Celebrações

[dropcap style=’circle’]Q[/dropcap]uando lágrimas ou sorrisos, de alguma maneira, me ofendem sei chegado o tempo de partir. Permanecer seria vão e as linhas traçadas na curta espera desta macedónia de gente mostram-se recta sem sentido. Lanço às palavras a alma, que não tenho, na ânsia súbita de agarrar. De aqui podar o excessivo, simplificar o caminho que sei não levar a lado nenhum. Detesto celebrações.

Bogart chamaria a estes eventos uma “amateur night” – leio no Facebook e concordo com avidez. No meio de todo o ruído, sabe bem não estar totalmente sozinho e encontrar, ainda que morto, um irmão cujas ideias flutuam ainda no ciberespaço.

Nunca me conformei à necessidade de divertimento compulsório. Admito que seja por espírito de contradição, mas quando se impõe a festa quase imediatamente me advêm pensamentos tristes, deprimentes, e não há álcool que os apaguem, nem música que os afugentem. Permanecem por ali, num lugar recuado da mente, enquanto sorrio para todos e desejo votos de qualquer coisa. Não têm qualquer substância particular, nem conteúdo específico. Passado pouco tempo, sinto sempre que é melhor bater em retirada. E mesmo se alguém verdadeiramente amigo me contacta, prefiro mergulhar no mar da solidão que nesses momentos me habita.

Fogem-me as palavras e são-me penosos os sorrisos. É talvez um mero relato de não estar em parte alguma, de vegetar dentro de mim, sem vontade de sair do invólucro a que me destino como caixão antecipado. Nesta proximidade à morte, não seria claramente uma boa companhia para ninguém, como não o sou sequer para mim. Daí que me outorgue este estranho direito de ficar sozinho, saborear a inutilidade do tempo, a vacuidade das datas e reforçar a ideia de que não passam de um esforço ridículo de quem realmente teme, em silêncio, a morte.

Sentiria também, se me vestisse para a festa, que estaria a fazer a minha “toilette de cadáver”, como dizia Pessanha. Afinal, preparar-me para os outros ao espelho é como preparar-me para enfrentar o vazio frio da eternidade. Desse tempo que existiu antes de mim e que existirá depois de eu partir. Assim, fico nesta consciência de uma efemeridade que só a dor engrandece, na sua inutilidade e paradoxo; e só o prazer do amor e da beleza eventualmente riscam uma justificação. Será pouco, muito poucochinho e talvez esta constatação me enfureça subtilmente e desta raiva calada emerge então uma disposição solitária.

Agrada-me, por outro lado, ficar à janela enquanto a cidade vibra e os foliões desesperam na grande e programada demanda do esquecimento. Sobe-me à garganta alguma ternura pelos humanos, pela sua corrida angustiada e de sentido circular. Estranho paradoxo este de procurar não ser para ter uma sensação mais absoluta de ser qualquer coisa. Afinal, será esta grande festa uma recriação de um caos original, apenas pressentido, em que se tornava claro não passarmos de matéria estelar.

Cumpro algumas das obrigações, presto algumas das deferências a que a minha condição social obriga. É preferível assim do que depois ter me desfazer em estúpidas, eventualmente mentirosas, justificações. Depois, rapidamente, me recolho, pondo o telefone em silêncio, respiro mais fundo e mais livre no conforto desta gruta a que chamo casa e prometo a mim mesmo nada determinar das minhas acções futuras.

Sei lá quanto me espera neste espaço de tempo a que chamamos um ano. Não o temo nem o desejo, não me inspira nem me desespera. Aceitarei sem remorso o que as coincidências me aportarem. Não estarei preparado para nada, pois sei que a todo o momento depararei com uma curva e pouco imagino sobre o que estará para além dela. Intimamente, muito intimamente, sorrio porque foi desta ignorância que aprendi há muito a fazer a minha liberdade. E – imaginem! – por uma centelha deste tempo, por um instante de eternidade, fui realmente feliz.

Ainda bem que, amanhã ao acordar, já terei esquecido tudo isto.

27 Set 2016

O Clube dos Poetas Mortos

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap]este sem dúvida um belo filme, mas a particularidade é que ele gira em torno do poeta Walt Whitman, desde a sala de aula com a sua fotografia de fundo, imagem tutelar, bem como o que domina depois o espírito do filme, o poema magnífico de «Oh, Captain, my Captain» para nós, toda aquela insubordinação e camaradagem perante uma austera estrutura nos traz particularmente à memória outros Capitães. Aqueles de uma manhã que bem poderia ser um poema de Whitman. Tal como no filme, os capitães abandonam o palco onde nasceram punhados de coisas incríveis e, convidados a sair, existirão contudo alguns soldados que se levantarão prestando-lhes a homenagem merecida, os outros, nem tanto, entrando em silêncio no ritmo das coisas interrompidas, e o poema agora, começa a fazer real sentido, como de uma antevisão o poeta nos falasse.

O meu Capitão não responde, os seus lábios estão pálidos e imóveis.
O navio ancorou são e salvo a viagem terminou e está concluída.
Mas eu com passo desolado caminho no convés onde jaz meu Capitão.
Tombado, frio e morto.

Este poema é quase um alegoria a todo um tecido social, é uma visão precisa, belíssima, e traz em si a morte do poeta, do capitão. Whitman fora jornalista e ensaísta também, em seu tempo, e considerado o pai do verso livre, a sua obra está centrada em «Leaves of Grass» havendo dela várias edições com acrescentos numa mesma colectânea. Fernando Pessoa teceu-lhe várias homenagens dizendo que a sua poesia influenciou toda a posterior, e sem dúvida a sua própria, referindo-se à sua verve como um profundo hino à vida. Portanto, Witman é também um pioneiro, um poeta que se destaca por uma liberdade que ajuda a libertar os seus pares. Nunca esteve parado numa vida alegadamente susceptível ou contemplativa, foi um guerreiro, trabalhando para o exército como voluntário em hospitais militares, mas toda a compilação de « Leaves of Grass» agora com novos poemas acerca da Guerra Civil e da sua experiência, valeram-lhe um despedimento por indecência da parte do Departamento do interior. A partir de aqui, segue a sua pobreza que alguns admiradores e amigos tentam colmatar.

