Terceiro acto – Cena 6

Os primeiros raios de sol começam a invadir a sala através da janela. A passarada também parece estar a acordar, a julgar pelo volume da galhofa que se faz ouvir. Valério levanta-se e aproxima-se da janela. Depois de alguns segundos a olhar a paisagem, abre a janela e debruça-se no parapeito. Gonçalo acende mais um cigarro.

Valério
[para os pássaros]
Estamos muito animados, hã?

Gonçalo
Não lhes dês confiança!

Valério
Porquê, vão querer o meu braço?

Gonçalo
Comem-te a alma. Piu, piu… piu, piu… já foste!

Valério
Já foste… uma expressão de Gonçalo Wa…

Gonçalo
Vamos passear!

Gonçalo vai até à casa de banho e fecha a porta. Valério fecha a janela e aproxima-se da porta de entrada onde estão os casacos. Tira o seu, mas acaba por voltar a pô-lo onde estava e regressa ao seu lugar para acender mais um cigarro.

Valério
Voltamos aqui?

Gonçalo
[off]
Acho que não. Seguimos logo para o carro.

Ouve-se a descarga do autoclismo e a água do lavatório começa a correr. A porta da casa de banho abre-se e Gonçalo sai, sacudindo as mãos. Vai até ao bengaleiro e pega no seu casaco, depois aproxima-se de Valério e acende também um cigarro. Senta-se com o casaco ao colo.

Valério
Porque é que não te levantaste?

Gonçalo
[sorrindo]
Mas tu queres mesmo ir passear?

Valério
Quero. Mas algo me diz que seria bom para os dois irmos passear com esta questão resolvida.

Gonçalo
[desagradado]
Mas tu tens alguma questão?

Valério
Calma, ‘mor, estamos só a conversar.

Gonçalo
O que é que queres que te diga?

Valério
Quero que penses no assunto, nem que fiquemos aqui até amanhã, e me dês uma resposta aceitável.

Gonçalo
Ui… o que é uma resposta aceitável.

Valério
Não precisa de ser definitiva. Basta que se perceba que tentaste, pelo menos…

Gonçalo
Ai, ‘mor, tantas certezas!

Valério
Eu vou buscar o meu casaco e venho já sentar-me outra vez só para te pressionar.

Valério cumpre o prometido. Depois de apanhar o seu casaco e o cachecol, regressa ao seu lugar. Acende mais um cigarro e sorri para Gonçalo.

Gonçalo
[atrapalhado]
Que pressão!

Valério
Desembucha! Estou a ficar com fome.

Gonçalo vai até ao fogão, pega na cafeteira e vai enchê-la na torneira do lava-loiças. Depois regressa ao fogão e acende um dos bicos. Abre uma lata de café e deita duas colheres generosas na cafeteira. Vem até à mesa, abre um grande saco de compras e põe todas as garrafas vazias lá dentro. Antes de regressar ao seu lugar, espreita a lareira. Resolve espalhar as brasas quase moribundas para que faleçam de vez.

Valério
[sorrindo]
Já acabaste a lida da casa?

Gonçalo
[pensativo]
Não tenho resposta.

Valério
Aldrabão!

Gonçalo
Não tenho.

Valério
Nem tentaste!

Gonçalo
Já tentei várias vezes… não encontro resposta. [pausa] O que é mais assustador é que… aquele momento… é um hiato.

Valério
Um hiato?

Gonçalo
Sim, uma falha. Uma lacuna.

Valério
Eu sei o que é.

Gonçalo
Eu sei que sabes… mas é a única maneira de descrever o que se passou. Sentei-me… fiquei ali quieto durante umas horas… e acabou-se. E durou o tempo que terá durado o funeral… pelos vistos. Agora, o que é que se passou comigo durante todo esse tempo?, perguntas tu. [pausa] Não faço a mínima ideia.

Valério
Não pensaste em nada?

Gonçalo
Nada.

Valério
Não te levantaste para comer.

