Tânia dos Santos Sexanálise VozesA visibilidade trans As mulheres trans são continuamente excluídas e discriminadas. A probabilidade de um adolescente trans desenvolver ideação suicida, ou tentar o suicídio, é de 5 a 7 vezes maior ao de um adolescente heterossexual e cisgénero, isto é, que se identifica com o género designado à nascença. A discriminação está no acesso ao trabalho, na educação ou na saúde. Uma discriminação estrutural que retira espaço ao direito de se ser trans. No dia 19 de Janeiro, no Teatro São Luiz em Lisboa, uma mulher trans assaltou o palco. Em cena estava uma peça com duas personagens trans em que uma era representada por uma actriz trans, e a outra, a personagem principal, por um actor cis. A Keyla Brasil num acto de coragem saltou para o palco e conseguiu trazer ao holofote teatral uma tendência discriminatória e de exclusão, que ainda não tinha entrado no debate público: as histórias e narrativas trans precisam de ser contadas pelos corpos trans, até nas artes performativas. A produção da peça vai agora contratar uma actriz trans para ser a personagem principal. Uns aplaudiram a coragem. Foi uma batalha vencida pela representatividade e visibilidade que não descura a reforma necessária no processo de selecção de artistas. Outros mostraram indignação pela forma como esta batalha foi ganha. A Keyla apareceu no palco semi-nua, expondo toda a violência a que é diariamente submetida. Falou do sexo oral que faz em troco de dinheiro, pelas poucas oportunidades no mundo do trabalho, falou da arma que lhe apontaram à cabeça, falou dos assassinatos constantes, violentos, nas tentativas de apagamento que ela, e muitas outras, estão sujeitas. Apontou o dedo ao homem que foi escolhido para o papel e quis responsabilizá-lo pelo apagamento das vivências e narrativas trans. A forma poderosa como esta batalha foi ganha, ainda que falte travar uma guerra, foi alvo de intenso escrutínio público. Muitos queixaram-se que foi um método “violento”, apesar de concordarem com a premissa de base: se não é com a história de uma mulher trans que o corpo e a alma trans têm visibilidade, então quando? Muitas activistas trans já tinham contactado a companhia de teatro exigindo respostas e mudança. Sugeriram boicotes e nada aconteceu. A mudança só veio depois, com a acção “violenta” da Keyla, carregada de tensão, antagonismo e conflito daquele que provoca desconforto. Mas esta “violência” é só um sintoma, uma resposta à violência que é vivida. De um lugar onde a outra realidade mundana nada se assemelha porque se vive distante. A “violência” de ver uma peça de teatro abruptamente terminada é que parece mais importante para os proponentes desta discussão. Quando os actores cisgénero recebem papéis trans, eles encaram-nos como o desafio da sua carreira. Jared Leto ganhou um Óscar ao fazê-lo. Mas esta não é uma condição de desafio que possa ser apropriada pela indústria criativa sem uma reflexão profunda sobre o seu papel na contínua exclusão de artistas trans nos seus projectos. A condição trans não é um adereço, como activistas reclamam, para catapultar carreiras. Muitas vezes produtores optam por homens e vestem-nos de mulheres, porque as actrizes trans não reflectem os seus próprios estereótipos ou ideias pré-concebidas. A máquina de exclusão está oleada e em funcionamento, não é a responsabilidade de uma pessoa transfóbica. Desde os produtores, ao encenador e até ao actor que aceita fazer o papel, todos contribuem para isso. Recentemente Hale Berry e a Scarlet Johanson recusaram papeis de homens trans porque foram confrontadas com a pouca representatividade trans em diálogo com as pessoas que mais são afectadas por estas escolhas. Mas a minha voz não é a que mais interessa neste debate, ouçam as pessoas trans que tentam consciencializar sobre as muitas formas de como estão a ser invisibilizadas. Elas lutam de muitas outras formas também, fazem-no na discussão de ideias, na academia, nas manifestações na rua e no seu dia-a-dia. O confronto ou a violência é tão parte desta luta como a diplomacia. Neste caso, a suposta “violência” foi o resultado de uma não-escuta. Do outro lado onde nos situamos, pede-se reflexão. Se vos chocou, confrontem o desconforto e interroguem-se de onde vem. Reflictam sobre as oportunidades perdidas de fazer de forma diferente, e de dar espaço a outras pessoas ou realidades. Nós não vemos pessoas trans em posições de destaque, protagonizando séries, a serem pivots de telejornal ou a contracenarem em peças de teatro. Com os níveis de saúde mental desta minoria sexual absolutamente desastrosos (e vergonhosos nos olhos de qualquer profissional de saúde), as pessoas trans precisam de saber que o mundo deve ter – e tem – espaço para todas.
