O mouro de Veneza

-Nomes que falam quando nomear cunha o destino dos protagonistas remetem-nos para a importância deles no destino de cada um – um nome é uma espécie de mantra codificado – e mais longe que as histórias dos Josés, Paulos, Antónios, Manéis, nos dão, nos contam ou podem dar, sem que haja aquele vapor a enxofre para entrarem nos cofres imortais, mas também sem generosidade aparente para ascenderem às altas transparências, o autor do nosso trágico mouro alteia-lhe todas as características da apaixonante natureza humana, e aqui, a estória, História, e historicidades, transformam -se, pois que nada mais extraordinário que ser humano, a essa condição chamamos nós de tragédia. – Poder-se-ia apelidar, fado – o fado de cada um – mas coisa pouca seria fadar gentes de parcas melodias com Severas parcas, que de nostalgias estamos fartos.

Morreu Otelo. Dito assim, nem parece que morreu alguém, pois todos sabemos que ele já tinha morrido vítima de sabotagem e autossabotagem, mas sobretudo, vítima de inveja e cobiça, o que o leva a matar a Dama da sua vida, Desdémona, suicidando-se de seguida; mas Otelo é um militar, um general, e o autor descreve-o assim «guerreiro, acostumado aos julgamentos de excepção, sempre muito rápido; matar ou morrer, sem maiores análises dos factos e das circunstâncias», uma personagem feita para emergências e não para atalhos labirínticos; fica perdida no meio dos ciúmes, das guerras de poder, dos falcatrueiros, e até dos Falcões – tudo conversa a mais – pois só ele sabe falar com a rapidez das rajadas e o encanto de um gladiador, características maravilhosamente hipnóticas nas questões linguísticas (que esta gente toda fala de forma apavorante pois que não têm pressa nem talento para emergentes) por vezes o poema sai assim, em carne viva, em golfadas germinais de macho alfa, todo abrasão, e nós sentimos por fim a presença rara dos homens. Nós, que nos esfalfamos para sexualizar os neurónios e encontrar razões nesta subespécie para o arranque erótico das idiotizantes jornadas, vergamo-nos diante a lembrança dos Homens.

– «Veneza sem ti», é! Canções que entoam lá do fundo das melodias de amor, e que debaixo do sol as leituras se façam na comparada análise, literal e literária, pois que tudo volta de novo a encontrar-se: capas, espadas, cotas de malhas, chaimites, amor, ciúme, inveja, traição, equívoco, mordaça, o corpo identitário volta com novas roupagens mas com a mesma essência, não para todos, que nem todos não são agentes do destino, para tal é necessário uma silenciosa aritmética que a visualidade não é capaz de alcançar: a maior parte destas boas e más pessoas que nos rodeiam ainda não nasceram, são ecos com direito a pensar que pensam… e quanto às suas caricaturas, bom senso e grandiloquências, uns até já vêm com direito a outras estouvadas características, mas não são “Oteis” são Hotéis, que um país com tantos “génios” à solta pouco mais serviu que para porteiro Hotel de luxo, fazer mixórdias alimentícias, e andar armado em rico, efetivamente, para tal desfecho não seria preciso ter havido Otelos, bastava uma «Estrela Michelin» e todas as vítimas se tinham agachado. No meio de tudo isto as razões são tão claras que gelam, e a ingratidão tamanha dá vontade de abandonar os pobres sem destinos dos abocanhadores, às galés.

– No fundo, Otelo não saberia viver sem a amada, a sua Dama, que vítima das vozes maléficas dos vencidos que depressa passam a vencedores, ele prepara então a tragédia para se tornar para sempre humano. Foi um equívoco bem o sabemos, mas era tarde demais. Esta belíssima humanidade de alguns só é possível na tragédia, que ora cómica, ora terrível, tem a força de nos estigmatizar até ao fim. A fornalha das forças contrárias e o labirinto por onde entoam, se escutam, e se nomeiam no elo da narrativa as semelhantes personagens, são tão nítidas, que entristece não haver aqui vestígio de consciência, talvez por que há muito também deixou de se saber identificar um poeta, mercê das enfadonhas armadilhas dos pretensos – “poetisos” e “poetisas”- que poeta acontece poucas vezes, é certo, tão raramente, que seria bom podermos ter uma maior assertividade quando da sua manifestação, pois que não ter visto em tudo isto o melhor Poema do Mundo em estrofe colectiva, é então não ter visto nada. « Há sempre aquilo que não pode ser preservado quando o Destino tem as rédeas na mão, mas a Paciência encarrega-se de fazer do prejuízo uma zombaria».