A vida deste “Capitão” é a de um poeta, acrescentando páginas a um livro, pois que um poema nunca está concluído , tendo sempre sínteses fantásticas de um mesmo nomear. Estamos numa trincheira, num vapor violeta que não sucumbe ao ultraje numa maré viva de bem conduzir a Barca, numa realização suprema. Sem estes acrescentos, sem esta caminhada de um percurso constante, não há comando possível, dado que as viagens, não raro distraem o viajante acerca do propósito inicial, e muitos vêm morrer à praia contemplando o horizonte por que nada tinham a dizer. Mesmo Ulisses na sua permanência pela Ilha Encantada, não se esquecera de Penélope, pois que há homens como sonhos e heróis como poetas.

Salgueiro Maia, foi arquetipicamente este Capitão, e por isso, devemos alguma reflexão aos mitos de natureza poética, dado que eles representam os Homens e sagram vencedora aquilo a que apelidamos de Humanidade. Talvez as manhãs nubladas tragam o «Desejado» que depois de materializado é esquecido, como as próprias nuvens e os sonhos. Os Clubes, mantemo-los, para que nos oiçam para fora do tempo como uma invocação, um treino, uma vontade. Com mais tempo, ter-lhe-íamos dado uma forma mais precisa, mas, há tempos que não se interligam, nem andam pela mão nas coisas correntes.

Nos socalcos que transpomos e nas vidas que habitamos, faltam-nos os Cânticos e o «Cântico de mim mesmo» um Juan de La Cruz, um Salomão…. Falta-nos de novo entrar neste segredo imenso onde só os Clubes se distinguem à revelia das escutas em surdina de uma forma gasta. E, por que os Capitães são jovens e o grupo um núcleo de um coração para todos, o próprio Witman nos diz:

Oh, instante da juventude! Elasticidade infatigável!
Oh, equilibrada virilidade, florida e plena.

para depois:

Velhice soberana que desponta! Bem-vinda sejas, inefável graça dos dias que morrem!

A nossa seiva já não tem a mesma sede, a nossa guerra não tem já inimigos, o nosso tempo contempla a sorte de termos vivido o momento de um rito que um Clube de homens parecidos a Aquiles nos fizeram viver num poema em carne viva. Perante factos assim, não se deve julgar, há coisas que acontecem como dádivas, instantes de amor. Julgar, é não compreender. Depois, não somos juízes, e esta é de facto para muitos uma causa alheia.

Comum, têm-se as ideias, as formas de vida, os ritmos quotidianos, alguns pequenos Clubes e uma língua que se esforça, de incomum, temos aqueles que são incomuns, que nos lembram algo que quando estamos tentados a esquecer, renasce, para nos relembrar:

Um chamamento no meio da multidão
É a minha própria voz, avassaladora e final.

Temos medo, sim, de ter afugentado estas sedes, estas fomes, estas forças, que elas por descaso e tristeza se tenham afastado de nós, temos vazios tão duros como balas, e uma paz que se sustem só em conforto, temos medo, muito medo, pois que sabemos que ultrapassámos um limite onde podemos vir a não ser contemplados. Por isso, se os invocarmos, estamos a nomear os caminhos por onde eles retornarão. Ficar sem a sua presença é pior que tudo e o nosso esforço nunca será recompensado se não tivermos acesso a uma pequena fimbria dos seus “Clubes.”
Eles também vêm para o Banquete.

Um Banquete vivo de uma temporada que nos galvanizará para sempre.

A ti, peito que apertas outro peito!
A ti, emaranhada sebe de cabeça, barba e músculo!
Gotejante seiva de ácer! Fibra de trigo viril, a vós!
A vós, ventos que me roçais com vossos genitais!
A vós, amplos campos musculares, ramos de azinheira vadiando amorosamente nos meandros dos meus caminhos.

5 Abr 2016

K’ang-Hsi, imperador da China, revela segredo do sucesso da sua governação

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]hegou ao poder muito novo e há quem diga que existiram vários sinais que previam a sua coroação e reinado. Quer dizer aos leitores de Macau algo sobre isto?
O meu nascimento foi tudo menos miraculoso – nada de extraordinário aconteceu enquanto cresci. Cheguei ao trono com oito anos. Nunca permiti que se falasse de influências sobrenaturais do género das que se encontram registadas nas Histórias: estrelas da sorte, nuvens auspiciosas, unicórnios e fénixes, a erva chih e outras bênçãos, ou queimar pérolas e jade em frente do palácio, ou livros celestes enviados para manifestar a vontade do Céu. Tudo isto não passam de palavras vãs e não posso ir tão longe nas minha presunção. Limito-me a viver cada dia de uma forma normal concentrando-me em governar bem.

É fácil, durante toda a vida, exercer constantemente o poder?
Dar e tirar a vida. São esses os poderes do imperador. Ele sabe que os erros dos funcionários administrativos em departamentos do governo podem ser rectificados mas que um criminoso que foi executado não pode ser ressuscitado. Assim como uma corda cortada não pode de novo ser unida. Sabe, também, que por vezes as pessoas têm de ser chamadas à moralidade através do exemplo de uma execução. Em 1683, depois da captura de Taiwan, discuti com os sábios da corte a imagem do 56º hexagrama do Livro das Mutações, “Fogo na Montanha”. A calma da montanha significa o cuidado que se deve por na imposição de penas; o fogo move-se rapidamente, queimando a erva, tal como os processos, que devem ser resolvidos com celeridade. A minha leitura é que um regente necessita ao mesmo tempo de clarividência e cuidado no castigar. A sua intenção deverá ser castigar de forma a evitar a necessidade de mais castigo.

Kangxi_Emperor2No seu tempo a corrupção era um problema. Quer falar-nos de alguns casos mais relevantes?
Hu Chien-ching era um subdirector do Tribunal de Adoração Sacrificial cuja família aterrorizava a sua região natal em Kiangsu, apoderando-se de terras, mulheres e filhas alheias e assassinando pessoas depois de as acusar falsamente de roubo. Quando finalmente um cidadão vulgar conseguiu demonstrar a sua culpa, o Governador considerou o caso longamente e o Conselho de Castigos recomendou que Hu fosse demitido e exilado por três anos. Eu, por outro lado, ordenei a sua execução, com o resto da família, na sua terra natal para que todos pudessem observar a minha visão de tal comportamento. O cabo Yambu foi condenado à morte por alta corrupção nos estaleiros navais; não só concordei com a pena como enviei o oficial da guarda Uge para supervisionar a decapitação, ordenando que todo o pessoal dos estaleiros, dos generais ao mais baixo soldado, se ajoelhasse em armadura completa e ouvisse o meu aviso de que o seu destino seria a execução se não pusessem fim à sua perfídia.

Mas a pena de morte… Hoje em dia há quem seja contra…
Em tempo de guerra deve haver execuções para castigar a cobardia ou a desobediência. A penal capital da morte lenta deve ser aplicada em casos de traição, tal como o Código Legal determina.