João Santos Filipe SociedadeTransexualidade | Ellie Cheng falhou grupo de 12 finalistas em concurso de beleza [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]llie Cheng, representante da China e de Macau do concurso para transexuais Miss International Queen, falhou o apuramento para as 12 finalistas, mas acabou entre o grupo das 28 melhores classificadas. Na sexta-feira, em Pattaya, a grande vencedora foi a vietnamita Nguyen Huong Giang, que levou para casa um cheque de 117 mil patacas, além dos prémios individuais dos patrocinadores. O concurso é organizado anualmente na Tailândia e tem como objectivo amealhar fundos para ao Fundação Real Contra a SIDA, do país do sudeste asiático. Para participarem, as concorrentes têm de ter nascido com o sexo masculino, mas não lhes é exigido a realização de mudança de sexo.
João Luz Manchete Reportagem SociedadeExclusivo: De Joana a Jo-B, a história em curso do primeiro transexual masculino de Macau Ao longo da vida ocultou os vestígios de feminidade que as cirurgias plásticas têm extinguido passo a passo. Aguentou e recuperou com rapidez das operações, feito que lhe valeu a alcunha de Super-homem entre o pessoal da clínica tailandesa onde removeu os seios, útero e ovários. Hoje em dia, Jo-B De Souza está a um passo de completar a metamorfose e tornar-se um homem. O HM conta-lhe a jornada de coragem, sofrimento e amor de uma pessoa determinada a viver a sua identidade [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] caminho do bar, Jo-B De Souza caminha com virilidade para dar e vender. Cabelo penteado para trás com gel e rapado dos lados, ombros largos, braços que denotam frequência regular no ginásio e um sorriso malandro. Lança um “hey, man!” e cumprimenta com um aperto de mão vigoroso. Quem não o conhece nunca imaginaria que Jo-B De Souza nasceu Joana um dia antes do início do Verão de 1988, e é esse nome que ainda figura no seu Bilhete de Identidade de Residente. Algo que vai tentar alterar num futuro próximo e que será um dos passos na caminhada para se tornar um homem. Ao longo dos últimos dois anos, a sua vida tem sido um corrupio de entradas e saídas de uma clínica na Tailândia onde removeu os seios, útero e ovários. É também em Pattaya que é acompanhado na terapia hormonal por uma equipa clínica chefiada por um médico norte-americano. À entrada de 2018, resta-lhe uma última cirurgia: A faloplastia – a construção do órgão sexual masculino – uma etapa que terá de adiar devido às anestesias gerais que tomou recentemente. Será o fim da metamorfose que se iniciou quando era demasiado novo para sequer ter noção do que estava a acontecer. “Cresci a pensar que era um rapaz, desde pequenino, praticamente bebé. Quando a minha mãe estava grávida fez dois testes que indicaram que teria um filho”, conta. A família estava preparada para receber um rapaz em casa, previsão que se reflectia na decoração do quarto e nas roupas que os pais compraram para o novo membro da família. Este pequeno detalhe familiar tornar-se-ia premonitório da pessoa que Jo-Bo viria a ser, uma pessoa com uma feminidade rarefeita. Aliás, tão rarefeita que praticamente não teve menstruação, apenas uma vez por ano, ou de dois em dois anos. Esta particularidade biológica deu-lhe descanso quanto a um trauma muito frequente entre maria-rapazes: a necessidade de terem de conviver e esconder todos os meses a menstruação. Verdes anos Olhando para trás, Jo-B De Souza recorda-se de achar que era um menino. Porém, o embate com a realidade do género com que nasceu deu-se cedo, entre os três e os quatro anos, durante os tempos de jardim de infância. O episódio deu-se quando estava na