Gonçalo
Não. Nem tive fome. [pausa] Mas lembro-me de que a primeira coisa que fiz, quando me levantei, foi ir para a casa de banho. Estava bastante aflito. Mas enquanto estava sentado não senti vontade nenhuma.

Valério
[pausa]
Olha… se eu fosse um psicoterapeuta da treta, diria: isso é a tua maneira de lidares com as tuas emoções. Fizeste um by-pass ao luto do teu amigo, ficando em casa a olhar para nenhures. [pausa] Já te tinha acontecido semelhante coisa na vida?

Gonçalo
Como este apagão?

Valério
Como queiras chamar-lhe…

Gonçalo
Não… nada que se pareça.

Valério
Se calhar devias abordar esse tema do apagão no Joãozinho Neo-Nazi.

Gonçalo
Auto-terapia?

Valério
Porque não? [pausa] Eu disse algumas coisas à família e aos nosso amigos em comum… no funeral.

Gonçalo
Olha que bom para ti!

Valério
O que é que gostarias de ter dito?

Gonçalo
[incomodado]
Sei lá!

Valério
[desafiante]
Aqui que ninguém nos ouve… diz lá.

Gonçalo
Não me faças isso, por favor.

Valério
[sorrindo]
Depois vamos embora…

A cafeteira começa a silvar. Gonçalo pousa o casaco no chão. vai até à cafeteira e apaga o bico do fogão. Pega em duas canecas que estavam de pernas para o ar no escorredor e enche-as de café. Regressa ao seu lugar e dá uma das canecas ao amigo, antes de se sentar.

Valério
Então… só umas palavras, vá. Eu começo: Era meu amigo. Eu gostava muito dele… fazia-me rir. Estou triste. [pausa] Vês, fui fofinho.

Gonçalo
És sempre.

Valério
Vá, agora é a tua vez.

Gonçalo
[envergonhado]
Não consigo.

Valério
[dando-lhe uma palmada nas costas]
Eu sei. [pausa] No meio da floresta já volto à carga.

Os dois levantam-se e vestem os casacos. Gonçalo pega no saco das garrafas e Valério certifica-se de que a janela está fechada. Gonçalo abre a porta e os dois amigos saem.

FIM

2 Mar 2022

Terceiro acto – Cena 5

Os dois amigos deixam-se ficar em silêncio durante algum tempo. Há uma fina cortina de fumo que paira na sala. Apesar da janela estar fechada, ainda se ouve o murmúrio da floresta no exterior.

Gonçalo
E se a tua aluna te vê assim?

Valério
Assim, como?

Gonçalo
Deitado no sofá, afundado no poço, com as lágrimas a caírem-te dos olhinhos…

Valério
Pois… [pausa] Isso não pode vai acontecer.

Gonçalo
Ela até pode achar interessante… um estímulo positivo na vossa nova relação: um professor inteligentíssimo, que faz mergulhos de escafandro na sua própria depressão… “Ai, ele é incrível, até domina o seu lado mais negro…”

Valério
Mais uma razão para eu ficar quieto.

Gonçalo
… Ou então ela resgata-te do poço e deixas aos poucos de fazer os teus mergulhos higiénicos, muito apreciados pela tua alminha sensível…

Valério
Talvez…

Gonçalo
E depois dás por ti a sentir falta dos mergulhos, daquele hábito diário, tão entranhado que estava… e pouco a pouco começas a detestá-la: primeiro a evitar o olhar dela, depois o toque… depois vais deixando de lhe falar… [pausa] Até que ela acaba por desistir de tentar comunicar e vai-se embora… sem nunca saber o que terá acontecido.

Valério
Perspectiva animadora, sim senhor.

Gonçalo
Mas realista, não?

Valério
Em que sentido?

Gonçalo
De deixar andar… até apodrecer.
Valério
Talvez.

Gonçalo
Seria o mesmo com bebida ou com droga… o amor salva, mas também limita. [pausa] Quem disse que queríamos ser salvos?