 

               “Suplico aos senhores que, em suas cartas, falem de mim como sou.

               Que nada fique atenuado, mas que se esclareça também que em nada

               Houve dolo.

               Os senhores devem mencionar este que amou demais,

               Com sabedoria de menos;

               Este que não tinha sentimento de ciúme e se deixou levar por

               Artimanhas”

                       Shakespeare                              

10 Nov 2021

Ai Love Venezia  

No Outono de 1987 regressas a Veneza e, depois da leitura matinal do Il Gazzettino, fechas-te num pequeno hotel a escrever o teu terceiro romance. Dez anos depois, no prefácio à segunda edição, Luciana Stegagno Picchio escreveu: “É uma meta-Veneza apenas fruível de olhos fechados, tal como uma música que nos envolva e que nos absorva pelas suas volutas em espiral, ora esfumadas no enleio do sentido ora solidamente apegadas à realidade dos nossos dias, através da reprodução de factos e ambientes da actualidade”. 
 
É a mais pura verdade que um romance apenas cabe no (limite) que escapa à experiência, depois de se ter subido as escadas a correr. O esforço é essencial. O que nele se representa foge às referências que seriam óbvias, mesmo se a cidade e as suas águas e canais forem vistas de cima, a partir das águas-furtadas, em noite de trovoada. O que se passa num romance são as latas de conserva de Warhol. Elas existem para que se possa amar aquilo que passaria despercebido. Elas, as personagens, não quantificam objectos. Antes duvidam, quando não existem sequer questões para pôr em causa. Antes questionam, sem que haja sequer respostas possíveis à vista. Antes se dispõem a responder, ainda que não existam perguntas que atravessem a encenação criada. Sim: um romance tem a sua música própria ambulante que voa sobre o mundo e o captura como uma tautologia (por vezes torna-se numa máquina surda que sabe serrar todas as dunas e que adora falar de lenha como se fosse um navio a aprender o futuro).
 
Estás agora na esplanada do Carrossel e o Almeida Faria pergunta-te: “como estava este ano a nossa Veneza?”. Tinhas acabado de regressar, duas décadas depois da tua reclusão romanesca a poucos metros do Rialto, num pequeno hotel feito para transformar os ossos daquela cidade irreal numa cartografia de palavras e elipses com marés, maleitas e escolhos à flor da água. 
 
A literatura não representa nada que não a si mesma, nem conta histórias que ameacem ser fidedignas. Num romance, como o que escreveste em 1987, apenas interessa que na colheita haja aquilo que o olhar de qualquer mortal capta quando chega aos limites do Veneto: um batimento que se perca entre o sublime e a pulsão de morte. Um sentimento de perdição que saiba acender ou alcançar o íntimo de uma existência realizada. A Veneza literária é um intertexto vasto e cheio de história. Na língua portuguesa, Almeida Faria é certamente o criador mais apurado desse percurso. Sabendo isso, reagiste com algum alarido. 
 
Respondes, certamente com razão, que nas últimas décadas, Veneza se transformou em Venezilândia, isto é, numa espécie de nova Marbella onde os turistas (doze milhões por ano) – fardados para resistirem ao peso da viagem e do património – fazem a vez do peregrino sem missão nem destino. Já lá ia o tempo em que Veneza respirava com limpidez as heranças de Dante, Ruskin, Tiepolo, Goethe, Byron, Casanova, Henry James ou Marino Contarini. Hoje, os fantasmas digitais e as pizzas liofilizadas tornaram-se em anfitriões dos novos bárbaros que, há muitos séculos, tinham sido a causa da fundação da cidade em plena Laguna. Paradoxos.
 