casa de banho com o seu melhor amigo e lhe perguntou porque é que ele estava de pé em vez de estar sentado. O amigo respondeu que era por ser um menino e ela uma menina. A dureza da verdade desencadeou um autêntico drama infantil, que mais de vinte cinco anos depois estampa um sorriso na cara de Jo-B. “Corri para casa a chorar e fui contar tudo aos meus pais. Foi aí que percebi que era uma rapariga e senti que era o fim do mundo. Lembro-me de ter chorado muito”, recorda. A história de Jo-B De Souza é recorrente no dia-a-dia de Graça Santos, Psiquiatra e Terapeuta Sexual, coordenadora da Unidade de Reconstrução Génito-Urinária e Sexual (URGUS) do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. “São pessoas que, na grande maioria dos casos, desde a infância manifestam preferência pelo papel e expressão do género do outro sexo, que no caso de FtM (abreviatura para female to male), será uma menina “Maria-rapaz”, explica Graça Santos. “Ao olhar a sua infância a própria pessoa e os familiares relatam-nos uma preferência por brincar com rapazes, jogar à bola, ser mais activa fisicamente, recusar ou manifestar desagrado por usar vestidos ou adereços de menina”, conta a coordenadora da URGUS. Seguindo os seus desígnios, Jo-B De Souza continuou a vestir calções e t-shirts até ingressar no Colégio do Sagrado Coração de Jesus, uma escola feminina onde a farda era obrigatória. Aí descobriu que não estava sozinha e que havia outras marias-rapaz, “talvez entre 12 a 15”. Nesse período, com cerca de 6 ou 7 anos, via-se obrigada a usar um vestido, facto que conseguiu contornar através da prática desportiva. “Adorava jogar basquetebol. Então, foquei-me no desporto e não me importava como as pessoas me viam porque debaixo do vestido usava os calções de basquetebol”, conta. Jo-B De Souza sente-se um sortudo devido ao apoio incondicional que teve da família desde cedo. “O meu pai é o meu grande suporte, a minha mãe uma cuidadora incansável, a minha irmã e o seu namorado têm estado sempre disponíveis para me ouvir, a minha namorada é quem dá mais força”, conta. Era dos descobrimentos A adolescência quando chega molda aquilo que será a nossa personalidade, quem somos, a partir da revolução hormonal. Esta fase, que pode ser um purgatório de crescimento, tem uma outra dimensão em pessoas como Jo-B De Souza. À medida que foi crescendo procurou ser cada vez mais masculino, um salto evolutivo que foi recebido de forma distinta pelos seus pais. Enquanto o pai lhe deu sempre total apoio e lhe fez as vontades, a mãe tentava convencê-lo a usar roupas femininas ou a deixar crescer o cabelo. “Se ela me perguntava se eu achava um vestido bonito eu dizia que sim, que era muito bonito mas nela”, recorda com humor. Apesar das ténues tentativas maternas para que fosse uma menina durante a infância e início de adolescência, Jo-B nunca se sentiu reprimido pela família. Muito pelo contrário, a relação que tem com os pais assenta em fortes pilares de respeito, aceitação e amor. “O meu pai costuma dizer coisas do género: vou agora para o escritório, o meu filho dá-me boleia e a minha mãe costumava dizer quer tinha duas filhas, mas agora diz que tem um casal”, exemplifica. Por volta dos 13/14 anos, Jo-B De Souza atravessava um período de descoberta. Não apenas em termos de revelação sexual, mas também de conhecimento que haveria de lhe abrir as portas para a metamorfose que o esperava. “Já na altura dizia às pessoas que iria mudar de sexo, sem ainda saber se isso era possível”, recorda deixando claro que nunca gostou de não cumprir com a sua palavra, ou de perder face em relação a aspirações partilhadas socialmente. A realidade entrou-lhe pelos olhos adentro numa pesquisa online em que descobriu que afinal havia quem mudasse fisicamente de sexo. Começou a seguir bloggers que relatavam as várias etapas da transformação que haveria de iniciar uma década mais tarde. “Comecei a seguir um blogger, via as fotos e as mudanças na pessoa, ouvia também a forma como a sua voz mudava e comecei a ficar cada vez mais intrigado”, relembra. Foi também nessa altura que começaram as primeiras experiências sexuais e a rebeldia adolescente materializada em múltiplos piercings e