Patuá | Livro que reúne cartões de estudo do crioulo apresentado amanhã

Elisabela Larrea apresenta amanhã, no pavilhão polidesportivo do Tap Seac, o livro “Unchinho di Língu Maquista: Cartões de Estudo do Patuá”, uma edição financiada pelo Governo e apoiada pelo Instituto Internacional de Macau. Ao HM, a autora fala do projecto que começou a ser desenvolvido em 2016

 

É apresentado amanhã o novo livro da macaense Elisabela Larrea, a partir das 14h30 no pavilhão polidesportivo do Tap Seac, por ocasião da Feira do Livro da Primavera. Editado pelo Instituto Internacional de Macau (IIM) e com o patrocínio do Fundo de Desenvolvimento da Cultura (FDC), o livro reúne os cartões de estudo de patuá, o crioulo macaense, sendo ainda traduzido para chinês, português e inglês.

O projecto de desenvolver cartões de estudo com palavras em patuá começou a traçar-se em 2016, mas a sua compilação em livro visa “proporcionar uma forma de aprendizagem do crioulo de base portuguesa de Macau, através de ilustrações simples”. A edição proporciona ao utilizador o acesso a redes sociais com códigos QR para fomentar a aprendizagem do patuá nos meios audiovisuais, “facilitando ainda mais a aprendizagem de uma língua que se encontra actualmente em perigo de extinção, conforme a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO)”, aponta o IIM.

Na mesma nota, o IIM recorda que “a comunidade macaense tem procurado salvaguardar com trabalhos de documentação de estudo, em publicações e na promoção e no ensino e na música, sem esquecer o teatro em patuá do grupo dos Dóci Papiaçám di Macau, reconhecido pela RAEM e pela República Popular da China como património intangível”.

Ao HM, Elisabela Larrea recorda que iniciou este trabalho graças à pesquisa que desenvolveu para o seu doutoramento, na Universidade de Macau, relacionado, precisamente, com o patuá. “Apercebi-me de que as publicações ou explicações [do crioulo] estavam maioritariamente em português e inglês, pelo que surgiu a ideia de incluir o chinês para promover a cultura macaense e o patuá junto de diferentes comunidades culturais.”

A autora refere ainda ter “muitos amigos chineses interessados em saber mais” sobre o patuá, sentido muitas dificuldades em encontrar materiais ou livros sobre o assunto, tal como macaenses na diáspora, ou não macaenses, que têm interesse na linguagem muito específica de Macau.

A elaboração dos cartões de estudo transformou-se rapidamente numa “paixão”, sobretudo depois de Elisabela Larrea receber “muitas mensagens encorajadoras e interessantes enviadas de todo o mundo”.

Aumentar o conhecimento

Além dos cartões que explicam o significado das palavras em patuá, o livro conta também um pouco da história da própria comunidade macaense, a fim de “aumentar o interesse das pessoas para saberem mais” sobre o grupo étnico. “Encaro este livro como um atractivo para despertar o interesse e o desejo de diferentes comunidades culturais em saber mais sobre a cultura macaense, bem como sobre esta língua que nasceu em Macau”, frisou.

Elisabela Larrea é doutorada em comunicação e investigadora da cultura macaense, tendo desenvolvido grande interesse pela história e pelas culturas de Macau. Desde 2004 que se dedica ao trabalho de preservação e promoção da cultura macaense através da arte, documentários, filmes, palestras públicas e investigação académica.

É preciso mais

Questionada sobre se fazem falta mais materiais de estudo em patuá, Elisabela Larrea diz ser uma “defensora absoluta da diversidade no que diz respeito à preservação e promoção do patuá”.

“Os cartões de estudo foram criados para serem uma forma de ajudar nesta busca [de novos materiais], mas muitos outros também estão a fazer essa busca. Aprender uma língua em vias de extinção tem desafios e dificuldades, sendo necessário mergulhar na língua e comunidade durante tempo suficiente para compreender, de facto, a essência e contexto cultural, a fim de garantir que aquilo que é partilhado corresponde ao que existe na comunidade.”

Elisabela Larrea mergulhou nas obras do poeta Adé, de nome José dos Santos Ferreira, “que criou uma espécie de consistência no sistema de escrita do patuá”. A autora pesquisou também o livro com vocabulário do patuá intitulado “Maquista Chapado”, bem como as peças de teatro do grupo Doci Papiaçam di Macau, escritas por Miguel de Senna Fernandes.

