes prisioneiros seriam libertados. Caso o Rei Venturoso desrespeitasse as decisões imperiais, realizar-se-ia um novo conselho. Entretanto, os navios portugueses deveriam ser rigorosamente impedidos de visitar portos chineses. (Rui Manuel Loureiro, Cartas dos cativos de Cantão. Para T’ien-Tsê Chang, a conquista portuguesa de Malaca, que viera perturbar o equilíbrio político-militar no Sudeste Asiático, foi o factor determinante no fracasso da embaixada de Tomé Pires (Malacca and the failure)” Rui Manuel Loureiro.

“Com a denúncia dos emissários do desapossado sultão de Malaca, ficou apurado o facto – já tão bem conhecido pelas autoridades de Cantão como pelas centrais, mas omitido de propósito pelos mandarins e eunucos junto do Imperador – de que eram mandados pelo país Folangji, que conquistara a cidade, tributária da China. Mesmo assim, a Corte só mandou executar os intérpretes sob a acusação de terem trazido à China estrangeiros e não maltrataram os membros não asiáticos da embaixada” Revisitar Os Primórdios de Macau. E ainda desse livro: “Quanto aos contactos com a Corte, (…) foi Ning Cheng, quem fez este favor aos Portugueses porventura em troca de algum presente ou suborno”.

Sem ordem de prisão

Encontrava-se desde 22 de Setembro de 1521 Tomé Pires e os restantes membros da sua comitiva em Cantão, mas só a 14 de Agosto de 1522 foram formalmente acusados de entrarem em território chinês sob falsos pretextos. Altura em que decorriam nos mares de Cantão os confrontos entre a armada chinesa e os navios de Martim Afonso de Melo Coutinho.

“Quanto à rejeição da embaixada, inicialmente, quando os Portugueses foram mandados de volta a Cantão, não houve ordem de Pequim para deter a embaixada em Cantão, como bem elucida um trecho do diário de Yang Tinghe, o ministro mais influente dessa altura: (…) quanto aos bárbaros de Folangji, mandem-nos sob escolta de volta para Cantão, onde ficarão à espera de novas ordens de Baofang (Casa de Leopardo). Esta ordem foi dada como correspondendo à vontade expressa pelo Imperador Zhengde no seu testamento, mas a verdade é que foi preparada postumamente por Yang Tinghe que exerceu a regência durante a sucessão, juntamente com a Imperatriz-Mãe.

Pelas fontes chinesas, sabemos que no momento do falecimento do Imperador Zhengde, o quase regente Yang Tinghe, por uma questão de segurança da capital, tomou muitas medidas, das quais algumas implicavam o repatriamento de embaixadas, tais como as de Qomul, Turfan e a de Portugal, que se encontravam em Pequim, além da execução do eunuco Jiang Bin, entre outros protegidos do Imperador Zhengde. Como o falecido Imperador não deixou descendentes, o vácuo do poder poderia dar lugar a uma renhida luta pela sucessão entre os diferentes ramos da casa imperial, como costumava acontecer nestes casos. Assim sabemos que o principal motivo do reenvio da Embaixada de Tomé Pires para Cantão se ficou a dever a uma questão de segurança nacional.”

“A questão é que a vinda da Embaixada de Tomé Pires para Cantão terá sido interpretada pelas autoridades provinciais como um claro sinal de rejeição dessa missão. Para esconder a sua cooperação e participação neste processo passível de ser considerado como uma fraude, uma irregularidade que poderia custar a carreira e até mesmo a própria vida a essas mesmas autoridades, caso fosse descoberta, houve, pois, todo o interesse em silenciar o caso. Entretanto, chegou de Pequim a ordem de deter a embaixada, tomando os seus membros como reféns até à desocupação de Malaca. Daí que, como nos informa Cristóvão Vieira, as autoridades de Cantão passassem a perseguir implacavelmente os Portugueses com todas as acusações possíveis e imagináveis e com todos os meios ao seu alcance” Revisitar os Primórdios de Macau para uma nova abordagem da História de Jin Guo Ping e Wu Zhiliang.

O presente real

Quanto aos presentes destinados ao Imperador chinês, pelas fontes portuguesas, sabemos que o embaixador Tomé Pires os levou; todavia, até agora não foi possível localizar nenhuma lista, embora haja muitas referências a eles. O que levou Rui Loureiro a colocar estas questões: “O presente para o Imperador nunca é descrito na documentação quinhentista. Por mero lapso? Ou talvez porque a missão de Tomé Pires não tinha o estatuto oficial de embaixada e, como tal, o presente que transportava não era significativo?”

De novo no Revisitar os Primórdios de Macau de Jin Guo Ping e Wu Zhiliang: “Em nosso entender, dado que a primeira missão diplomática portuguesa junto da Corte chinesa foi uma iniciativa lisboeta e o embaixador seleccionado e nomeado pelo vice-rei da Índia, o presente destinado ao Imperador da China foi preparado in loco e de modo improvisado. Talvez esta tenha sido a razão da insignificância dos presentes. No entanto, a pobreza da oferta leva-nos a crer que a primeira missão diplomática portuguesa teria mais por objectivo um reconhecimento do terreno do que apresentar-se como uma embaixada propriamente dita, como nos revela António Galvão: ” Revisitar os Primórdios de Macau. E nele continuando: “Ora, também este documento chinês tem esse mérito: o de preencher uma lacuna multissecular na historiografia portuguesa das relações luso-chinesas. Analisando o conteúdo da lista, não podemos dizer que fossem presentes preciosos em extremo. No entanto, não eram de preço menor. Para isso, é interessante ver as componentes desta relação.

O objecto que lidera o inventário é o coral em rama, que era muito apreciado na China imperial”. Mas, como objecto de maior valor que vinha no presente, para além de alguns tecidos e vidros, “os portugueses incluíram um espadagão de três gumes e outro terçado de ferro, uma escolha diplomática prudente a substituir as armas de fogo, que tanto poderiam causar admiração como suspeita.”

A observação de que “o cabecilha costumava ler livros” confirma que Tomé Pires era um homem culto e amigo da leitura” Revisitar os Primórdios de Macau para uma nova abordagem da História de Jin Guo Ping e Wu Zhiliang.

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