tatuagens. “Todos queriam pertencer ao nosso grupo porque nos estávamos nas tintas. No fim das aulas, ainda com uniforme, íamos fumar e beber cerveja e como era muito popular era fácil ter parceiras”, conta. Jo-B De Souza explica que beneficiou de dois factores: ter uns pais compreensivos e o facto de “Macau ser mais aberto a lésbicas e marias-rapaz, por ser uma cidade que se habituou a isso, mais do que a gays”. Mesmo em termos de transexuais, entende que é mais facilmente aceite uma mulher transformar-se em homem do que o inverso. Este é um fenómeno que não é estranho para Anthony Lam, presidente da Associação Arco-Íris de Macau. “Acho que a explicação pode estar no facto da sociedade de Macau ser muito patriarcal daí ser mais fácil aceitar uma mulher que se transforme num homem”, teoriza. Fora do lugar Em 2016, a Associação Arco-Íris de Macau fez um inquérito sobre a incongruência entre o sexo atribuído à nascença e a identidade de género, para o qual foram ouvidas 715 pessoas locais. O resultado revelou que 41,54 por cento dos inquiridos demonstravam alguns níveis de inconsistência entre o sexo biológico e a identidade de género. Apesar dos números serem consideráveis estão longe de representar a parcela demográfica que leva até às últimas consequências a incongruência de género que vivem. Neste aspecto, a experiência de Anthony Lam diz-lhe que os transexuais são pessoas que “ficam mais no seu ciclo e que se sentem mais confortáveis na sua bolha social, em vez de se revelarem ao público”. Principalmente, no que toca a transexuais que fazem a transição de homem para mulher. “Macau não é uma cidade suficientemente progressiva, não é acolhedora para a comunidade LGBT”, explica o presidente da Associação Arco-Íris de Macau. Em termos de aceitação social, Jo-B De Souza não tem dúvidas de que tem sorte por estar no lado mais facilmente aceitável da transexualidade em Macau, onde a sociedade aceita melhor a transformação para o lado masculino. Porém, o residente de Macau entende que não existe uma comunidade de pessoas que se encontrem numa situação similar à sua, circunstância que explica com a fluidez entre maria-rapazes, que podem oscilar entre períodos másculos para depois regressarem a um vivência totalmente feminina. “Há pessoas que são atraídas pelo mesmo sexo, mas que estão felizes com a forma como nasceram, é aí que eu não me encaixo, porque não é a minha preferência sexual que está em causa, ou seja, a pertencer a algum grupo pertenceria a algo completamente diferente e que em Macau é muito pequeno”. Esta falta de pertença a um ciclo social dominado pela preferência sexual, ou género, não é algo que aflija Jo-B De Souza, ainda para mais no momento em que se prepara para dar o último passo, o que agudiza a falta de identificação com qualquer categoria da comunidade LGBT. “Agora estou no meio, estou perdido”, diz antes de soltar uma gargalhada sonora. Primeiras etapas Ao longo da adolescência, Jo-B De Souza continuou a ter casos com mulheres. Porém, havia algo dentro de si que o distinguia de todo o universo lésbico. “Há mulheres que só querem estar com outras mulheres, a mim o que me preocupa é não estar no papel de mulher”, conta. Apesar de ainda estar preso ao sexo com que nasceu, Jo-B De Souza considera-se e comporta-se como um macho alfa, ao ponto de não se sentir cómodo em mostrar as partes íntimas durante relações, a menos que seja com alguém com quem tem uma relação longa e de profunda confiança. “Quando estou com uma mulher, fora do contexto de namoro, não me sinto confortável sem roupa à frente delas, nem permito que me toquem abaixo da cintura”, explica. Após algumas relações longas e experimentação, Jo-B De Souza teve de encarar a transição que se impunha e que desde sempre germinava dentro de si. Em 2016 começou a aplicar um gel com hormonas masculinas e iniciou o processo da sua reconstrução física. “Andei a procrastinar a mudança de sexo. Primeiro não tinha dinheiro, mas depois comecei a ter medo de dar o próximo passo, andava sempre a adiar, dizia sempre para mim que seria amanhã, que ainda era jovem, que era muito cedo”, confessa. Outra das hesitações de Jo-B De Souza era o receio em revelar aos pais que