Gonçalo vai até à mesa e começa a desarrolhar outra garrafa de vinho tinto. Os seus movimentos são atabalhoados, ele próprio ri-se da sua falta de jeito potenciada pelo nível crescente de álcool no sangue.

Valério
[rindo]
São umas egoístas, essas pessoas.

Gonçalo
Já não se pode beber até cair sem que nos chamem à atenção para a vida que estamos a deitar fora!

Valério
E para o tempo desperdiçado…

Gonçalo volta ao seu lugar. Antes de se sentar, serve os dois copos que Valério segura. Os dois erguem os copos e fazem um brinde desajeitado. Pega cada um no seu cigarro e acendem à vez, partilhando o isqueiro. Regressa o silêncio, acamado pelo murmúrio que vem lá de fora.

Valério
Não tens vizinhos?

Gonçalo
Boa pergunta… não faço ideia. [pausa] Há por aí umas casas…

Valério
Não me lembro de ver nenhuma no caminho.

Gonçalo
Da estrada não se vêem muitas, mas se andares pelo meio da floresta…

Valério
Tens de me levar a passear, então…

Gonçalo
Sim, quando amanhecer.

Mais uma vez deixam que o silêncio invada a pequena casa de montanha. Gonçalo vai até à lareira. Pega num toro de madeira com a tenaz e põe-no por cima das brasas incandescentes. Sopra- as brasas para atiçar o lume.

Valério
Porque é que não foste ao funeral?

Gonçalo observa as chamas que consomem a madeira recém-chegada. Dá várias passas seguidas no seu cigarro. Depois de terminado, atira a ponta para as brasas. Tira outro cigarro do maço que tem no bolso e usa a tenaz para trazer uma pequena brasa à boca. Acende o fumante, pousa a brasa e a tenaz, e põe-se outra vez a observar as pequenas labaredas.

Valério
Ninguém te levou a mal… não há maneira certa de reagir à morte. [pausa] Acho eu… Mas houve perguntas… “Onde é que ele está?”… “Porque é que ele não veio?”… “Andavam chateados?”…

Gonçalo
E as tuas?

Valério
As minhas quê?

Gonçalo
Perguntas… Quais são as tuas?

Valério
Não tenho… [pausa] Quer dizer, já a fiz.

Gonçalo
Pois…

Gonçalo regressa ao seu lugar, ao lado do amigo, e põe-se a olhar um ponto distante, como se pensasse cuidadosamente no que irá dizer.

Gonçalo
Estive quase a sair de casa… mas não me consegui levantar do sofá. Estava com o casaco vestido, tinha as chaves de casa no bolso e os óculos escuros postos. Mas não me consegui levantar… [pausa longa] Há aqui um filão a explorar, não sei se reparaste…?

Valério
[surpreendido]
Qual?

Gonçalo
Homens solteiros e solitários… sofá… depressão…

Valério
Não é novidade.

Gonçalo
Certo… [pausa] A que horas acabou?

Valério
Por volta as cinco.

Gonçalo
Pois. Foi quando finalmente me levantei… mais coisa, menos coisa.

Valério
Estiveste essas horas todas sentado?
Gonçalo
Estive, pois.

Valério
Uns descem ao poço deitados, outros descem sentados.

Gonçalo
Não sei se desci.

Valério
[sorrindo]
Foi só cobardia?

Gonçalo
Talvez…

Valério
Estou a brincar.

Gonçalo
Eu percebi… Mas talvez tenha sido, sim.

Valério
Não é preciso desceres ao fundo do poço… às vezes já andas sem saber.

Gonçalo
Verdade.

Valério
É uma vibração constante, muito ténue… que às vezes não se nota, mas está lá sempre presente. [pausa] Talvez eu use as minhas sessões de descensão precisamente para reconhecer a existência dessa pequena nota constante na minha vida.

Gonçalo
És muito poético em relação a esse estado…

Valério
Pois sou.

Gonçalo
Romantiza-lo muito, na minha opinião…

Valério
Talvez… [pausa] Uns sentam-se e apagam, outros deitam-se e romantizam.