Está então à vontade quando envia um homem para a morte?
De entre as coisas que considero desagradáveis, nenhuma outra é pior do que dar o veredicto final sobre as sentenças de morte que me são enviadas para ratificação depois das sessões de Outono. Os relatórios de julgamento devem ser todos verificados pelos Secretários Superiores, no entanto, encontram-se ainda erros de caligrafia, ou mesmo passagens inteiras incorrectamente escritas. Isto é indesculpável quando se lida com a vida e a morte. Apesar de, naturalmente, me ser impossível examinar cada caso em pormenor, tenho, ainda assim, o hábito de ler as listas no palácio todos os anos, verificando o nome, registo e estatuto de cada homem condenado à morte e a razão por que lhe foi aplicada tal pena. Depois, verifico de novo a lista na sala de audiências com os Secretários Superiores e o seu pessoal, decidindo quais podem ser poupados.

Quando julga alguém, que princípios aplica?
É um bom princípio procurar sempre os aspectos bons de uma pessoa ignorando os maus. Quando se suspeita constantemente das pessoas estas acabam por suspeitar de nós.

Mesmo quando se trata de Chineses (han)?
Tentei ser imparcial entre Manchu e Chineses, não os separando nos julgamentos.

Mas confiava plenamente nos seus oficiais chineses?
Avisaram-me para não nomear o Almirante Shih Lang para liderar a campanha contra Taiwan por ter servido antes a Dinastia Ming e tambémo rebelde Coxinga e, logo, poder revoltar-se se lhe desse navios e tropas. Mas uma vez que os restantes almirantes Chineses asseguravam que Taiwan nunca seria tomada, chamei Shih Lang para uma audiência e disse-lhe pessoalmente: “Na corte dizem que te revoltarás quando chegares a Taiwan. É minha opinião que enquanto não fores enviado a Taiwan a ilha não será pacificada. Não te revoltarás, garanto-te.” Shih Lang capturou Taiwan num ápice e provou ser um oficial leal. Apesar de arrogante e desprovido de instrução, compensou esses defeitos pela prontidão e ferocidade das suas capacidades militares. Os seus dois filhos têm-me servido com distinção.

Qual a sua visão sobre a queda da dinastia Ming?
Passaram-se coisas absurdas durante os Ming: quando, no fim da dinastia, o Imperador Ch’ung-chen aprendeu a montar tinha dois homens para segurarem o freio, dois para os estribos e dois para o arreio de garupa – mesmo assim caiu mandando aplicar quarenta chicotadas ao cavalo e enviando-o para trabalhos forçados num posto militar. Do mesmo modo, quando uma pedra para ser usada na construção do palácio não passava na Porta Wu-men, Ch’ung-chen mandava aplicar-lhe sessenta chicotadas.

Alguma loucura… mas os seus ritos imperiais também exageram…
O imperador tem de suportar o elogio com que o cobrem e que enche os seus ouvidos e que não lhe é de melhor uso do que a chamada “medicina-restaurativa”. Essas banalidades evasivas asseguram o mesmo sustento que a pastelaria fina e rapidamente se tornam enjoativas.

A balofice, pelos vistos, não funciona consigo. E exageros intelectuais também não.
Se desejar, conhecer algo tem de o observar ou experimentar em pessoa. Se afirma conhecer algo com base em ouvir dizer, ou por o descobrir num livro, será motivo de riso para aqueles que realmente conhecem. Demasiadas pessoas afirmam conhecer as coisas quando, na verdade, nada sabem acerca delas. Desde a minha infância tenho procurado descobrir as coisas por mim mesmo em vez de fingir possuir conhecimento quando ignorante. Sempre que me encontrava com pessoas mais velhas inquiria acerca das suas experiências e recordava o que me diziam. Mantenha uma mente aberta e aprenderá coisas. Perderá as boas qualidades dos outros se apenas se concentrar nas suas próprias capacidades.

Para si, a experiência parece ser fundamental.
A nossa ideia de princípio deriva mais da experiência do que do estudo, embora devamos dedicar a mesma atenção a ambos. Afinal, muitas pessoas chamam antiguidades a velhos recipientes de porcelana mas se pensarmos em recipientes do ponto de vista do princípio sabemos que foram a dada altura feitos para ser usados. Apenas no presente nos parecem gastos e impróprios para deles bebermos e, por fim, acabamos por colocá-los nas nossas secretárias ou prateleiras, contemplando-os de quando em vez. Por outro lado, podemos alterar a função de um objecto e, portanto, alterar a sua natureza. Como fiz ao converter uma espada inoxidável que os Holandeses certa vez me ofereceram numa régua que mantinha sobre a minha secretária. Tal como o Jesuíta António Tomás observou, tratou-se de converter algo que transmitia medo em algo que proporcionava prazer. O raro pode tornar-se comum, como acontece com os leões e animais que os embaixadores estrangeiros gostam de nos oferecer e a que os meus filhos se acostumaram. Na guerra é a experiência da acção que conta. Os chamados Sete Clássicos Militares estão recheados de disparates sobre água e fogo, presságios e conselhos sobre o tempo, todos aleatórios e em contradição. Disse uma vez aos meus oficiais que quem seguisse estes livros nunca ganharia uma batalha.

Kangxi_EmperorFalou de um jesuíta. Vários frequentaram a sua corte. Aprendeu muito com eles, sobretudo na Matemática e Astronomia?
Apesar dos métodos Ocidentais serem diferentes dos nossos, podendo mesmo ser vistos como um seu melhoramento, há neles pouco de inovador. Os princípios da Matemática derivam todos do Livro das Mutações e os métodos Ocidentais são de origem Chinesa: a Álgebra – “A-erh-chu-pa-erh”– nasce de uma palavra Oriental.

Claro, tudo tem origem na China… Mas esses jesuítas tentavam conhecer a cultura chinesa.
Nenhum dos Ocidentais está realmente à vontade com a literatura chinesa – à excepção talvez do Jesuíta Bouvet, que leu muito e desenvolveu a capacidade de conduzir um estudo sério do Livro das Mutações. Muitas vezes não conseguimos impedir sorrir quando eles iniciam uma discussão. Como podem falar acerca “dos grandes princípios da China”? Por vezes, agem erroneamente por não estarem acostumados aos nossos hábitos, outras vezes são induzidos em erro por Chineses ignorantes – o enviado papal, de Tournon, usava caracteres mal escritos nos seus memorandos, empregava frases impróprias e assim em diante.