queria embarcar numa viagem biológica sem retorno, mesmo sabendo que os seus pais são pessoas bastante abertas. Não era uma questão de falta de confiança, mas da dificuldade em contar que se quer fazer algo tão drástico. “Eles têm feito um excelente trabalho em fazer-me feliz e a ideia de lhes dizer que havia algo tão grande reprimido dentro de mim, ao longo de todos estes anos, é muito triste”, explica. Apesar de não ser segredo para quem era próximo de Jo-B De Souza, a efectiva mudança de sexo era algo que parecia distante, mas inevitável. Mas o seu corpo era um empecilho com o qual tem sido obrigado a viver todos os dias da sua vida. “Impediu-me de fazer muitas coisas, adoro nadar e não posso, gosto de ir à praia e não quero ter de vestir biquínis, gosto de jogar basquete mas não conseguia devido ao peso do peito, também não podia comprar a roupa que queria”, enumera. Salto em frente Jo-B De Souza virou a página da sua identidade de género numa altura que decidiu encerrar um capítulo amoroso com uma pessoa que entrava e saía da sua vida há algum tempo. Cansado da falta de eficácia do gel com testosterona e posta de parte a hipótese de congelar óvulos para uma futura maternidade, decidiu dar os passos que a cirurgia reconstrutiva lhe permitem dar. Em todas as etapas médicas, Jo-B De Souza recorreu sempre a uma clínica na Tailândia e passou a ser seguido por um médico norte-americano que opera em Pattaya. É de salientar que em Macau não existem este tipo de serviços médicos. Aliás, solicitados pelo HM, os Serviços de Saúde locais não responderam se existe algum plano de no futuro virem a providenciar serviços cirúrgicos, ou mesmo de substituição hormonal. Assim sendo, em Maio do ano passado, Jo-B De Souza removeu os seios na clínica que o vinha seguindo. “Passei a poder vestir o que me apetece, sem sentir que tenho um segredo a esconder. Agora quando vou ao ginásio já não vou para o balneário feminino, estou no balneário dos homens e ninguém sequer duvida, desde que tenha uma toalha à cintura”, conta. A partir de Outubro de 2016 começou a injectar testosterona, um processo que se iniciou com umas análises que revelaram uma quantidade anormalmente grande de hormonas masculinas. Desde então, recebe todos os trimestres uma encomenda de injecções. Como nunca teve uma relação confortável com agulhas, tirando as que tatuam, Jo-B De Souza recorreu a alguém em quem sabia que podia confiar, a sua irmã, um dos seus principais pilares de apoio, sem esquecer o cunhado. “Há dias que é doloroso e outros dias em que não há sensação”, conta acrescentando que as injecções passaram a ser um ritual que tem de cumprir a cada três dias. “Comecei com 0.2 mg e agora tomo 0.35 mg. Isto vai ser para sempre, mas não com esta frequência”. Começou assim o processo de modificação total das hormonas, antes do adeus final à produção de estrogénio que viria em Novembro último, altura em que removeu o útero e os ovários. Esta fase significaria o armistício de uma guerra hormonal que durara a sua vida inteira. Super-homem Antes de começar com as injecções, Jo-B De Souza teve de fazer análises. “Quando fiz o meu primeiro teste ao sangue na clínica o médico perguntou-me se já tinha feito algum tratamento hormonal porque, normalmente, os níveis de testosterona de uma mulher vão até 30, mas eu tinha 61”, conta. Níveis que não são surpreendentes face à fisionomia de Jo-B De Souza, que sempre teve, por exemplo, ombros largos e dedos grossos. Desde a primeira intervenção, em que removeu os seios, o residente de Macau ganhou uma reputação de homem de ferro entre os pessoal médico e de enfermagem na clínica tailandesa que o tem acompanhado. “No hospital deram-me a alcunha de Super-homem”, conta bem humorado. A remoção do peito, mastectomia, é um procedimento doloroso que implica o reajuste do torso. Como tal, após a cirurgia os pacientes podem ter de ficar duas semanas imobilizados numa cama de hospital. “No dia seguinte à operação, acordei e não senti dor e como precisava de ir à casa de banho e não havia ninguém por perto, levantei-me e fui à casa de banho. Ainda não tinha decorrido 24 horas desde que tinha saído do bloco operatório. Os médicos ficaram alarmados mas