Gonçalo
E há os que escondem essa música durante uma vida inteira… e quando finalmente são apanhados e a ouvem, vão atrás dela, como a criançada vai atrás do flautista… e adeus.

23 Fev 2022

Terceiro acto – Cena 2

Gonçalo continua absorto na sua nuvem de fumo, há qualquer coisa de mágico na forma como o fumo se espalha pela divisão, iluminado pelo luar que vem da janela. Os pássaros nocturnos vão picando o ponto na noite silenciosa que se adivinha lá fora. Ouve-se uma descarga do autoclismo, depois água a correr do lavatório. A porta do fundo abre-se, Valério entra, volta a fechá-la atrás de si e aproxima-se da mesa. Abre o frasco de tremoços e trá-lo consigo de volta ao seu lugar.

Gonçalo
Lavaste as mãos, fofa?

Valério
Claro, meu amor.

Gonçalo levanta-se e vai buscar duas tigelas a um dos armários por cima do balcão lava-loiça. Depois pega num dos pacotes de batata frita e regressa ao seu lugar. Abre o pacote e deita algumas para uma das tigelas. Valério já mastigou alguns tremoços e usa a outra tigela para as cascas.

Gonçalo
Foram jantar e…?

Valério
E… [longa pausa] Não sei exactamente quando é que foi, mas sei que foi cedo… que me esqueci de que estava a falar com uma mulher com metade da minha idade…

Gonçalo
[interrompendo]
Uma mulher. Muito bem!

Valério
[confuso]
O quê?

Gonçalo
Por isso é que te esqueceste da idade dela… olhas para ela como uma mulher.

Valério
Hmmm… pois. [pausa] Estava completamente babado a ouvi-la… no meu babete interior [ri-se]. Ela é inteligente… tem a voz aveludada… e cheira tão bem, valha-me Deus. [pausa] Mas depois lembrei-me de como fomos ali parar… e lembrei-me da idade dela… e comecei a gaguejar. [pausa] Acho que ela notou… e até achou piada. Entrámos no carro… ela queria ir dançar. Mais um lembrete: já não danço. É da idade. Ela pediu-me para tentarmos noutro dia… beijou-me. [pausa] Foi sair com umas amigas, deixei-a à porta de um bar… depois fui para casa.

Gonçalo
E porque é que estás com o ar mais deprimido do mundo?

Valério
É uma boa pergunta…
Gonçalo
Pois é.

Os dois ficam novamente em silêncio. Gonçalo acende dois cigarros ao mesmo tempo e dá um ao amigo. Agora contemplam a nuvem de fumo e os estranhos padrões mutáveis que ela vai formando. Valério volta a olhar para o texto de Gonçalo. Hesita antes de falar.

Valério
[indicando o texto]
Talvez o sentido mais alargado de que falava, essa coisa mais impenetrável e absoluta, já lá esteja… [pausa] Eu sou demasiado analítico… por isso é que me pedes para ler os teus textos. [pausa] Está lá alguma coisa… isso é certo. E pelo simples facto de não falares dela, torna-se quase palpável… Há uma força qualquer… não sei apontá-la, confesso. Mas pressentimo-la a cada frase. E não estou a falar deste texto em particular… falo da tua escrita em geral. [pausa] Às vezes parece totalmente superficial… irónica, muitas vezes sarcástica… mas… lá está… do nada pregas-nos uma rasteira e passamos a ver tudo com outros olhos… é interessante… muitas vezes essas rasteiras vêm tarde no texto, mas mesmo assim, quando acontece, revemos tudo num ápice, desde o início, com outros olhos… até ao ponto da rasteira… e percebemos que o que quer que nos tenha feito tropeçar já lá estava desde início… e era tão óbvio… mas estava muito bem disfarçado.

Valério volta a reler algumas passagens. Gonçalo termina o seu cigarro e acende outro com a beata do quase defunto. Depois serve-se de mais vinho.

