José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasXian Xing Hai ao serviço da Revolução [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] génio de Xian Xing Hai (冼星海), como músico e compositor, contrasta com as grandes privações e dificuldades materiais por que passou durante toda a vida e a sua luta quotidiana, levada pela vontade de aprender e de aperfeiçoamento, transmitiu-a pela acção política, aliando-a com a sua obra artística. No artigo da semana passada, escrevemos sobre a sua vida, desde 1905, quando nasceu em Macau, onde passou os primeiros seis anos, até regressar com trinta anos a Xangai, após os estudos feitos em Singapura, Cantão e Pequim e entre 1929 e 1935 em Paris. As criações durante a estadia em França marcaram a primeira das suas quatro fases musicais e “inclinam-se para o recital, o canto e a música de câmara”, como refere Wang Ci Zhao no artigo ‘A Vida e a Obra do Compositor Xian Xing Hai’ (R.C. n.º 26, II Série), de onde retiramos as citações. Já em Xangai, no Verão de 1935 começou a trabalhar no manuscrito que viria a ser a sua primeira sinfonia, terminando dois anos depois o esboço inicial da partitura da obra ‘Emancipação Nacional’, ou ‘Libertação do Povo’. Em 1936, “com o apoio de amigos conseguiu colocação na Companhia de Discos Bai Dai e na Companhia Cinematográfica Xin Hua, como compositor”, segundo Wang Ci Zhao, que adita, “Quando começou a guerra de resistência contra o Japão, em 1937, participou na ‘Associação de Canto para a Salvação Nacional’ de Xangai, como funcionário dos Assuntos Gerais. Deixou Xangai com o ‘II Grupo Ambulante de Teatro no Tempo da Guerra’ e passou por Suzhou, Nanjing, Kaifeng e Luoyang, para chegar em Outubro a Wuhan, centro da resistência”. Veiga Jardim no artigo ‘Três Compositores de Macau’, na Revista Macau de Fevereiro 1994, refere, “Nessa época turbulenta, a sua arma foi a música, através da qual retratava os anseios de liberdade da nação chinesa. Compõe neste período a obra que o tornaria imortal: a Cantata do Rio Amarelo, mais tarde transformada, por membros da Sociedade Filarmónica Central da China, no Concerto para piano do mesmo nome. Após um breve período a trabalhar em estúdios de cinema, em 1938 é apontado director da Academia de Música da cidade de Lu Hsun (Yanan).” Já Wang Ci Zhao diz, “Em Abril de 1938, ingressou na III Repartição do Departamento de Política do Conselho Militar do Governo Nacionalista, dirigida por Guo Moruo [que em conjunto com Lu Xun, pseudónimo literário de Zhou Shuren, entre 1927 e 1928 tinham desencadeado o movimento literário revolucionário] e assumiu, juntamente com Zhang Chu, as responsabilidades do Trabalho Musical da Guerra de Resistência, ao mesmo tempo que se dedica às actividades de criação musical”. Nesta segunda fase, “As criações realizadas durante a estadia em Xangai e Wuhan, de 1935 a 1938, são principalmente adaptações musicais para o cinema progressista e canções de salvação nacional. O estilo é claramente influenciado pela nova música da China, cujo autor mais representativo é Nie Er. O seu conteúdo reflecte o ardor patriótico e as exigências anti-monárquicas e anti-feudalistas”, Wang Ci Zhao. Em Wuhan, conheceu Qian Yun Ling (钱韵玲), filha de Qian Yi Shi (um conhecido membro do Partido Comunista) e a 20 Julho de 1938 celebraram o noivado, tendo Zhou Enlai patrocinado a viagem de lua-de-mel. Assim partiram de Wuhan para Xian e encontrava-se já casado quando chegou a Yanan. “Em Novembro de 1938 aceitou o convite do recém-criado Instituto de Artes de Lu Xun, de Yanan, para onde se deslocou com a mulher para desempenhar as funções de professor do Departamento de Música, assumindo a responsabilidade pedagógica dos cursos principais, nas áreas de Teoria da Composição, História da Música e Direcção de Orquestra”, segundo Wang Ci Zhao. A situação na China Desde a morte de Sun Yat-Sen em 1925, na China vivia-se tempos difíceis, ocorrendo a luta interna no Guomintang, liderado por Chiang Kai-shek (1887-1975), que em 1927 expulsou os comunistas do Partido Nacionalista. A 18 de Setembro de 1931 o exército japonês invadiu Shenyang, ocupando em quatro meses todo o Nordeste chinês (Liaoning, Jilin e Heilongjiang), cometendo graves atrocidades contra o povo chinês. Depois criaram o Estado do Manchukuo (1932-1945), com a capital em Changchun, na província de Jilin e colocaram o antigo imperador manchu Pu Yi, destronado em 1912 pela República de Sun Yat-sen, de novo como imperador, agora da Manchúria. Wang Ming (1905-1974), chefe do Partido Comunista entre 1931 a 1935, era um dirigente pró-soviético e encontrava-se quase sempre em Moscovo. Por isso, em Janeiro de 1935 Mao Zedong ficou como líder do Partido Comunista e do Exército