A Relíquia, de Eça de Queirós – Parte 4 (de 8)

Segundo o filósofo António Marques, no livro A Filosofia e o Mal (2015), a grande revolução de Kant no tocante ao mal é que lhe confere identidade, isto é, não faz do mal uma ausência de bem, mas uma presença negativa. O mal existe, do mesmo modo que existe o bem. A questão da identidade das grandezas negativas era tão importante para Kant, que oito anos antes da Crítica da Razão Pura escreve um artigo chamado «Tentativa de introduzir o conceito das grandezas negativas na Filosofia».

E neste artigo chega a dar o exemplo de uma viagem de uma embarcação de Portugal para o Brasil através da acção dos ventos de Oeste e dos ventos de Leste. Os primeiros seriam expressos em grandezas negativas e os últimos em grandezas positivas. Os primeiros impediam o barco de avançar e os segundos ajudavam o barco a avançar. As milhas percorridas são expressas em + e – consoante são ventos de leste ou de oeste. E Kant depois de vários exemplos termina por dizer o seguinte: «[…] as grandezas negativas não são negações de grandezas como tem sugerido a expressão, mas algo verdadeiramente positivo em si mesmo… E assim a atracção negativa não é repouso, como supôs Crusius, mas repulsão genuína.»

No ponto de vista psicológico, Kant afirma que a dor não é ausência de prazer, mas uma identidade distinta. Ninguém faz entender a outrem que tem dor ao afirmar que não tem prazer. Ao tratar deste problema na esfera ética, Kant afirma que uma pessoa que tem consciência de um bem e pratica o oposto (ser verdadeiro / mentir; ser honesto / ser corrupto) não se priva simplesmente de actuar bem, mas pratica realmente o mal. O mal deriva da escolha de quebrar aquilo que deveria ser feito. O mal radical não deriva tanto daquilo que se faz, da acção, e nem sequer de uma consciência da acção, isto é, da consciência de que estamos a ir contra o que é o bem. Ir conscientemente contra aquilo que é o bem é praticar o mal.

Não há mal sem escolha, sem ter como horizonte um saber-se o que é o bem. Mas o mal radical não é apenas a consciência de se ir contra o que é o bem. O mal radical é uma inversão do bem. O «mal radical» é introduzido no mundo sempre que alguém conscientemente se furta ao bem, se furta àquilo que deveria ser feito segundo a razão, quer seja a morte de uma pessoa, como Raskalnikov em Crime e Castigo, de Dostoiévki, quer seja a de milhões de pessoas, como Hitler e Stalin, ou, muito simplesmente, enganar continuamente a sua tia, como o faz Teodorico Raposo, e encontra justificação para o seu acto. Ou seja, aquilo que é o bem passa a ser visto como algo que tem de ser contornado. No fundo, estamos perante aquela frase popular «vergonha não é roubar, vergonha é ser apanhado».

E este é o ponto de vista de Teodorico. Como escreve à página 63: «Quanto tempo mais teria de rezar com a odiosa velha o fastiento terço, de beijar o pé do Senhor dos Passos, sujo de tanta boca fidalga, de palmilhar novenas e de magoar os joelhos diante do corpo de um Deus, magro e cheio de feridas? Oh vida entre todas amargurosa! E já não tinha, para me consolar do enfadonho serviço de Jesus, os braços da Adélia…» Ou à página 41: «Ai, quando chegaria a hora, doce entre todas, de morrer a titi?»

Teodorico Raposo quer parecer à velha tia que é virtuoso, quando na realidade é vicioso. Na verdade, só os prazeres da carne lhe importam, os vícios, o deleite dos sentidos. Mas como está dependente da titi, do dinheiro da tia, cria uma personagem dele mesmo, de forma a poder usufruir do dinheiro da tia e, posteriormente, da sua herança. Veja-se, como exemplo, o que ele fazia depois de estar com a amante Adélia e antes de entrar na casa da titi: «Antes de galgar a triste escadaria da casa, penetrava subtilmente na cavalariça deserta, ao fundo do pátio; queimava no tampo de uma barrica vazia um pedaço da devota reina; e ali me demorava, expondo ao aroma purificador as abas do jaquetão e as minhas barbas viris… Depois subia; e tinha a satisfação de ver logo a titi a farejar regalada: // – Jesus, que rico cheirinho a igreja! // Modesto, e com suspiro, eu murmurava: // – Sou eu, titi… // Além disso, para melhor persuadir “da minha indiferença por saias”, coloquei um dia, no soalho do corredor, como perdida, uma carta com selo – certo que a religiosa D. Patrocínio, minha senhora e tia, a abriria logo, vorazmente. E abriu, e gostou. Era escrita por mim a um condiscípulo de Arraiolos; e dizia, em letra nobre, estas coisas edificantes: “Saberás que fiquei de mal com o Simões, o de Filosofia, por ele me ter convidado a ir a uma casa desonesta. Não admito destas ofensas.