Valério
O truque é… [interrompe-se] Não há truque, eu sei… da tua parte. Para quem lê, sim, pode passar por truque… mas isso não é mau… [indica o fumo dos cigarros] É como estas nuvens de fumo… há algo de fortuito nas formas… imperfeições, às vezes parecem inacabadas, outras parecem ter sido excessivamente elaboradas… mas aconteceram assim, formaram-se assim… e é precisamente nesta aleatoriedade que reside a beleza destas nuvens de fumo, não é?

Gonçalo
É… acho que sim.

Os dois ficam durante algum tempo a admirar as nuvens de fumo que se espalham novamente pelo tecto. O luar está ainda mais intenso.

Valério
Vais continuar?

Gonçalo
O Joãozinho Neo-Nazi?

Valério
Isso era um título com tomates!

Gonçalo
Também acho… [pausa] Vais vê-la outra vez?

Valério
Pois que não sei…

Gonçalo
Acho que devias…

Valério
Eu acho que não. [pausa] Ela vai querer dançar… eu vou querer ficar-me pelo jantar… Isso aguenta-se durante uns meses… e depois? Eu quero ler… quando muito ir ao cinema… e chega. E depois? [pausa] Às tantas ela farta-se, começa a dar-se conta dos anos que nos separam… gosta muito de estar comigo, mas… e eu não digo nada, deixo andar… e ficamos assim, durante algum tempo, até os ventos da paixão amainarem… [os dois desatam à gargalhada]. Que azeiteiro…!

Gonçalo
Até Os Ventos da Paixão Amainarem… o novo romance de Valério R…

Valério
Prefiro ir dançar!

Gonçalo
E achas que ela é como tu…? [ri-se] Que vai deixar andar até os ventos da paixão amainarem…?

Valério
É bem visto… Não sei. [pausa] Mas sei que não vou esperar que chegue até aí. E já percebi que ela quer dançar e sair… e vai querer que eu conheça os amigos e as amigas… Deus me livre e guarde!

Gonçalo
Se calhar ela sabe como és e não vai insistir.

Valério
Vai, vai… não tenho a mínima dúvida.

13 Mai 2021

Terceiro Acto – Cena 1

Gonçalo escreve à máquina, sentado na mesinha em frente à janela. Tem uma garrafa de vinho aberta e o candeeiro a petróleo aceso. A janela aberta por onde entra o luar e uma brisa nocturna. Gonçalo escreve com intensidade, a percussão das teclas é impiedosa. Batem à porta e Gonçalo assusta-se, como se acordasse de um pesadelo. Abre a porta a medo. É Valério, sorridente. Traz um saco de compras cheio e uma garrafa de vinho na mão. Ele avança para a mesinha, pousa a garrafa de vinho e tira mais quatro garrafas iguais do saco, para além de três pacotes de frutos secos, dois de batatas fritas e um grande frasco de tremoços. Valério repara no montinho de folhas dactilografadas, ao lado da máquina, e passa-lhes o polegar, avaliando a quantidade de texto produzida. Olha para Gonçalo e aquiesce com um trejeito de boca. Aponta para o montinho, como se perguntasse: “posso?” e Gonçalo aquiesce, também com um trejeitozito, como se respondesse “por quem sois!” Valério fecha a janela, pega no montinho e trá-lo até à sua cadeira de madeira onde se senta a ler. Gonçalo vai até à lareira, pega em duas pinhas e pousa-as lá dentro. Depois cobre-as com bastante caruma e acende-as. O lume leva o seu tempo a aparecer. Depois põe dois toros por cima do lume, não deixando que este se apague. Quando lhe parece que tudo corre pelo melhor, volta à mesa para abrir uma das garrafas de vinho. Pega no saca-rolhas…

Valério
[sem olhar para Gonçalo]
Abre já duas.

Gonçalo ri-se discretamente e faz o que o amigo lhe recomendou. Serve dois copos e trá-los para as cadeiras. Dá um dos copos a Valério e pousa a garrafa no chão. Olha para Valério.