eu acalmei-os e disse-lhes que não sentia dor, que estava tudo bem”, recorda. A partir desse momento, começou a circular entre o pessoal da clínica e pacientes a alcunha “Super-homem”, uma alcunha que se foi disseminando das empregadas de limpeza, enfermeiras, até ao pessoal médico. A reputação aprofundou-se quando chegou a altura de remover órgãos. Em Novembro, Jo-B De Souza deu entrada na clínica da Pattaya para fazer uma histerectomia e ovariectomia, o que trocado por miúdos significa a remoção do útero e ovários. Mais uma vez, o natural de Macau tinha pela frente uma recuperação lenta, dolorosa, que implicaria cerca de duas semanas de cama. Ainda assim, no dia seguinte à cirurgia resolveu pôr-se de pé, ao lado da cama, tranquilamente a ver televisão. Sem grande disposição para ficar deitado, Jo-B De Souza, após exame médico, teve alta e regressou a Macau, encurtando o período de convalescença na cama da clínica de duas semanas para dois dias. A forma como o seu corpo recuperou de uma intervenção que não é definitivamente pêra doce em termos médicos surpreendeu o médico e aumentou a sua reputação de super-herói. Durante estes complicados processos, Jo-B De Souza contou com o apoio incondicional da sua namorada e de uma nova família que conheceu na Tailândia a partir de um amigo que fez na clínica. Mesmo durante os períodos de curta convalescença, o natural de Macau teve sempre uma rede de apoio que não o largou, desde a família e a namorada à distância, passando pela família do amigo tailandês que o acompanhou nos momentos mais frágeis. Ficaram tão próximos que Jo-B passou a visitá-los regularmente à Tailândia. Homem novo Com a remoção do útero e ovários, Jo-B De Souza deixou de produzir estrogénio. Juntando a esse facto as injecções de testosterona, pode-se dizer que em termos hormonais é um homem, algo que lhe dá uma vantagem de perspectiva que poucas pessoas alguma vez irão experimentar. “Como fui exposto a ambos os mundos, nunca imaginava que as emoções de uma mulher são assim tão doidas, porque as considerava normais”, conta. Hoje em dia, Jo-B De Souza sente-se nas nuvens, “high” como diz em inglês, e congratula-se porque nada o chateia como antes. “Saí dessa montanha russa emocional, estou focado e não fico tão facilmente agitado ou irritado com as coisas”, revela. O residente de Macau sempre entendeu que as suas emoções representavam dois extremos pendulares que eram, em simultâneo, a maior fraqueza e a maior força. Até à remoção de parte do sistema reprodutor feminino, a sensibilidade, a empatia e mesmo a atribuição de significado a coisas triviais para os outros foram motivos para altos e baixos de ânimo. Neste momento, vive uma espécie de segunda puberdade enquanto as hormonas masculinas tomam conta do seu corpo. No seu rosto começa a despontar uma mais que bem-vinda barba e a voz torna-se mais funda. Aliás, este é um dos detalhes que o faz recuar em sentimentalismo. Jo-B De Souza sempre gostou de cantar, nesse aspecto a perda da sua antiga voz é algo que o emociona, principalmente quando ouve antigas gravações que fez. Porém, já se aventura com a voz masculina, enquanto a intensidade de interpretação se mantem. “Acho que vou apreciar estas mudanças, que são de médio longo-prazo, não chegam de repente. Agora vou fazer a viagem de um rapaz dos 12 anos aos 18 anos. Existe essa margem, um homem não se faz assim de repente e eu quero saborear esse longo período”. Última fronteira Depois de duas anestesias gerais em menos de um ano, Jo-B De Souza não pode voltar tão cedo ao bloco operatório. Porém, no horizonte falta um passo, a faloplastia, ou seja, a construção do órgão sexual masculino. Esta cirurgia, a derradeira, pressupõe algum planeamento pois requer uma recuperação mais lenta e complicada, mesmo para um Super-homem. A faloplastia implicará muitas horas de fisioterapia e de recuperação muscular. Outra questão na mente de Jo-B De Souza é de natureza monetária. Além do preço da cirurgia, o residente de Macau quer amealhar dinheiro para estar confortável por um período de tempo, que se prevê largo, durante o qual não poderá trabalhar. “Preciso de saber como será a recuperação mas não estou com pressa, desde que