Estou a ver que ainda não esqueceu a Questão dos Ritos, na qual discordou com o Cardeal de Tournon.
Sobre a questão dos Ritos Chineses que podiam ser praticados pelos missionários Ocidentais, de Tournon recusou-se a falar, embora lhe tivesse enviado mensagens repetidamente. Concordei com a fórmula que os padres de Pequim estabeleceram em 1700: que Confúcio era honrado pelos Chineses como um mestre mas que o seu nome não era invocado em oração com o propósito de obter felicidade, promoções ou riqueza; que o culto dos antepassados era uma expressão de amor e recordação filial, cuja intenção não era obter protecção para o autor do culto e de que não havia a ideia de que ao erguer uma tábua ao antepassado a sua alma nela residia. Quando eram oferecidos sacrifícios aos Céus estes não eram endereçados ao céu azul, mas sim ao senhor e criador de todas as coisas. Se de Tournon não respondeu, o Bispo Maigrot fê-lo dizendo-me que o Céu é uma coisa material e não devia ser adorada e que se devia apenas invocar o nome de “Senhor do Céu” para mostrar a reverência apropriada. Maigrot não era somente ignorante da literatura Chinesa: não conseguia sequer reconhecer os mais simples caracteres chineses. No entanto, decidiu discutir a falsidade do sistema moral Chinês.

O Papa queria impor-lhe um representante, não é verdade?
Não compreendo o que quereis dizer com ‘um homem da confiança do Papa’. Na China, ao escolhermos pessoas não fazemos tais distinções. Alguns estão próximos do meu trono, outros a meia distância e outros mais longe. Mas a qual deles poderia confiar qualquer incumbência se houvesse a mais pequena falha da devida lealdade? Quem de entre vós se atreveria a enganar o Papa? A vossa religião proíbe-vos de mentir, aquele que mente ofende a Deus. O enviado respondeu: “Os missionários que aqui habitam são homens honestos, mas falta-lhes o conhecimento interno da Corte Papal. Muitos enviados de outros países convergem para Roma, sendo experientes em negociações e, por isso, preferíveis aos que aqui se encontram.” Então disse-lhe: “Se o Papa mandasse um homem de conduta impecável e dons espirituais tão excelentes quanto os dos Ocidentais que aqui estão agora, um homem que não interferisse com os outros ou os tentasse dominar, ele seria recebido com a mesma hospitalidade que os outros. Mas se dermos a um tal homem poder sobre os outros, como haveis solicitado, haverão muitas e sérias dificuldades. Encontrastes aqui Ocidentais que passaram quarenta anos connosco e, se mesmo esses ainda não têm um conhecimento perfeito dos assuntos imperiais, como poderia alguém tão recentemente transplantado do Ocidente fazer melhor? Ser-me-ia impossível dar-me com ele como me dou com estes. Precisaria de um intérprete, o que implica desconfiança e embaraço. Um tal homem nunca estaria livre de erro e, se fosse nomeado líder de todos, teria de suportar qualquer culpa incorrida pelos restantes e pagar o preço de acordo com os nossos costumes.”

A verdade é que Vossa Excelência nunca foi convertido ao catolicismo.
As suas palavras não eram diferentes dos mais tresloucados ou impróprios ensinamentos de Budistas e Taoístas, porque deveriam ser tratados de forma diferente?

Então se não acredita no Deus cristão, pelo menos acredita no destino?
O destino surge das nossas mentes e a nossa felicidade é procurada em nós mesmos. Daí serem feitas previsões a partir do curso dos planetas acerca do casamento e da fortuna, descendentes, carreira e o passar dos anos – no entanto, estas previsões não chegam muitas vezes a realizar-se na experiência posterior. E isto porque se não desempenharmos o nosso papel humano não poderemos compreender o caminho do Céu. Se o astrólogo diz que serás bem sucedido, poderás então dizer: “Estou destinado a sair-me bem e posso dispensar os estudos?” Se aquele afirma que enriquecerás, poderás sentar-te e aguardar a riqueza? Se te oferece uma vida livre de desgraça, poderás ser temerário? Ou ser debochado sem risco apenas por que diz que viverás muito e em saúde?

il_570xN.758050173_12idComo encara o seu reinado?
Estou a aproximar-me dos setenta e os meus filhos, netos e bisnetos são mais de 150. O país está relativamente em paz e o mundo está em paz. Mesmo que não tenhamos melhorado todas as maneiras e costumes e tornado toda a gente próspera e feliz, trabalhei com incessante diligência e intensa vigilância, nunca descansando, nunca ocioso. Durante décadas exauri todas as minhas forças, dia após dia. Como poderia tudo isso ser resumido numa frase de duas palavras como “trabalho árduo”?

Deixa uma extraordinária herança. Qual foi o seu segredo?
Todos os Antigos costumavam dizer que o Imperador se devia preocupar com princípios gerais mas que não devia lidar com pormenores. Não posso concordar com isto. O tratamento descuidado de um assunto pode trazer consequências nefastas ao mundo inteiro, um momento de distracção pode causar danos a todas as gerações futuras. A falta de atenção aos pormenores acabará por colocar em risco as nossas maiores virtudes. Por isso dedico sempre a maior atenção aos pormenores. Por exemplo, se negligenciar alguns assuntos hoje e os deixar por resolver, amanhã existirão mais assuntos para resolver.

Está portanto satisfeito com o seu desempenho?
Desfrutei a veneração do meu país e as riquezas do mundo. Não há objecto que não possua, nada que não tenha experimentado. Mas agora que atingi a velhice não consigo parar nem um momento. Por isso, considero o país como um sandália usada e todas as riquezas como lama e areia. Se morrer sem que tenha havido uma erupção de distúrbios, os meus desejos terão sido satisfeitos. Desejo que todos vós oficiais se recordem que fui o Filho do Céu portador da paz por mais de 50 anos e o que vos repeti, vez após vez, foi realmente sincero. Então, isso terá completado um fim digno da minha vida. Nada mais direi.

Na próxima segunda-feira, a Livros do Meio lança “Imperador da China – Autobiografia de K’ang-Hsi”, na Fundação Rui Cunha, pelas 18h30. A apresentação da obra será feita por Carlos Morais José.