Valério
[sem olhar para Gonçalo]
Não me pressiones. [agora fita Gonçalo] Se vais ficar a olhar para mim, paro já!

Gonçalo
Sim, senhor!

Gonçalo levanta-se a vai espreitar a lareira. Os toros ardem bem, nada a apontar. Gonçalo finge que mexe neles com a tenaz, aproveitando para olhar para Valério e adivinhar as reacções do amigo à leitura.

Valério
Pára!

Gonçalo volta aos seus toros ardentes, sem conseguir disfarçar uma gargalhada.

Valério
Ri-te, ri-te…!

Gonçalo vem sentar-se à mesa, olhando pela janela enquanto termina o vinho que tem no copo. Serve-se outra vez e tira a folha que está na máquina e põe-se a ler o que está escrito. Pega num pequeno lápis e vai tirando algumas notas. Quando acaba, vai até à porta do fundo, abre-a e sai de cena, fechando a porta atrás de si.
O tempo passa. Valério termina de ler e pousa as folhas na cadeira de Gonçalo. Serve-se de mais vinho da garrafa que está no chão e olha pensativo pela janela.
Gonçalo volta a entrar e vem sentar-se ao lado do amigo. Os dois ficam em silêncio durante bastante tempo.

Valério
[olhando a janela]
O Joãozinho Neo-Nazi…

Gonçalo
Hmm… [pausa] E…?

Valério
[medindo as palavras]
Estás no bom caminho… às vezes.

Gonçalo
[franzindo o sobrolho]
Às vezes…?

Valério
Calma… deixa-me pensar! [pausa] É interessante… mas fica sempre a sensação de que não acreditas no que estás a escrever e, às tantas, sabe-se lá porquê, boicotas-te… e boicotas a história. [pausa] Mas depois voltas a agarrar-nos… e isso até pode ser interessante… assim como está, digo eu… de boicote, recuperação… novo boicote, nova recuperação… é intrigante, não haja dúvida. As personagens são sólidas, apesar da pouca informação que nos dás delas… e isso é bom. Há mistério… há sensação de local… de sítio… embora estejam numa sala estéril… e isso também é bom. Mas quando estás a chegar às profundezas… a um significado mais alargado… a qualquer coisa mais impenetrável, mas mais absoluta, parece que tens medo… do escuro ou da falta de ar, não faço ideia… e voltas à superfície para nos pregares outra rasteira.

Gonçalo
O que é que queres dizer com…

Valério
[interrompendo]
Não sei! [pausa] Deixa-me pensar mais um bocadinho…

Gonçalo
Não se safa com uma segunda leitura?

Valério
[estranhando a pergunta]
Não se trata de safar. [pausa] É bom que na segunda leitura se mantenham as dúvidas e o mistério…

Valério saca do seu maço e oferece um cigarro a Gonçalo. Tira um para si e acende o isqueiro. Os dois ficam mais algum tempo em silêncio, saboreando os seus pregos fumantes.

Valério
[comprometido]
Fui sair com a minha aluna…
Gonçalo
[travesso]
É preciso chamar a polícia?

Valério
[sorrindo]
Para já, não.

Gonçalo
E como é que isso aconteceu?

Valério
[leva o seu tempo]
Foi…estranho.

Gonçalo
Estranho?

Valério
Sim… [pausa] Foi ela que me abordou… perguntou-me se eu a queria levar a jantar.

Gonçalo
Na faculdade?

Valério
Sim… à saída de uma aula.

Gonçalo
[sorrindo]
E tu, borraste-te todo nas calças…

Valério
Não… foi bastante natural, por acaso.

Gonçalo
Natural?

Valério
[rindo]
Sim, natural é uma palavra horrível… mas não me ocorre nenhuma melhor.

Gonçalo
Eu percebi… [pausa] E foram jantar?

Valério
Fomos, pois.

Valério levanta-se e vai até à porta do fundo, saindo de cena. Gonçalo fica sozinho, contemplando a nuvem de fumo que se espalha pelo tecto da sua cabana nas montanhas.

6 Mai 2021