Vermelho. Tal deveu-se aos muitos erros estratégicos de comando em Outubro de 1934, quando o Exército Vermelho teve de retirar-se das províncias de Fujian e Jiangxi, dando-se início à Longa Marcha, que ocorreu até 1936 e durante a qual os comunistas, liderados por Mao Zedong, conseguiram evitar ser aniquilados pelas tropas de Chiang Kai-shek. Dos iniciais 130 mil participantes sobreviveram 30 mil, com quem Mao montou o seu exército. Esperava-se que a Guerra Civil travada na China entre o Partido Nacionalista (GMT) e o Comunista (PCC) fosse suspensa para combater os invasores japoneses, mas tal não aconteceu. Os estudantes, descontentes com a política do Guomintang de não resistência à ocupação japonesa e virado apenas para o combate contra o PCC, a 9 de Dezembro de 1935 saíram em protesto à rua em Beiping (Beijing). Conhecido por Movimento de 9 de Dezembro de 1935, este movimento estudantil, que se estendeu a outras cidades, procurou colocar o foco na resistência à invasão japonesa. Também a tentativa do Partido Comunista, em conjunto com muitos dos líderes do GMT, para terminar com a guerra civil e combaterem juntos os japoneses, foi minada por Chiang Kai-shek. Este, tirando partido dessa aliança, tentou derrotar as forças comunistas em 31 de Outubro de 1936, quando deu ordens aos seus exércitos para atacarem o dividido Exército Vermelho, que em conjunto com as tropas do GMT combatiam os japoneses. Valeu ao Exército Vermelho os generais Zhang Xueliang e Yang Hucheng, à frente do exército nacionalista da região centro, não acatarem as ordens e assim conseguiu sair incólume do episódio conhecido por Incidente de Xian. Em 12 de Dezembro 1936, com a prisão de Chiang Kai-shek (libertado uma semana depois) e outros 12 comandantes, terminou a guerra civil, passando-se então a combater os japoneses. Mas era já demasiado tarde! A 7 de Julho de 1937 os japoneses invadiram Beijing (Pequim) e depois atacaram o resto do país. Em 12 de Novembro de 1937 conquistaram Shanghai (Xangai), tendo morrido 60 mil pessoas e daí dirigiram-se para a capital da China, Nanjing, onde o Guomintang estabelecera a sua capital em 1928. Após um cerco, a 13 de Dezembro a cidade cedeu e deu-se o massacre de Nanjing. Os japoneses ocuparam grande parte da China até ao fim da II Guerra Mundial, quando o Japão se rendeu incondicionalmente em 1945, ano em que faleceu Xian Xing Hai. “Em Novembro de 1938 aceitou o convite do recém-criado Instituto de Artes de Lu Xun, de Yanan, para onde se deslocou com a mulher para desempenhar as funções de professor do Departamento de Música, assumindo a responsabilidade pedagógica dos cursos principais, nas áreas de Teoria da Composição, História da Música e Direcção de Orquestra.” Wang Ci Zhao
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasInício de vida do compositor Xian Xing Hai [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ormalmente acontece a quem se dedica de alma e coração a uma causa, ou a um ideal, passar enormes sacrifícios e privações, tendo geralmente a saúde afectada e uma morte prematura. A maioria, após passar esta vida permanecerá incógnito e só poucos atingem o reconhecimento. Tal ocorreu com o mundialmente conhecido compositor Xian Xing Hai, autor da Sinfonia Rio Amarelo, que nasceu em Macau em 1905. O nome de Xian Xing Hai só apareceu em 1978, quando o Partido Comunista Chinês traduziu o seu nome pelo sistema hanyu pinyin (alfabeto fonético chinês vulgarmente denominado mandarim; um sistema de romanização dos caracteres da língua chinesa feito a partir da sonoridade das letras do alfabeto em língua inglesa e que a China após algumas reformas arranjou em 11 de Fevereiro de 1958). Até então e durante toda a sua vida, Xian Xing Hai fora sempre conhecido por Sinn Sing Hoi, pois era traduzido pela sonoridade do pinyin cantonense. Sinn Sing Hoi, descendente duma família de pescadores oriundos de Pan Yu (Poon Yu, em cantonense), nasceu a 13 de Junho de 1905 na Praia do Manduco, em Macau, já o pai, Xian Xi Tai (冼喜泰) falecera. Durante seis anos viveu na casa do avô feita em palafita sobre o Rio do Oeste (Xijiang) com a mãe Huang Su Ying (黄苏英) e este. Após a morte do avô e para garantir a subsistência da família, em 1911 ambos emigraram para Singapura. Aí, enquanto a mãe trabalhava como empregada doméstica, o jovem com dez anos recebeu a sua primeira educação em troca de pequenos trabalhos que realizava para a escola estabelecida pelos ingleses. Já em 1916 “entrou para a Escola Yang Zheng, mantida pelos Chineses do Ultramar, que estava sob a tutela da Universidade de Ling Nan. Nesta escola recebeu a primeira educação musical. Aprendeu a tocar instrumentos, tais como oboé e piano, sob a influência do professor Ou Jian