15 Jan 2016

Macau – Manual da sobrevivência

Está em Macau há pouco tempo? Não está mas pensa vir? Não vem cá há muito tempo ou tem curiosidade sobre o lugar? Então aqui fica um manual incompleto de sobrevivência, de A a Z, completamente parcial e sem a mínima preocupação de ser politicamente correcto. Alguns termos são contraditórios. Mas é assim mesmo

A

Advogados – Espécie muito populosa; Todos têm pelo menos um amigo que é.
Ácido – Arma dos pobres.
Activistas – Indivíduos que não entram em Macau.
AL – Câmara dos horrores.
Alcatraz – Desde há uns anos sinónimo de Macau para algumas pessoas.
Ambiente – Departamento do governo.
Andaimes – Eram de bambu e funcionavam na perfeição. São cada vez menos quiçá por força de algum lobby do metal, quiçá por alguém achar pouco moderno.
Ar Condicionado – Sistema de suporte de vida, sempre a menos de 18º.
Arriscar – Sentimento completamente riscado da praxis local. Normalmente associado à exclamação: “Nem pensar!”
ASAE – Nem nada que se pareça.
Associações –Algumas têm utilidade pública de facto mas a grande maioria são grupos de uma pessoa desenhadas para acesso a dinheiros públicos. “Sem tostão? Queres promoção? Monta uma associação” é o lema. Todas têm estatutos mas poucas os cumprem.
Associação Comercial de Macau – Governo sombra.
Austeridade – Moda Europeia importada para dar um ar internacional à cidade.
Autocarros – Públicos: transporte barato que chega a todo o lado injustamente desvalorizados; Privados: praga.
Automóvel – Objecto de estimação (convém ter mais do que um por agregado); Objectos responsáveis pelo aquecimento global da cidade; Algo que é mais importante do que uma pessoa.

B

Barriga – O que serve para empurrar (hábito local muito popular).
Biblioteca Central – Elefante branco em formação; Como gastar 900 milhões numa obra inútil.
Bicicleta – Objecto inútil.
BNU – Tubo de oxigénio da CGD.
Bo Zai Fan – Arroz em pote de barro com salsicha chinesa, pedaços de porco ou vaca ou o que o cozinheiro lhe der na mona. Comida de Cantão mas especialmente bem feita por aqui. Há um sitio onde é melhor do que em todos os outros. Não, não digo onde, tem poucas mesas.
Bolinha – Jogo aproximado ao futebol conde o campo e as balizas são mais pequenas mas a bola é do mesmo tamanho, por incrível que pareça
Buffet – Mania local (ver também D – Desperdício)
Buzinas Automóveis – Fenómeno recente. (ver C – Carro e T- Trânsito)

C

Camões – “Ninho dos Pombos Brancos” em Chinês.
Cantão – A grande fábrica aqui do lado.
Cantopop – Versões intermináveis de um mesmo tema composto nos anos 80 do século passado
Cantonês – A língua da terra por mais que nos queiram mandarinizar.
Cantopop – Versões intermináveis de uma mesma música inventada no século passado.
Carro – Objecto de estimação; Convém ter mais do que um por agregado para se estar “in”; Objectos responsáveis pelo aquecimento global da cidade.
Casinos – Orçamento.
CCAC – Forma de ameaça (Ex.: “Olha que vou ao CCAC!”).
Chefe do Executivo – O máximo chefe visível.
Choi – Há muitos mas há que perceber as diferenças.
Chu Chai Pao – Quer uma carcaça? É esta, só “pao” e sai um pão qualquer. Algumas são horríveis, outras muito boas. É como em Portugal.
Chu Pá – Costeleta de porco; também serve para designar uma mulher feia; (Experimente chamar isso às suas amigas chinesas e vai ver o que lhe acontece)
Coloane – Lá longe.
Comida – Desporto popular.
Consulta Pública – Pró-forma.
Corpos – Estrutura orgânica de base de carbono que aparecem com frequência a boiar aqui ou acolá.
Corrupção – Mito urbano.
COTAI Strip – Região Casinística Especial de Macau ou Centro Económico de Macau; Nevadasismo.
Cretinos – Espécie muito populosa. Encontram-se um pouco por todo o lado com uma particular incidência em lugares de tomada de decisão.
Criatividade – Canecas estampadas.
Construção civil – Uma das três actividades de Macau, as outras duas são Jogo e Comércio de Retalho
Cuidados de Saúde – Forma composta da expressão “Cuidado!”
Cultura – Dinheiro; Conceito vago e abstracto

D

D2 – “Fazer o quê?”; Lugar onde se consomem apenas bebidas de lata, senão… (ver letra C “Cuidados de Saúde”); Prostíbulo dançante.
DD – Ressaca fortíssima.
Decidir – Actividade de risco.
Democracia – Conceito vago em que ninguém acredita. Pronto, meia dúzia.
Dengue – Há mas podia ser pior.
Deputados – Pessoa normalmente de baixo nível que não compreende grande coisa sobre coisa nenhuma; Desconhecido
Desperdício – Resultado prático dos milhares de buffets servidos diariamente na cidade.
Diu! – Palavra muito popular que tem vindo a ocupar progressivamente o espaço da expressão mo man tai (ver letra M). Muito usada, tal como em português utilizamos o “foda-se” porque quer dizer exactamente a mesma coisa.
Diversificação Económica – Mito urbano.
Docas – Saudosismo de lisboetas; Lugar onde se ouve péssima música.
Dome – Versão local de um elefante branco.

E

“É Assim” – Expressão normalmente antecedida da palavra “Macau” e utilizada para explicar o inexplicável.
Ego – Um animal de estimação alheio comum que se deve alimentar selectivamente para subir na vida;
Eleições – Comédia popular realizada a cada quatro anos.
Elites – E o resto é conversa.
Ensino – Eufemismo. Actividade realizada no estrangeiro (ver também P – “Prego”).
Erre – Forma infalível de fazer um chinês babar–se. Literalmente.
Escolas – Forma popular de fazer dinheiro à custa do erário público.
Escola Portuguesa de Macau = Molho de brócolos.
Esplanada – Nem pensar nissoEstrangeiros – Bem vindos desde que fiquem mais de dois dias e menos de uma semana;
Estrangeiros – Bem vindos desde que fiquem mais de dois dias e menos de uma semana.
Estrelas de Hong Kong – Mercadoria promocional.
Exótico – Uma questão de perspectiva. Ideia que nos apercebemos depois de vivermos aqui um tempo (Ex.: O que é mais exótico? Uma igreja ou um templo?).
Extremo Oriente – Mito colonialista. Igual a dizer que Portugal fica no extremo ocidente.