Tu lembras-te que já em Coimbra eu detestava tais relaxações. E parece-me de uma grandessíssima cavalgadura aquele que, por causa de uma distracção que é fogo-viste-linguiça, [algo efémero, que se esvai assim como algo ao fogo] se arrisca a penar, por todos os séculos e séculos, ámen, nas fogueiras de Satanás, salvo seja! Ora, numa dessas refinadíssimas asneiras não é capaz de cair o teu do C. – Raposo».

Na verdade, a vida de Teodorico Raposo é uma prática de aperfeiçoamento da mentira. Poderíamos dizer, uma prática de aperfeiçoamento do mal. O mal vai refinando. Veja-se o episódio onde ele percebe que tem de melhorar o mal, de modo a cair de vez nas graças da titi. Aliás, sem este último passo, não haveria seguramente viagem a Jerusalém. Leia-se, às páginas 47 e 48: «Corrigi então a minha devoção e tornei-a perfeita.» Quando ele aqui diz perfeita, refere-se à mentira, a mentira perfeita, o mal no seu esplendor, o mal radical. Continua agora Teodorico Raposo: «Pensando que o bacalhau das sextas-feiras não fosse uma suficiente mortificação, nesses dias, diante da titi, bebia asceticamente um copo de água e trincava uma côdea de pão: o bacalhau comia-o à noite de cebolada, com bifes à inglesa, em casa da minha Adélia. […] Prodigiosa foi então a minha actividade devota! Ia a matinas, ia a vésperas. Jamais falhei a igreja ou ermida [capela de pequenas dimensões em lugares ermos] onde se fizesse a adoração ao Sagrado Coração de Jesus.

Em todas as exposições do Santíssimo eu lá estava, de rojos. […] Havia dias em que, sem repousar, correndo pelas ruas esbaforido, eu ia à missa das sete em Santana, e à missa das nove da Igreja de S. José, e à missa do meio-dia na ermida da Oliveirinha.

Descansava um instante a uma esquina, de ripanço debaixo do braço, chupando à pressa o cigarro, depois voava ao Santíssimo exposto na paroquial de Santa Engrácia, à devoção do terço no Convento de Santa Joana, à bênção do Sacramento na Capela de Nossa Senhora às Picoas, à novena das Chagas de Cristo, na sua igreja, com música. Tomava então a tipoia do Pingalho, e ainda visitava, ao acaso, de fugida, os Mártires e S. Domingos, a Igreja do Convento do Desagravo e a Igreja da Visitação das Salésias, a Capela de Monserrate às Amoreiras e a Glória do Cardeal da Graça, as Flamengas e as Albertas, a Pena, o Rato, a Sé! // À noite, em casa da Adélia, estava tão derreado, mono e mole ao canto do sofá – que ela atirava-me murros pelos ombros, e gritava, furiosa: // – Esperta, morcão!»

Esta passagem, para além de nos mostrar o aperfeiçoamento do mal por parte de Teodorico, da sua tremenda mentira ou, se preferirmos, o aperfeiçoamento da sua personagem, mostra-nos também o quanto a mentira o deixa de rastos ou sem tempo para ser ele mesmo. Reparem como, na ânsia do dinheiro futuro, ele vive sendo completamente outro. Pois ao fingir uma virtude que não tem, ele ocupa todo o tempo sendo isso que não é. De tal modo que, quando ao final do dia, ele passa a ser quem é, já não tem forças para isso e acaba por não o ser. Esta passagem, que mostra com uma clareza brilhante aquilo que é a vida de Teodorico Raposo, é também uma metáfora das nossas vidas, das vidas de todos aqueles que ocupamos os dias sendo o que não gostamos de ser, à espera do dia em que poderemos ser quem julgamos ser. E digo julgamos, porque talvez na verdade não sejamos mais nada a não ser aquilo que somos, isto é, a negação de alguma coisa que nunca virá a ser. E isto é aterrador: pensar que podemos não ser outra coisa senão a negação do que nunca viremos a ser. A negação de algo que projectamos, mas que não sabemos nunca o que seria se viesse realmente a ser. Isto por si não é um mal e muito menos um mal radical, é apenas um efeito colateral que atinge uma vida que vive à espera do dia em que possa ser quem julga ser.