Fu”, como refere Wang Ci Zhao. Aos 14 anos, Xian Xing Hai, acompanhado pela mãe, veio para Cantão na esperança de poder, com melhores condições, completar os estudos secundários, o que ocorreu dois anos mais tarde. Assim, em 1920 entrou na Escola Secundária da Universidade de Ling Nan em Cantão, onde depois frequentou o curso propedêutico da Universidade, enquanto dava aulas como professor para pagar os estudos e trabalhava como dactilógrafo para o sustento da família. Conseguia ainda tempo para a sua grande paixão, a música. Estudava e aprendia a sério o seu instrumento preferido, o violino, enquanto participava no grupo de sopros da escola, sendo também maestro. Afirmação como músico A viragem na vida de Xian Xing Hai ocorreu quando decidiu deixar Cantão e ir já sem a mãe para Pequim estudar música, composição e violino. Segundo Veiga Jardim, “Com poucos recursos, em 1926, viaja até Pequim, onde, através de amigos consegue obter uma melhor instrução musical bem como aulas de violino no já extinto Colégio de Artes de Pequim”. Já Wang Ci Zhao refere, “Estudou violino sob a orientação de Tuno, famoso professor russo, na Escola Nacional Especial de Arte de Pequim, dirigida por Xiao You Mei. Em Setembro de 1928, ingressou no novo Conservatório Nacional de Xangai, especializando-se em violino, mas frequentou também os cursos de Teoria Musical e Piano.” Trocando “Pequim por Xangai, onde se matricula no tradicional e rígido Conservatório de Música” (…) “após um curto período, é expulso, em função do seu envolvimento no movimento nacionalista estudantil de 1929”, segundo refere Veiga Jardim. Nesse ano, “publicou no periódico do Conservatório, um artigo intitulado A Música Universal, onde apresentava pela primeira vez a sua posição sobre a música, que viria a manter por toda a vida. Defendia: (…) <Do que a China necessita não é da música privada ou da nobreza, mas sim da música universal. (…) A pessoa que aprende música [deve] assumir a importante responsabilidade de salvar a China enfraquecida>. Durante a estadia em Xangai, conheceu o dirigente do Movimento de Teatro Progressista e participou nas actividades teatrais da Sociedade do País Meridional”, como diz Wang Ci Zhao, subdirector do Conservatório Central de Pequim à data da publicação do seu artigo sobre a vida e obra de Xian Xing Hai. Desgostoso com a expulsão do Conservatório de Xangai e sentindo necessidade de alargar os seus conhecimentos musicais, sendo apoiado por amigos, no Inverno de 1929, o jovem músico, então com 25 anos, resolveu emigrar para a Europa. Em Paris, viveu cinco anos em condições muito difíceis de sobrevivência, nada que já não estivesse habituado, pois logo desde nascença assim fora o seu fado. Veiga Jardim refere ter ele aí exercido “um sem-número de actividades que lhe garantiam o provimento para a sua subsistência, entre as quais se contam as de baby-sitter, telefonista e copista de partituras”. Conseguiu matricular-se no Conservatório Superior de Música no curso de violino com o famoso professor Paul Oberdoeffer, composição com Vincent D’Indy, teoria musical com Noel Gallon e direcção de orquestra com Labey. Mais tarde, em 1934, aperfeiçoou-se na arte de compor, quando “ingressou por meio de exame na classe superior de Composição do famoso compositor Paul Dukas. Em 17 de Maio de 1935, Dukas faleceu subitamente. Xian Xing Hai foi obrigado a interromper os estudos e regressou ao seu país no Outono do mesmo ano. Aquando da estadia em Paris, compôs a obra ‘Vento’, para soprano, oboé e piano e a Sonata para Violino em Ré Menor. ‘Vento’ foi apresentada em Paris, onde recebeu crítica muito positiva”, segundo Wang Ci Zhao. Datam ainda desta época várias peças para piano solo. “Após sete anos em França, e num estado de extrema pobreza que, em absoluto, não o impediu de continuar a compor abundantemente, decide, em 1935, retornar à China, no desejo de encontrar novas oportunidades”, como refere Veiga Jardim. Após concluir os seus estudos regressou à China em 1935 e em Xangai ao ver o seu país a ser invadido pelos japoneses, juntou-se à luta de resistência. Veiga Jardim refere, “A opressão pela qual passava o seu povo, fizeram com que viessem à tona as memórias do tempo das revoluções estudantis em Xangai. A partir de então, movido por um altíssimo espírito patriótico, engaja-se no movimento emancipador escrevendo uma série de obras de cariz nacionalista”. Escreveu durante esta época mais de 300 canções, na maioria música de intervenção de cariz patriótico contra os invasores nipónicos. Com um grupo de teatro de que ele foi um dos impulsionadores, viajou para várias partes da China levando a mensagem de conforto e encorajamento à população na sua luta contra a dominação japonesa.