F

Fachada – Património; Forma de estar.
Fai Chi – Essencial para ingerir comida chinesa. Nem sabe ao mesmo de outra forma. Mesmo! Por falta de imaginação, que nem 400 anos de presença portuguesa resolveram, nós chamamos-lhe “pauzinhos”.
Fai Chi Kei – Por muito que pareça não é nenhum paraíso dos “fai chi” mas sim um bairro onde se torturam cães.
Fama – Essencial.
Fala-barato – Alcunha dada pela malta local a Alexis Tam, Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura. Vá–se lá saber porquê…
Fat Siu Lau – A versão local do “deitar-se à sombra da fama e descansar.”
Fei Jai – Forma carinhosa de chamar gordo a um homem ou rapaz.
Fei Lo – Gordo e velho; Forma menos carinhosa de chamar gordo a um homem; Chefe do Executivo.
Feira Internacional de Macau – Mercado de rua armado em fino.
Festival da Gastronomia – Arraial saloio de má catadura.
Ferreira do Amaral – Palavrão em chinês.
Festa da Lusofonia – Uma forma hábil de deixar os selvagens entreterem-se uns com os outros; Exótico (ver letra E). Bodo aos pobres.
Festival de Artes – O que costumava ser bom; Cultura institucionalizada para assistir sentado, sem fumar e sem mexer.
Filipino – Pessoa apenas com direito a trabalhar. Burro de carga.
Filipina – Pau para toda a obra; Ódio de estimação das mulheres portuguesas.
Fiscal do Tabaco – Cães de fila; Paladinos (para o Governo).
Fôdásse – Forma exótica de dizer “Diu”.
Fogo de Artificio – Por tudo e por nada; Final seguro para filmes institucionais. Substituto do ópio.
Fong Sói – Primeiro estranha-se, depois entranha-se.
Fórum de Macau – Sopa dos pobres.
Fumadores – Bandidos perigosos.
Fumar – Crime hediondo.
Funcionário público – “Yes person” (ver letra P – “Pregos”).
Fundação Macau – A versão local da lenda irlandesa do pote de ouro no final do arco íris. Acessível a viajantes experimentados.
Fundação Oriente – Antigo pote de ouro, agora vazio.
Futebol – Actividade desportiva local vagamente semelhante à original.

G

Gnnnnnnnh! – Contrição diária gerada pela interacção com cretinos (ver letra C).
Guangdong – O verdadeiro nome da província que insistimos em chamar de Cantão.

H

Harmonia – Eufemismo; Jargão de político.
– Fixe. Tudo bem.
– Hós há muitos, seu palerma! Saber distinguir é preciso.
Hó Lan Yun – Rua dos Holandeses. A prova que eles andaram mesmo cá apesar de nós tentarmos disfarçar com o poético nome de Rua do Campo.
Ho Lan Tak – Forma fixe de dizer “fixe” na forma grosseira
Ho Tak – Forma fixe de dizer “fixe”.
Hong Kong – Ódio de estimação; Atracção fatal.
Hospital Público – A melhor campanha de marketing para as clínicas particulares. Também conhecido por “o único”.
Hospital da Taipa – Sinónimo de miragem.

I

I Má Lô – Mini Tailândia.
I Min – Quer esparguete? É este.
Ideias – Artigo cobiçado e alvo de roubos frequentes
Igrejas – Em tempos rivalizaram com o número de casinos per capita mas há muito perderam a guerra; Cenários preferidos para fotos de casamento.
Imbróglio – Marcar uma consulta em tempo de vida no hospital público.
Imobiliárias – Agiotas encartados.
Improvável – Nem por isso.
Incompetência – Forma local de competência.
Incrível – Notícias que surgem em ritmo quase diário na imprensa.
Indonésio – Filipino mais barato.
Instituto Cultural – Cultura institucionalizada.
Inveja – Prato do Dia.
Irreverente – Inconveniente.

J

Jai Alai – Jai era. Antigo fornecedor de namoradas tailandesas.
Jardim – Nome de prédio. Forma poética de baptizar os prédios que substituíram os jardins; “É como se fosse”.
Japoneses – Amados ou odiados, depende da fase; Restaurantes de sucesso.
Javalis – Turistas campónios do continente.
Justiça – Conceito vago e elitista.

K

Kon Chau Ngao Hó – Massa com carne. Imprescindível.
Kruatech – Comida tailandesa; Noites longas dos tempos áureos do Jai Alai.

L

La – Forma de enfatizar uma ideia. Porque sim.
Labrego – Palavra constituinte do slogan não oficial de Macau (”Macau, liberte o labrego que há em si”).
Lat Jiu Iao – Molho picante oleoso. Em lado nenhum se faz como em Macau. Tudo o resto são imitações de baixo quilate.
Lecas – Paus; Mocas; Biscas.
Lei Hon Kei – Lugar onde se serve a melhor comida cantonesa da cidade e com um sorriso. E estou-me nas tintas para quem discordar.
Leng Chai – Homem jeitoso; Conversa de comerciante.
Leng Loi – Mulher jeitosa; Idem.
Liberdade de Imprensa – Privilégio dos órgãos em português porque ninguém os entende.
Limitações – Muitas mas nenhuma relacionada com orçamento.
Locais – Espécie desprezada pelos locais; Animal de circo; Curiosidade turística.
Lótus – Aroma que se costumava sentir em Macau. Actualmente substituído por derivados do petróleo e sprays sintéticos nos hotéis e casinos.

M

– Más há muitos seu palerma, mas há que perceber as diferenças; Cavalo.
Macaense – Malta.
Macau – A razão pela qual aqui andamos todos. Não tem lugar igual no mundo, nem parecido.
Macaio – Forma simples de ofender a malta.
MacDonald’s – Nome de ponte.
Man Fá – Dinheiro.
Metro de Superfície – Versão local das obras de Santa Engrácia; Sistema de Transporte desenhado para turistas.
Minchi – Bitoque macaense; Utilizado em jeito de desafio: “o meu minchi é muito melhor que o teu”.
Ministério Público – Departamento do Governo; Comissariado político
Mo Man Tai – Não há problema; Alívio.
Mundo – Algo externo, distante e incompreensível; O que falta.

N

NAPE – Docas.
Nariz – Parte do corpo onde se situa o eu.
Natércia – Pessoa arrogante, incompetente e com a mania que sabe, incapaz de distinguir Pato à Milanesa de pato ali na mesa. “Não te armes em Natércia”, assim.
Noite – Esqueça.

O

OK La – Sofrível.
Otókfu – Escritório do Chefe visível.
Olho do Cú – Nome de uma rotunda.
Orçamento – o critério mais importante na adjudicação de serviços do Governo. Muito perto dos 50%; Os outros 50% servem apenas para justificar a razão pelas quais o negócio vai sempre parar aos mesmos.