No auge do mal radical, no aperfeiçoamento da mentira que era a sua vida, Teodorico Raposo passa a viver realmente como aquele que ele detesta, como devoto. Vive como devoto como um actor encarna no palco o papel de Júlio César ou de Romeu, e no final da peça volta para casa sozinho consigo e com o seu tempo. Teodorico vivia o papel de outro. Na ânsia de ficar com a fortuna da titi, Teodorico vivia como quem não era. Não no sentido de fingir perante a tia, mas no sentido em que os seus dias eram passados a fazer de actor, a encarnar o papel de devoto, que ele odiava.

Tal como Kant explica acerca do mal radical, diante de uma dualidade de disposições e motivações, Teodorico Raposo tem consciência das regras que deveria seguir ou obedecer, como seja a de ser verdadeiro para com aqueles que lhe são próximos, mas ao invés de seguir essas regras, não apenas se entrega à violação das mesmas, por motivações pessoais, egoístas, como ainda as inverte. Teodorico sabe bem o que deve fazer. Sabe tão bem que age assim perante a tia e os amigos dela. Melhor: finge que é assim que age. Mas na realidade, Teodorico está a violar aquilo que ele mesmo finge ser. Está a introduzir duplamente o mal no mundo. Duplamente, porque não apenas viola a regra à qual sabe que deveria obedecer, como ainda ilude os outros de que é o melhor seguidor da regra. Teodorico Raposo é um exemplo perfeito do mal radical tal como Kant nos apresenta no seu livro A Religião nos Limites da Simples Razão.

Continua na próxima semana.

5 Nov 2021

A Relíquia, de Eça de Queirós – parte 3 de 8

Segundo Kant há três classes de disposições originárias no humano para o bem: 1) a disposição para a animalidade, que origina a conservação de si mesmo; 2) a disposição para a humanidade, que origina o sentimento de igualdade e, concomitantemente, de obtenção de valorização de si por parte dos outros; 3) a disposição para a personalidade como ser racional, que origina precisamente a reverência à lei moral como lei da razão; é, no fundo, a disposição máxima para a reflexão acerca de si enquanto humano, e humano enquanto ser racional, a disposição que nos dá a consciência da nossa liberdade, a consciência de que somos responsáveis pelas nossas acções.

Reparem que estas disposições não são «naturezas», isto é, destinos, mas horizonte constitutivos do humano. Isto é, não há humano sem estes «constituintes» (palavra de Kant). E precisamente por isso, Kant refere ainda o que acontece quando nestas disposições o vício corrompe a natureza destas disposições. Na animalidade, quando o vício nos corrompe, entregamo-nos à luxúria, à gula e a uma selvagem ausência de lei, que segundo Kant é a não contemplação do outro no horizonte das nossas acções.

Não nos importamos se o outro sai prejudicado, desde que os nossos apetites sejam satisfeitos. Kant chama também a isto o amor de si, no sentido em que a pessoa pensa acima de tudo naquilo que será o seu bem-estar acima, não só do bem-estar dos outros, mas também no prejuízo dos mesmos. Na corrupção da disposição para a humanidade, entregamo-nos à inveja, à ingratidão e à alegria malvada. Com este último, Kant quer dizer «comprazimento no sofrimento alheio».

E do mesmo modo que há três classes de disposições para o bem, há três diferentes graus de propensão para o mal. Repare-se que Kant faz uma distinção entre disposição e propensão. A disposição é constituinte, a propensão é um estar-se predisposto a alguma coisa. Por exemplo, podemos ser predispostos ao alcoolismo, mas nunca chegarmos a beber ou até a controlar essa predisposição. Uma disposição é constituinte, por conseguinte sem possibilidade de não acontecer. O primeiro grau de propensão para o mal deve-se à pusilanimidade, ou, como lhe chama Kant «[…] a debilidade do coração humano na observância das máximas em geral […]» (35) Ou seja, apesar de vermos o caminho do bem, aquilo que deveríamos fazer, por fraqueza não o conseguimos fazer.

O segundo grau é a «impureza», isto é, como escreve Kant «[…] a inclinação para misturar móbiles imorais com os morais (ainda que tal acontecesse com boa intenção e sob as máximas do bem).» (35) Por fim, o terceiro grau de propensão para o mal, segundo Kant, «[…] é a inclinação para o perfilhamento de máximas más, i. e., a malignidade da natureza humana ou do coração humano.» (35) Trata-se no fundo daquilo a que Kant chama «perversidade do coração humano, porque inverte a ordem moral a respeito dos móbiles de um livre arbítrio e, embora assim possam ainda existir acções boas segundo a lei (legais), o modo de pensar é, no entanto, corrompido na sua raiz […].» (36)