A autora espera que “cada vez mais pessoas possam publicar obras em patuá, para que as novas gerações tenham mais meios de aprendizagem”, revelando ainda estar optimista quanto ao futuro do crioulo. “Estou muito optimista em relação à atenção dada ao patuá, especialmente nestes últimos anos. Conheço um grupo de jovens, macaenses e não macaenses, que são apaixonados pelo patuá. São solidários e curiosos sobre a língua e anseiam por fazer a sua parte para a sua preservação e promoção. Alguns são chineses, malaios, japoneses, singapurenses ou brasileiros, aprendem o patuá e tentam usá-lo através das redes sociais.”

Além disso, destaca a autora, “o número de espectadores do teatro em patuá continua a aumentar, o que reflecte o interesse das pessoas por esta cultura”.

19 Abr 2024

Teatro em patuá recebe distinção como património cultural da China

O teatro em patuá recebeu oficialmente na sexta-feira a distinção como património cultural imaterial da China, dois anos depois do anúncio.
O encenador do grupo teatral Dóci Papiaçam di Macau, Miguel de Senna Fernandes, disse à Lusa que o atraso se deveu às dificuldades acrescidas de viajar para a China continental durante a pandemia.
A entrega da placa aconteceu durante uma cerimónia de inauguração de uma exposição de património cultural da província de Hainan. “Podia ter sido com um bocadinho mais de distinção”, lamentou Senna Fernandes. “Fomos um bocado enxertados [na cerimónia] e depois vão ouvir bocas, mas já estão habituados”, disse com um sorriso o macaense, referindo-se às comédias levadas a cena pelo Dóci Papiaçam, que ridicularizam e criticam os problemas sociais de Macau.
Senna Fernandes destacou que, para além do valor simbólico e do reconhecimento do trabalho local, a inclusão na lista de património cultural imaterial da China é importante ao nível da preservação e protecção do teatro e do próprio patuá.

Sem casa
Considerado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) como “gravemente ameaçado”, o nível antes da extinção, o patuá, criado por imigrantes lusos em Macau ao longo dos últimos 400 anos, foi desaparecendo devido à obrigatoriedade de aprendizagem do português nas escolas, imposta pela administração portuguesa. “Tem que haver uma maneira diferente de ver o teatro”, defendeu Senna Fernandes, sublinhando que assegurar uma sede para o grupo Dóci Papiaçam di Macau é uma das prioridades.
“É preciso reconhecer a necessidade de ter um lugar para colocar as coisas. Temos o guarda-roupa todo espalhado pela casa das pessoas. É ridículo ainda estarmos assim 30 anos depois. Não cabe na cabeça de ninguém”, disse o encenador.
O Dóci Papiaçám di Macau, “único teatro activo” neste crioulo, nasceu a 30 de Outubro de 1993, ano da morte do poeta macaense José dos Santos Ferreira (Adé) e por ocasião da visita do então Presidente português Mário Soares a Macau e da reabertura, após obras de recuperação, do D. Pedro V, primeiro teatro de estilo ocidental na China.

3 Jul 2023

Teatro em patuá – Rompendo o tempo e o espaço da língua

Por 林江泉 Lam Kongchuen*

Na área da Grande Baía, existe uma língua única que transcende as barreiras linguísticas, rompe as fronteiras culturais e cria ligações multilingues. As pessoas recombinam-se e exploram novas vidas neste interface especial de “duas palavras e três línguas” ou mesmo de composição multilingue, e continuam a enfrentar as incógnitas linguísticas com uma atitude aberta em relação às diferentes línguas. Só existe uma região com uma tão misturada língua: o Patuá em Macau.

O Patuá é um património cultural formado em Macau durante a colisão e turbulência das culturas chinesa e ocidental, derivado principalmente do antigo dialecto português de Macau. Tem por base o português, misturado com os dialectos chinês e cantonense, bem como com malaio, espanhol, goês, canarim, inglês. Emite uma força colectiva de linguagem, e as fronteiras da comunicação parecem já não estar definidas e limitadas por um tempo e um espaço específicos, tornando-se uma mistura e um receptor de linguagem, tornando-se assim uma testemunha do desenvolvimento da história humana – a “história viva”. Um poeta francês disse um dia: “O pequeno tamanho de Paris é o seu grande tamanho”. A língua nativa é uma língua pequena na língua local, mas também exala uma grande tensão, reflectindo as características urbanas do intercâmbio cultural e do multiculturalismo entre o Leste e o Oeste em Macau.