P

Pacha – Exemplo manifesto da influência da cultura local numa marca internacional; Aplicação perfeita do slogan não oficial de Macau (ver letra L); Pagar muito por pouco.
Panda – Animal com direitos.
Pataca – Ficha de casino em forma de papel.
Patuá – Dialecto da malta.
Pé, A – Vai tu.
Período – Ciclo menstrual feminino que pode atiçar os cães.
Planeamento Urbano – Forma local de piada.
Plataforma – Sistema complexo de angariação de fundos para países de língua portuguesa.
Polícia – Pessoas fardadas de azul vistas normalmente à frente e atrás de carros pretos e em operações de auto–stop; Pessoa com actividade incerta.
Poluição – Mito urbano.
Português – Bebedor de café; Pessoa relaxada pouco amiga de trabalhar desenfreadamente; Nome de pastel que nós conhecemos por Nata.
Prego – Palavra essencial num ditado local: “Em tábua com pregos, o saliente é para ser martelado” (sistema de ensino).
Prostituição – Património Cultural não classificado; Indústria mais ou menos ilegal.
Protocolo – Tudo o que interessa.
Provisório – Definitivo.

Q

Q – Xis.

R

Rabo de porco – Macaense de origens humildes; Não presta.
Rendas – Versão local do Inferno de Dante.
Reorganização Administrativa – Chavão; Cosmética
Ruínas de São Paulo – Meca dos javalis; Símbolo da cidade por ser apenas uma fachada; Cenário para Fotografias.

S

Saúde – Privilégio.
Sauna – Eufemismo para actividade sexual.
Sifu – Mestre; Pessoa que sabe fazer alguma coisa de jeito; Especialista.
Sing Chao Chau Mein – “Massa frita à moda de Singapura” que não se vê em Singapura mas que em Macau se faz como deve ser. Imperdível.
Sky 21 – Desperdício ostensivo de um espaço nobre.
Sufrágio Universal – Palavrão na versão chinesa.

T

Tai Chi – Cena de cotas que não conseguem dormir.
Tailândia – Versão exótica da Caparica mas sem ondas nem caracóis; Tema para fazer conversa entre portugueses.
Táxi – Carros coloridos que gravitam à volta dos casinos mas extremamente raros no resto da cidade.
TDM – Tudo o que parece uma estação de televisão mas não é.
Templo de A Ma – Máquina de fazer dinheiro.
Trânsito – Forma idiota de modernismo; Problema insolúvel.
Transplantes – Actividade exercida no estrangeiro.
Tufão – Tolerância de ponto.
Turistas – Praga; Benesse; Javalis; Aqueles com quem o Governo local se preocupa.

U

Uber – Eles vêm aí. Finca pé.
Universidade de Macau – Aquilo lá ao longe; Ensino armado em superior.
Urbanidade – Mistério.

V

Venetian – Grande, dourado e com florões; Atractor de javalis; Kitsch.
VIP – Doença local incurável cuja variante mais maligna dá pelo nome de VVIP.
Visão – Conceito abstracto; O que se desconhece.

W

Wah! – O segredo.
Won Ton – Os raviolis originais e que nos tornam a vida melhor. Não há como em Macau. Nem pensem.
Wong Chiu – Nape.

X

XO – Um molho do caraças se souber onde o adquirir. Os seus grelhados nunca mais serão os mesmos. Uma variante do Lat Jiu Iao com marisco e peixe secos à mistura.
Xi – Neo Mao.

Y

Yat Yuen – Torturadores de cães.

Z

Zape – Nape sem docas.

25 Nov 2015

Carta de um fã

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]xistem dois tipos de pessoas no mundo: as que não gostam de mim, e depois o resto da humanidade, que desconheço e vice-versa. Isto não é necessariamente mau, pois não fazendo o mínimo esforço para agradar a ninguém, já me considero satisfeito por não ter a cabeça a prémio – um desempenho “positivo”, pode-se dizer. Mas nem tudo é tão simples, pois neste grupo de pessoas que ficaram por cativar há aquelas que não me interessam (muitas) e as que nem sempre tenho paciência para aturar (as restantes).

Como produto final ficam as que me detestam, e desses até só posso dizer maravilhas, pois mantêm-se à distância ou evitam cruzar-se comigo; as que já me conhecem, o que no fim acaba por ser uma coisa…não diria nem agradável, nem pelo contrário, mas antes “útil”; e finalmente os badamecos, aqueles mais rústicos a quem a minha presença incomoda, pois sabem que não conseguem conter a sua boçalidade a toda a prova, e eu vou lá estar para apitar para falta, ou algo do género. Se pelo menos para alguma coisa sirvo, é para que finalmente alguém se deixe de considerar uma dádiva de Deus ao mundo. Dependendo do grau, posso até nem dizer nada, mas de uma coisa tenho a certeza: se for um pantomimeiro especialmente esforçado, mas na mesma medida incompetente, e às vezes sem vergonha na cara, aconselho-o a que mude de carreira, antes que se enxergue tarde de mais, e acabe no chão a pedir esmola.
Por culpa da minha actividade de desanimador de festas e interruptor de orgasmos (tenho no próximo mês uma promoção em “bêbado de casamento” e “adulto chato em festa de aniversário infantil”), e cujo menu pode ser consultado no blogue Bairro do Oriente, ganho uma legião de fãs enorme! Os fãs de que eu parta uma mão e fique uma boa temporada sem escrever, e os fãs de uma boa peixeirada, onde participam tipos que passam a vida dizer que “detestam peixeirada”.

Quanto a essa matéria, recebi a carta de um fã, que demorei a entender por duas razões: a pobre ortografia, a falta de pontuação e o uso impróprio dos artigos, por um lado, e por outro lado a intenção daquela missiva, ou da própria mensagem em si. Ao fim de três leituras e muita decifração, cheguei à conclusão que o autor da carta será uma criança em fase de pré-escolarização, ou um adulto sofredor de retardação mental profunda – se não for como eu digo, peço desculpa, mas os conceitos ali expressos apontam para uma idade mental de não mais de seis ou sete anos de idade. O teor da carta é que me apanhou de surpresa. Parece que a intenção é dar-me a provar do meu próprio veneno, e “atacar-me”. É possível que queira alguns conselhos da minha parte, de como melhorar essa mixórdia de letras que acabou de fazer, mas isso seria uma perda de tempo. Posso no entanto apontar-lhe onde errou tragicamente: quase tudo. Para começar o texto tem três frases, quando as ideias lá contidas (mesmo as incompletas) fariam umas cinco seis. Vamos ver a primeira:

“Os Loucos como o Leocardo querem sempre estar à frente de todo o mundo, ganhar de todos o que lhe não pertence e ser primeiro que o outro, é definitivamente um louco infeliz.”