Não nos causa qualquer dificuldade ver aqui Teodorico Raposo. Que ele seja um homem mau não nos causa quaisquer embaraços ao pensamento, mas como acusá-lo de «mal radical». O mal radical, segundo Kant, não se prende com a gravidade do acto em si, mas com a consciência dele ou, se preferirmos, com a sua premeditação e inversão do sentido moral. Escreve Kant, em A Religião dentro dos Limites da Simples Razão: «Este mal é radical, pois corrompe o fundamento de todas as máximas; […] deve, no entanto, ser possível prevalecer [sobre o mal], uma vez que ele se encontra no homem como ser dotado de acção livre.» (43) O que está aqui em causa, para Kant, é que, e passo a citar: «Nesta inversão dos motivos, graças à sua máxima, contra a ordem moral, as acções podem, apesar de tudo, ocorrer de modo tão conforme à lei como se tivessem promanado de princípios legítimos […]» (42) É aquilo que vimos hoje acontecer com os bancos, com as offshores, por exemplo. Quando fazemos o mal, conscientemente, mas o justificamos com a lei. É aquilo a que Kant também chama «radical perversidade do coração humano». (43)

E, continua o filósofo: «Esta desonestidade de lançar poeira nos próprios olhos, que nos impede a fundação de uma genuína intenção moral, estende-se então também exteriormente à falsidade e ao engano de outros, o que, se não houver de se chamar maldade, merece pelo menos apelidar-se de indignidade, e reside no mal radical da natureza humana […].» (44) Acerca deste mal radical da natureza humana falaremos em outra semana. Por ora, fixemo-nos naquilo a que Kant chama de mal radical pessoal, sempre ligado à premeditação e perversidade da lei continuadamente ou, se preferirmos, a sobreposição da interpretação da lei à máxima, que é aquilo que vemos em Teodorico Raposo nos primeiros dois capítulos do livro de Eça de Queirós, como iremos ver melhor ainda na sessão de hoje.

Para Kant, nós somos livres se formos racionais, isto é, conforme razão. E deixamos de ser livres se nos movermos segundo um objecto exterior, quer seja a aquisição de dinheiro quer seja aquilo a que ele chama felicidade própria.

Para Kant, se eu percebo o que está certo, mas não o faço, porque vai contra os meus interesses, contra os meus desejos ou os meus sentimentos, então não sou livre. Sou, pelo contrário, um escravo desses interesses. Escravo desses desejos e desses sentimentos é aquilo a que Kant chama «inclinações». Por exemplo, se sei que a ação X é errada, mas ainda assim a faço, empurrado por exemplo pelo medo, pela ganância ou pelo ciúme, não sou livre. Só sou livre quando faço aquilo que tenho a obrigação moral de fazer. Assim, não basta escolher para ser realmente livre, é preciso escolher bem. Só sou livre quando faço aquilo que tenho a obrigação moral de fazer. Porque seguir a razão é seguirmo-nos a nós próprios.

A liberdade é escolher segundo a razão e não segundo aquilo que são as nossas inclinações ou aquilo que julgamos trazer-nos bem-estar. No fundo, para Kant, o mal reside na vontade. É a vontade que nos impele a más decisões ou pode impelir-nos a más decisões, como também é muito claro em Teodorico Raposo. É a guerra entre razão e vontade. Ou se quisermos, a guerra entre liberdade e subordinação a algo exterior.

Porque a vontade tem sempre como móbil algo que não nos pertence. A vontade é dirigida para algo e por aquilo que está fora. E ficar deposto na vontade leva-nos a querer encontrar desculpas para as nossas decisões. E é assim que as más decisões encontram na interpretação um forte aliado

Kant mostra-nos que a interpretação como aliado do mal, ou das más decisões, já se encontra na Bíblia, em Moisés II e III, e escreve: «Toda a deferência atestada para com a lei moral sem, no entanto, lhe conceder na sua máxima a preponderância sobre todos os outros fundamentos de determinação do arbítrio, como o motivo impulsor por si suficiente, é fingida, e a propensão para tal é interna falsidade, i. e., uma propensão para mentir a si próprio na interpretação da lei moral em desta (III, 5); por isso, também a Bíblia (na sua parte cristã) chama, desde o começo, ao autor do mal (que em nós próprios habita) o mentiroso, e assim caracteriza o homem no tocante ao que nele parece ser o fundamento capital do mal.» (48)

No fundo, quando a interpretação da lei se sobrepõe à máxima estamos a entregar-nos à mentira. E este modo de ser é a expressão pessoal do mal radical. Uma vez mais, Teodorico Raposo por inteiro.

Continua na próxima semana

12 Out 2021