O guião mais antigo publicado pelo Teatro em patuá indica como data de representação o dia 18 de Fevereiro de 1925, e a estudiosa macaense da cultura local, Elisabela Larrea, estima a sua história em mais de cem anos. Há trinta anos atrás, esta linguagem mista foi levada para o palco, desenvolvendo uma forma única de actuação em Macau – o Teatro em patuá. O Teatro em patuá é uma actividade artística única da comunidade Filhos da terra em Macau. Em 2021, foi incluído na “Lista de Projectos Representativos do Património Cultural Imaterial Nacional”. Actualmente, o Teatro em patuá tornou-se um projecto incluído no Festival de Artes de Macau. Na cerimónia de encerramento do 33.º Festival de Arte de Macau, o grupo aDóci Papiaçam apresentou uma peça original – “Chachau Alau di Carnival (Oh! Que Arraial!)”. A peça é uma expressão concentrada de “patuá” e também um sistema metafórico da língua, que altera as suas fronteiras, bem como as do tempo, do espaço e da vida. No mundo dramático em que o discurso substitui o enredo, o Teatro em patuá ocupa uma posição importante, alterando a psicologia e os hábitos de visionamento estabelecidos pelo público. O desenvolvimento do Teatro em patuá passou por uma fase construtiva de regressão dialéctica, integrando sentimentos individuais locais e reflexão cultural no drama, alargando continuamente as características artísticas únicas do drama misto.

Na sessão de “Chachau Alaau di Carnaval (Oh. Que Arraial!)”, os Filhos da terra representavam a maioria, muitos dos quais vieram com a família para assistir. Assisti a esta peça de duas horas e meia com a minha filha, de 6 anos, e já eram 23 horas. Antes de vir assistir à peça, a minha filha atinha participado no encontro desportivo de crianças nessa manhã. De um modo geral, a sua força física deveria ter-se esgotado excessivamente, mas não se sentiu nada cansada durante o processo de visionamento da peça; pelo contrário, ficou ainda mais excitada. Embora não consiga entender Patuá, compreende outras línguas, como o mandarim, o cantonês e o inglês. Ela assistiu de forma consciente e perceptiva e partilhou o riso e a resposta com o público. A arte dramática não é igual à narrativa: abrir a percepção é uma parte importante do visionamento de uma peça de teatro. A minha filha também falava cantonês antes de ir para o jardim-de-infância, mas depois da escola passou a falar sobretudo mandarim, o que afectou o seu hábito de falar cantonês. Desde que viu uma pequena parte de cantonês em “Chachau Alaau di Carnaval (Oh. Que Arraial!)”, voltou a despertar o seu interesse em falar cantonês. No segundo dia de visionamento da peça, ela começou a tagarelar incessantemente, imitando o “Bom dia” em Patuá para dar as boas-vindas à manhã, e até tentou comunicar connosco em cantonês durante um dia. Isto significa que a hipotética cena de representação do drama remove tudo o que não está relacionado com o drama e regressa à sua essência – a colecção da mente e da percepção.

Sendo a única dramatização da integração da comunidade dos Filhos da terra, o Teatro em Patuá torna “único” o programa do Festival de Artes de Macau,. O “Chachau Alau” em “Chachau Alau di Carnaval (Oh. Que Arraial! )”, realizado pelo Grupo de Teatro Dóci Papiaçám di Macau, dirigido por Miguel de Senna Fernandes, é um termo geral para utensílios de cozinha em cantonense, que é equivalente ao significado de “tachos e panelas” em mandarim. Aqui, é “preparação” e também preparação; é um carnaval e uma metáfora viva para “carnaval”.