Respondes que a farda vale pela missão e pela nova santidade: calções de fibra colorida enxameados de bolsos, ténis com sabor a marca, t-shirt´s com mensagens estilo Twitter (concebidas para a rapidez indiferente do olhar – Ay love you, Fuck yourself, Try just Once) e a invariável mochila que militariza o nomadismo de galgo insaciado; sem esquecer ainda o manancial de sacos, guias, telemóveis e garrafas de água que substituem o velho cantil; fitas no cabelo, pulseiras e lenços de pirata para absorver o suor da caminhada sem paragens, pois a finalidade do novo caminhante é transformar cada passo numa meta, esgotando aí o sentido e o maior desejo do século: o stress. Por fim, lucubraste sobre o ombro. Sim: um ombro sempre queimado pelo sol. O bronze em estado puro. 
 
Respondes que o ombro é o princípio e o fim de tudo, embora não passe de um pequeno dorso musculado, flácido, ossudo ou elegante. Tanto faz. O que fará do ombro uma âncora dos deuses é a fina correia de couro, ou de plástico, que nele se suspende. O ombro é assim o porto de abrigo de uma máquina que diz ao viajante que tudo o que está à sua volta pode ser reduplicado. Parado ou em corridinho, em fotografia ou em filme. Cada ombro seria, nesta óptica de realidade aumentada, o porta-estandarte de uma euforia mágica que faz do turista um ser com quatro braços, quatro pernas, quatro olhos, duas cabeças, dois pescoços e duas bocas. Tudo a dobrar. Ou duas S. Marcos com oito e não com quatro cavalinhos de ouro oferecidos por Bizâncio à Sereníssima. Ou sessenta e oito e não trinta e quatro arcos da Loggia do Palazzo Ducale virados para o Canale. Ou quatro e não dois mouros de pátina escura a baterem as horas na Torre dell´Orologio. Tudo a dobrar. Mas uma dobra que se multiplicará até ao infinito como Deleuze e sobretudo Leibniz adorariam. 
 
Almeida Faria bebe o café compassadamente e conhece há muito este divórcio. Como escreverias mais tarde, em ‘Anatomia’, já o ombro onde se suspendia o mundo fora substituído pelos dois polegares a alardear telemóveis: “A finitude ata-nos a pequenas coisas” (…) “compraz-se com os balidos longínquos/ e sabe coar como ninguém os degelos/ imprevistos” (talvez por fugir ao lugar desses balidos para nele afinal permanecer, tal como acontece aos viajantes que vivem apenas do fluxo das suas inúmeras e protegidas viagens). Somos todos peregrinos, afinal, e Veneza, essa beleza imaculada, creio que nunca realmente existiu à superfície da terra.
 
(texto – apenas parcialmente – extraído de ‘Órbita-I: Visão Aproximada’, título de obra de longo curso em trânsito)
 

9 Abr 2021

Realizador Guillermo Del Toro preside ao júri do próximo festival de Veneza

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] realizador mexicano Guillermo Del Toro vai presidir ao júri da próxima edição do festival de cinema de Veneza, anunciou a organização.

Del Toro foi o vencedor, em Veneza, do Leão de Ouro no ano passado para melhor filme com “A forma da água”, filme que conta, nas categorias dos Óscares de Melhor Guarda-Roupa e Melhor Montagem de Som, com dois nomeados de origem portuguesa.

Segundo comunicado do festival de Veneza, onde Nuno Lopes venceu o Leão de Ouro para melhor actor em 2016, Del Toro disse que a presidência do júri da 75.ª edição do evento é “uma imensa honra e responsabilidade” que aceitava com respeito e gratidão.

“Veneza é uma janela para o cinema do mundo e uma oportunidade para celebrar o seu poder e relevância cultural”, acrescentou.

Por seu lado, o director do festival, Alberto Barbera, disse que Guillermo Del Toro “personifica a generosidade, um amor pelos filmes passados ou futuros e uma paixão pelo tipo de cinema que pode acender emoções, afectar pessoas e, ao mesmo tempo, fazê-las reflectir”.

“A forma da água” lidera as nomeações da 90.ª edição dos Óscares, que serão entregues a 4 de Março, em Los Angeles, incluindo as categorias de Melhor Filme, Melhor Realização e Melhor Actriz.

“A forma da água” disputa a categoria de Melhor Filme com “Chama-me pelo teu nome”, “A hora mais negra”, “Foge”, “Lady Bird”, “Linha Fantasma”, “The Post”, “Dunkirk” e “Três cartazes à beira da estrada”.

13 Fev 2018