esteja bem de saúde estou óptimo”, explica com simplicidade. Além da mudança física, Jo-B De Souza vai tentar alterar o seu género juntos da Direcção dos Serviços de Identificação. “As leis em Macau não regulam estas situações, mas acho que encontrei uma lacuna. Ao que parece, desde que um médico escreva uma carta a dizer que o corpo da pessoa é 75 a 80 por cento daquele sexo, eles têm de adequar essa realidade com o género que está no BIR”, conta. Aliás, Jo-B De Souza apronta-se para fazer a análise de sangue que servirá de argumento para a oficialização junto dos serviços públicos da pessoa que existe além da identidade no papel. Essa será a derradeira fase da metamorfose de Jo-B De Souza, o momento em que lhe será restituído algo que nunca teve, mas que sempre sentiu. Será, também, um passo que lhe trará esclarecimento, mesmo dentro de uma comunidade LGBT com a qual nunca se identificou completamente. “Não julgo as pessoas gays, nem lésbicas, mas não quero ser uma delas. Só quero ser normal, não quero casamento gay, quero um casamento normal, heterossexual”, comenta Jo-B De Souza, que simplesmente repudia que o tratem como mulher. Apesar de conhecer um residente local que fez a transição de masculino para feminino, igualmente operado na Tailândia, Jo-B não conhece ninguém que tenha feito o percurso pioneiro que se prepara para completar. Com a determinação e força que o caracterizam, Jo-B De Souza está perto de finalizar um caminho nunca antes trilhado por ninguém em Macau. Entre dois tragos num cigarro, diz com leveza: “Vou fazer todas as etapas porque se começo algo tenho de ir até ao fim”. A perspectiva clínica [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] transtorno da identidade de género ainda é considerado umapatologia pelo Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais. Facto que irá mudar na próxima revisão do documento, de acordo com a Organização Mundial de Saúde. Está em curso “a despatologização dos transgéneros, a autodeterminação e as identidades de género não binárias e flutuantes, que são noções e conceitos que desafiam as ideias milenarmente instituídas na sociedade”, explica Graça Santos, psiquiatra e coordenadora da URGUS (Unidade de Reconstrução Génito-Urinária e Sexual) do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. A coordenadora da unidade que providencia em Coimbra hormonoterapia, assim como histerectomia, ovariectomia e faloplastia, considera que estes casos têm, normalmente, uma elevada dose de sofrimento implícito. “Muitas vezes isolam-se dos seus pares e não adquirem as necessárias competências de socialização, têm dificuldade em ter relações de amizade, namoro etc”, explica a psiquiatra. Os constrangimentos físicos e psicológicos pode valer a “perda de experiências como a prática desportiva, ir à praia, nadar e situações em que o corpo se desnuda”. Se à falta de apoio se juntar a discriminação e o bullying, os jovens transgéneros podem mesmo a sofrer “episódios depressivos, ansiedade elevada, ideação suicida, tentativas de suicídio e auto-mutilações”. Após uma primeira fase de avaliação em consulta em sexologia (psiquiatra ou psicólogo) é feito o diagnóstico de Disforia de Género. No caso do indivíduo o desejar (o mais comum é desejarem-no) o utente deve ser acompanhado na especialidade de endocrinologia para iniciar tratamento hormonal de feminização ou masculinização. “Estas alterações são vividas com agrado, muitas vezes com euforia, embora a terapêutica hormonal também possa induzir alguma instabilidade emocional. As modificações são muito bem-vindas e permitem que a pessoa transexual possa afirmar-se socialmente como sendo do género que pretende ser e não daquele que lhe foi atribuído à nascença. Esta conformidade entre corpo e identidade traz sentimentos de bem-estar e uma perspectiva positiva do futuro. Agora podem ser o que sempre sentiram que eram”, explica a coordenadora do URGUS. Quem embarca neste processo no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, tem uma equipa multidisciplinar ao seu serviço, que inclui clínicos de psicologia, psiquiatria, endocrinologia, urologia, ginecologia, cirurgia plástica, terapeuta da voz e assistente social.