A peça conta a seguinte história: com o relaxamento gradual das múltiplas medidas de prevenção de epidemias em Macau, o número de turistas que chegam continua a crescer. Um determinado bairro foi seleccionado como piloto para as actividades carnavalescas e uma série de espectáculos culturais e artísticos abrangentes serão realizados para participar no espectáculo do carnaval de Macau, acrescentando vitalidade à pequena cidade. Depois de a notícia deste plano se ter espalhado, houve muitos elogios por parte do público, e os residentes da comunidade esfregaram as mãos, esforçaram-se por conceber as actuações mais emocionantes e ensaiaram em conjunto. No entanto, para atrair mais espectadores com a participação do público, o organizador convidou inesperadamente um artista não local para actuar, o que surpreendeu os residentes da zona…

As duas cenas da peça também misturaram vários tipos de curtas-metragens de comédia e muitos dos espectadores também foram actores na parte da peça dedicada às curtas-metragens. Esta abordagem teatral desconstrutiva e disruptiva demonstra plenamente a natureza exploratória dos teatros multimédia. A peça produz um efeito composto de “drama e drama em sincronia”, utilizando o drama para desconstruir o drama. O drama já não é um drama absoluto, mas um drama que sempre foi um fenómeno de desenvolvimento social ou uma trajectória da vida quotidiana. O segmento de curta-metragem da peça inclui o segmento de performance “serious standup comedy”, de Carlos Morais José, “Eu e o Outro”, que discute principalmente a relação emaranhada entre Eu e o Outro num sentido filosófico. Brinquei com o facto de ter mantido sempre esta relação com as suas cartas. O mestre de teatro Peter Brook escreveu em “The Open Door” que o drama começa com uma relação: “O drama começa quando duas pessoas se encontram e se uma pessoa se levanta e a outra olha para ela, já começou. Para que se desenvolva, é necessário que uma terceira pessoa se encontre com a primeira. Desta forma, está vivo e pode continuar a desenvolver-se. Mas os três elementos no início são os mais básicos”.

Este ano coincide com o 30º aniversário da fundação do Grupo de Teatro Dóci Papiaçám di Macau. O drama Chachau Alau di Carnaval foi apresentado no encerramento do festival. O festival abriu especialmente com a “Exposição de fotografias do Grupo de Teatro Dóci Papiaçám di Macau: Multiculturalismo em Palco há 30 Anos”, convidando o público a entrar no interior deste património cultural imaterial nacional a partir de múltiplas perspectivas. De facto, a exposição pode também ser encarada como um drama estático, prefigurando uma forma de “descobrir o teatro”. Pode dizer-se que a “peça na peça” ou “curtas-metragens na peça” de “Chachau Dalau di Carnaval” e a exposição de imagens do grupo de teatro estão de acordo com os três elementos do drama de Peter Brook.

O Teatro em Patuá tem as características do estilo ocidental de “revista”, sobreposto à forma de actuação da Opereta. Esta peça humorística é fundamentada, popular e acessível, e a história é simples. Através dos diálogos e acções cómicas, zangadas e engraçadas dos actores, faz piadas e sátiras sob a forma de comédia ou farsa, critica a situação actual, combina ironia subtil com humor e exprime a situação dos seres humanos na sociedade contemporânea sob a forma de farsa, apresenta o verdadeiro estado da existência humana numa atmosfera de comédia compressiva. Os temas do Teatro em Patuá são na sua maioria retirados de Macau, e giram em torno de pequenas coisas da vida para desencadear o pensamento, reflectindo os pensamentos e pontos de vista dos macaenses, mostrando as características culturais da sua natureza optimista, um Macau profundamente amado e procurado por muitos macaenses e chineses locais. Quer em termos de enredo global, quer em termos de pontos individuais do enredo, “Chachau Alaau di Carnaval” procura sempre um equilíbrio entre a linguagem e a narrativa: a preposição da linguagem e o recuo da narrativa conseguem esse equilíbrio. Os criadores traduziram e codificaram o protótipo de Patuá, tentando restaurar a aparência original da vida, e tudo voltou ao teatro.

O seu cenário é quotidiano, próximo do ambiente diário da vida real de Macau, e o sistema de beleza da dança tende a concentrar-se no requinte, explorando o significado potencial da localidade e a simbolização da Área da Grande Baía. Ao mesmo tempo, os actores fazem um estilo carnavalesco de “reunir e falar” com o público, tornando-o parte integrante do desenvolvimento do enredo, eliminando assim a distância entre os actores e o público. Através da representação desta peça, o Teatro em Patuá ganhou uma nova alcunha: “Drama de estilo carnavalesco”. A integração de alguns elementos humorísticos omnipresentes na vida quotidiana para retratar de forma mais realista a vida de uma comunidade minoritária não só exprime o alcance da língua no desenvolvimento social e histórico, como também aumenta o poder multidimensional da peça.