Isto aqui mais parecia um relato de futebol: “louco para mundo, que lateraliza para todos, dá de volta para muuuundo, remata e …golo!”. Os “loucos” são normalmente denunciados por um comportamento errático, mas quando se organizam para “ganhar de todos o que não lhes pertence”, isto cai mais no âmbito da invasão do planeta por uma frota intergaláctica. Se “louco” é suposto servir de insulto, não, é uma condição médica, e não faz lá muito sentido que o louco em questão se sinta “infeliz” após ter conquistado o mundo naquela renhida situação que descreve. Mas adiante.

“E(É) anti-social e não convive em sociedade vivendo e acreditando a sua própria loucura.

Esta é a frase mais curta das três, mas pode ser eventualmente umas das maiores do universo; depende de quanto tempo demora o autor a decidir-se entre anti-social e aquela outra alternativa, completamente antígona. Uma vez que se decida, o que se segue não é mau de todo – quem não gostaria de viver a própria loucura? A dos outros parece-me menos convidativo. Isto da loucura é um pouco como a roupa interior.

“Um sábio encara a competitividade sempre de uma forma positiva e dialoga sempre com palavras saudáveis, tem a haver com o superar a cada dia é faz de um homem um ser sábio!! Leocardo o egocêntrico a miséria do mundo!!”

Finalmente a conclusão daquilo que nunca chegou a ter início, e é mais do mesmo, mas com um toque de zen macrobiótico: o Sábio, que se percebe logo ser um monge budista devido às inúmeras referências ao “tofu”, “yoga”, “meditação” e outras palavras “saudáveis”, chega a CEO de uma multinacional alemã, devido à forma como “encara a competitividade de forma positiva” – e mais uma facadinha ou outra nas costas de alguém, claro. Só que mais à frente esbarra com o analfabetismo lusitano: ter e haver são dois verbos, e o que se segue não faz mais sentido, acabando o tal homem por não ficar mais sábio. A última parte são palavras completamente distintas, sem pontuação, e por isso ao mesmo nível do resto do texto que me mandou, mas que agradeço na mesma, pois terá lugar de honra na ala dos “burlões incompetentes”. Bom dia.

23 Jul 2015

De sexo a sexo

[dropcap style=”circle”]O[/dropcap] sexo caracteriza-se pela versatilidade inusitada a que se propõe, na sua semântica ou na morfologia da sua actividade, este alicerça a vida de muito boa gente que se entrega ao complicado universo de relações humanas. O sexo encontra-se no entendimento de género, no desejo e no afecto, no marketing e no consumo. Sob o véu que o tabu (ainda) carrega, a sexualidade mostra-se nas mais inocentes formas de agir e nos mais ingénuos dos entendimentos. Teria escrito uma carta de agradecimento a Freud pelo seu esforço e contributo à fornicação, ademais, pela fantástica capacidade de se incluir na cultura popular pós-moderna com os mistérios que a sexualidade se envolve. Se o sexo (e o desejo) é popular, ao seu mistério agradecemos.

Tenho dificuldade em ir em conversas onde o sexo, na sua complexidade conhecida, é reduzido a um instinto. Sim, é verdade que há a necessidade de uma legitimidade biológica para fugir de concepções sexuais de uma absurdidade metafísica sem igual. Contudo, a vantagem de aplicar um modelo inserido na dinâmica de relações e actos de comunicação a que o mundo se rege, insiste no glamour que o sexo merece e que dele nos entusiasma. Afinal o que seria do sexo do séc. XXI sem pornografia, comédias românticas, revistas femininas ou viagra? A verdade é que não sabemos e nunca havemos de descobrir. O sexo contemporâneo vive na imaginação individual e colectiva, nos paradigmas intelectuais a que se insistem e, consequentemente, na sua tão excitante discussão ideológica. O sexo presenteia, satisfaz, magoa e ofende. A sede que nos leva a beber um copo de água dificilmente chega a ter tão confusas proporções.

Um professor e amigo sugere que a sexologia dificilmente deveria ser abordada como uma terapêutica de cariz individual mas inserida nas problemáticas conjugais (porque se temos sex problems, temos marital problems). A inserção do sexo na problemática relacional tem de ser melhor considerada, especialmente porque transpõe os limites de uma cama conjugal, para as extras- e para todas as outras relações, sugestões e pressões sociais que põem em desconforto aquilo que a actividade deveria ser: saudável e confortável, para todos os envolvidos. Fantasiar sexualmente é um exercício adorável. Um manifesto à criatividade sexual e íntima urge em ser escrito e declamado entre mulheres e homens conjuntamente. Strap-ons, ménage à trois, aquilo das 50 sombras de qualquer coisa, clareamento anal caseiro. De Olhos Bem Fechados do Kubrick. Lovely jubbly. Pano para muitas mangas.

[quote_box_right]E é isto: na sede pela competição quantitativa e qualitativa pela performance, o sexo salpica-se de uma crueldade movida pelo desejo de ser o melhor. Surpresa! Parece que não há grande consenso sobre o significado de ser bom na cama (ou fora dela). O pessoal faz como pode[/quote_box_right]

O problema (como tantos outros) é que as representações do sexo estão muito longe de ser unânimes. Ainda bem e ainda pior, é que a sua diversidade leva a um desentendimento por vezes interessante, por vezes problemático, mas que poucas pessoas têm consciência da sua natureza. E não, os homens não são de Marte e nem as mulheres são de Vénus (literatura encontrada em bibliotecas masculinas que em nada lhes poderá ter ajudado a um relacionamento heterossexual feliz). Homens e mulheres são o que se fazem deles, na tentação irresistível de fazer generalizações. Já se sabe que os homens medem o seu Júnior na esperança de atingir um heroísmo sexual isento de esforço, e as mulheres discutem os seus tamanhos no café, espalhando a fama dos detentores de um tal objecto fálico que facilmente se compra numa sex shop, em muito melhores condições. E é isto: na sede pela competição quantitativa e qualitativa pela performance, o sexo salpica-se de uma crueldade movida pelo desejo de ser o melhor. Surpresa! Parece que não há grande consenso sobre o significado de ser bom na cama (ou fora dela). O pessoal faz como pode.

A proposta é simples: um tema daqueles que precisam de ser discutidos, por cada conjunto de palavras que teimam em ser escritas. Uma tentativa de integrar as ideias e as experiências do sexo na sua pluralidade, ou, pelo menos, pensar nelas. Ideias carregadas na bagagem de quem salta por aqui, ali, por Macau e por acolá. Exercícios de semi-associação livre do tal tema do sexo.

18 Jun 2015