Actualmente, pelo menos 43 por cento das cerca de 6000 línguas existentes no mundo estão em vias de extinção. As pessoas esforçam-se por procurar novas tecnologias e métodos artísticos para as salvar. Actualmente, apenas alguns residentes de Macau ainda usam o patuá, que está listado como “língua em vias de extinção” pela UNESCO. E o Teatro em patuá de Macau está a despertar a atenção da sociedade para a cultura dos Filhos da terra e a sua influência no mundo teatral sob a forma de arte. Humboldt, um linguista e educador alemão, disse que: “Cada língua contém uma visão única do mundo”. Quando uma língua desaparece, os seres humanos perdem uma visão do mundo e a riqueza dessa sua visão. A diversidade do mundo foi afectada pela homogeneização e o Teatro em patuá manteve sempre a sua singularidade, tornando-se uma linguagem e um mecanismo artístico que explora constantemente a riqueza dentro das suas limitações.

Em “Chachau Alau di Carnaval” há uma frase que aparece constantemente: “Macau está empenhado em construir uma base de intercâmbio e cooperação com a cultura chinesa como a corrente principal e diversas culturas coexistindo.” Da herança crítica à prosperidade cultural inovadora, tem ajudado o desenvolvimento económico moderadamente diversificado de Macau, tornando-se um novo cartão de visita para Macau se tornar global. O Teatro em patuá parte de Macau, passa por São Francisco, São Paulo, Porto, Lisboa e outras cidades, e tem vindo a desempenhar o papel de movimento em direcção a diferentes continentes. Brook escreveu em “Time Line”: “Não é um drama, é uma viagem”. Miguel de Senna Fernandes, fundador e líder do Grupo de Teatro Dóci Papiaçám di Macau, é um dos Filhos da terra. Há mais de 270 anos, os seus antepassados criaram raízes em Macau, viajando de longe. Ele acredita que, no futuro, poderá transformar as peças em dialecto local numa plataforma cultural e tornar-se numa ponte para o intercâmbio cultural entre a China e Portugal. Miguel abordou a essência do drama – viajar é comunicar e a história da comunicação humana e das viagens é composta por uma série de dramas.

*Artista contemporâneo, director de teatro e cinema, escritor e poeta

13 Jun 2023

Obituário | Alfredo Ritchie deixa saudades entre a comunidade macaense

Alfredo Maria Sales Ritchie faleceu ontem após dura luta contra doença prolongada, deixando enlutada a comunidade macaense e família e amigos com quem partilhou a cultura local e a pronúncia do patuá

 

[dropcap]P[/dropcap]artiu o nosso Fredo” foi a frase com que a comunidade portuguesa local acordou ontem de manhã. A página de Facebook do grupo de teatro macaense Dóci Papiaçám di Macau estava de luto, num texto publicado por Miguel de Senna Fernandes sobre o amigo e colega de palco.

“Durante anos lutou com coragem contra a doença que o flagelou, mas agora foi de vez. Ficou o espírito de um lutador, dos mais duros que tive o privilégio de conhecer”, escreveu. Sobre os anos em que participou na cena teatral local, lê-se na mesma publicação que foi o “actor que mais tempo nos honrou com a sua energia, humor, persistência, sentido de dever e acima de tudo, amizade por todos os membros do grupo, com especial realce para todos os novos”.

Alfredo Maria Sales Ritchie nasceu em 1946 no seio de uma tradicional família macaense, conhecedora da cultura local e da linguagem crioula do território. “Ele era um cultor do patuá, que também falava como língua de casa, além do português, claro. Mas a mãe, Dona Ester, que ainda é viva, fala bem patuá e esta língua era usada na família”, contou ontem Miguel Senna Fernandes ao HM, entre as muitas facetas que lembrou do velho amigo.

Actor e ensaísta

“A sua vida não se limitava à profissão de médico, era uma pessoa com interesses muito variados. Era uma pessoa de cultura e de muita diversão. Foi desportista quando era jovem, praticava hóquei, e participou sempre em inúmeras actividades. Era amante do jogos de bridge e de póquer, coleccionador de carros de miniatura. Foi membro destacado do primeiro Rotary Club de Macau, do qual chegou a ser presidente. Era uma pessoa multifacetada”, destacou.

Mas acima de tudo, Alfredo Ritchie “era um homem culto que gostava muito de ler”, recordou Senna Fernandes, para quem a falta do amigo será sentida de uma forma muito pessoal. “Nós conversávamos bastante, eu privava muito com ele e com a Anabela [Ritchie], e tínhamos conversas mais profundas, que não eram só de teatro. Discutíamos sobre muitas coisas e durante muito tempo. É com muita pena que o perdemos”.

O grupo de teatro também aprendeu a contar com a sua companhia, os ensinamentos, o saber que imprimia nos textos, récitas e monólogos que escrevia para as peças. Entrou no primeiro espectáculo dos Dóçi Papiaçám em 2001, por convite de Miguel Senna Fernandes. “Enderecei o convite para representar um papel, e ele aceitou logo. A peça era a “Siára Zinha” – em patuá siára é mulher já casada, portanto é mulherzinha – e, desde que entrou, nunca mais saiu do grupo. Representou muita coisa, era uma pessoa bastante versátil em palco, fazia desde o herói até ao malvado”.

“Ele tinha uma graça muito natural, era muito divertido. Dizia-me ‘apesar da minha cara de carrancudo, eu faço-te rir!’ e fazia gala disso”, acrescentou. “Portanto, acho que esta perda nos atinge a todos. Pela expressão do que tem sido escrito aqui nas redes sociais, podemos ver o quão querido ele era para todos. E como foi marcante para o grupo e para a comunidade”.

Médico e político

Alfredo Ritchie formou-se em Medicina Geral em Portugal e acabaria por regressar ao território para exercer a profissão, ainda antes do 25 de Abril de 1974, como alferes médico miliciano.

Começou por se fixar na Taipa, onde esteve enquanto clínico destacado para as Ilhas. Mais tarde tiraria no estrangeiro uma especialização em Endoscopia Alta, uma novidade técnica na década de 70, em que foi pioneiro no território e a que se dedicou ao longo da profissão. Depois veio a exercer medicina no Hospital Conde de São Januário e abriu consultório próprio.

Entre as pessoas há mais anos radicadas em Macau, talvez sejam poucos os que não passaram pelo seu antigo consultório, ali na Rua de Pedro Nolasco da Silva. “Trouxe uma grande mais-valia, em termos de saúde, e durante anos até à sua reforma exerceu sempre nessa área”, explicou o médico e colega macaense Fernando Gomes.

“Conheci o Dr. Ritchie sob vários aspectos, mas mais próximo como colega. Eu tinha acabado de regressar em 1991 e ele já trabalhava no hospital. Antes disso, naturalmente conhecia-o e sabia quem era, porque a sua mulher, a Dra. Anabela, foi minha professora de inglês”. Cruzou-se com ele várias vezes, “era uma pessoa afável, dialogante e também apoiava os colegas mais novos”, e voltou a ter a oportunidade de participar com ele numa iniciativa cívica em 1992, “quando fizemos parte da reconstituição de uma lista, encabeçada pelo Miguel Senna Fernandes, para as eleições em Macau. Tinha acabado de falecer o Dr. Carlos Assunção”.

“Nessa altura trabalhámos noite fora na elaboração do programa, na estratégia eleitoral e na campanha. E acabei por conhecer melhor o Dr. Ritchie, nesta faceta que pouca gente conhece, de uma pessoa que colaborou na evolução e no envolvimento político da comunidade macaense, sempre na retaguarda como estratega, porque era muito amigo do Dr. Carlos Assunção, desde a década de 70 e 80. Acompanhou as campanhas eleitorais da ADIM (Associação para a Defesa dos Interesses de Macau), que era a lista do Dr. Assunção, e depois até acabou por ser a Dra. Anabela Ritchie a encabeçar essa lista”, recorda bem Fernando Gomes.

Por tudo isso, “é uma notícia muito triste, perdemos uma pessoa que se diferenciou como uma identidade querida da cultura macaense”, lamentou o colega.

Doce língua

Não foi só a página de Facebook dos Dóçi Papiaçám di Macau que se encheu de frases de condolência e amizade durante todo o dia de ontem. Também a Unchinho di Língu Maquista foi recebendo testemunhos e pêsames ao longo do dia, em resposta à publicação sobre o “mentor de muitos macaense mais jovens que se juntaram ao grupo, passando a essência da pronúncia da lingu maquista para a próxima geração”.

“Ele sabia quando se divertir e quando ficar sério” e “foi a atmosfera central entre o grupo”, já que “era mais como um ancião generoso levando as crianças para o caminho certo”, pode ler-se no mesmo texto em sua memória.

28 Ago 2019