Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasMenina de tese [dropcap]M[/dropcap]arcia Becker publicou um romance em 2007 chamado «Menina de Tese», que traça um retrato simultaneamente irónico e real sobre a sociedade brasileira. Nascida na capital de São Paulo em 1977, Becker estudou filosofia na Universidade Presbiteriana Mackenzie, no Campus Higienópolis, onde também fez o doutorado em Letras. «Menina de Tese» não foi o seu primeiro romance, mas foi aquele que a colocou no mapa das letras paulistas. O romance é relatado na primeira pessoa, Carol, uma paulista de 27 anos, que vivia com a avó num apartamento na Consolação, junto à Avenida Paulista, e ganhava a vida escrevendo teses de final de curso e de mestrado para quem não tem tempo ou competência para as escrever. O seu anúncio aparecia em várias faculdades e também nas redes sociais como alguém que podia ajudar a «organizar» ou a «dactilografar» a tese se alguém precisasse de uma mãozinha. Na primeira parte do romance, vemos uma Carol cheia de vida, alheada do mundo à sua volta, vivendo para «as suas teses» e para as idas nos barzinhos à noite na Rua Augusta, com amigos e amigas. Cultivava uma espécie de vida alternativa, como muitos dos jovens que vivem nessas baladas. Mas Carol gostava mesmo de escreve as teses. As que mais gostava de fazer era teses de literatura comparada. No fundo, como ela mesmo dizia para si mesma, pois para as amigas e amigos dizia que corrigia textos e dava explicações, era que escrevia continuamente livros que nunca seriam publicados. Era essa a sua profissão. Dos vários emails trocados entre Carol e os seus clientes que o autor nos dá a ler no livro, há um com uma aluna de uma cidade do interior do estado do Paraná, do Curso Superior de Pedagogia, que a tornaria habilitada para ensinar até ao 5º ano do Ensino Fundamental, que não só impressiona como muda a narrativa. Essa aluna envia a tese final já escrita, e pede-lhe que faça a bibliografia. Perante o espanto de Carol, que retorna o email expondo a sua incompreensão, pois o trabalho já está feito, a aluna escreve: «[…] eu não preciso do texto escrito, mas que leia o meu texto e depois faça a bibliografia, que escreva o nome de alguns livros que podem ter a ver com ele. Veja bem, eu trabalho e não tenho tempo de ler livros, o meu texto baseia-se nas aulas e nos manuais e não consigo identificar os livros que deveria ter lido para ter escrito o texto. […]» Depois de mais alguns emails para lá e para cá, a situação absurda era esta: a moça tinha feito um trabalho final sem ler nenhum livro, e precisava de uma lista de livros na bibliografia. Carol teria de ler as suas trinta e poucas páginas e pensar em ou identificar alguns autores e livros que poderiam estar na base do que a moça escrevera. Aquilo que mais causa transtorno não é o facto de a moça não ter lido livros e querer ser professora, mas num outro email responder que muitas pessoas pedem esse tipo de ajuda, que é normal, expondo uma situação triste e absurda que se passa no país. Triste porque, se quem quer ser professor não lê livros, imagine-se a maioria das outras pessoas. Absurdo porque não se entende como é que quem não lê pode estimular alguém a ler. Carol recusa-se a fazer esse trabalho e recebe um email de volta a fazer chantagem: ou faz o trabalho ou é denunciada à polícia, pelo tipo de trabalho que está fazendo. Depois desse email, Carol passa um dia transtornada, pensado no que fazer. Chega à conclusão de que, independentemente de a moça poder ou não fazer cumprir a ameaça, não valia a pena correr o risco. Faria o trabalho, do modo que conseguisse, e ainda receberia em troca e o problema acabava ali. Assim fez, assim recebeu e assim tudo acabou. E o seu negócio continuou como sempre. Mas depois do que lhe aconteceu, em vez de respirar de alívio e continuar a sua vida, Carol não consegue esquecer o assunto e passa a investigar a situação, obsessivamente, descobrindo um Brasil que desconhecia, o do interior. E o Brasil tem muito interior, a despeito de uma longa costa. E mesmo esta, muitas vezes, também tem características de interior. A consciência de tudo isto, deste mundo que desconhecia por completo, leva Carol a investigar cada vez mais acerca do mesmo. Chega a fazer viagens para o interior de São Paulo, para o interior de Minas Gerais, de Pernambuco, do Paraná, seguindo os trilhos deste fenómeno que conheceu através do insólito trabalho que fez sob chantagem. Aquilo que começou com uma chantagem, o que poderia ser um terrível transtorno, acabou por lhe mudar a vida. Estamos a mais de meio do livro. Até aqui, os pensamentos e a vida de Carol era a de quem vivia numa redoma alternativa. Sempre votou PT, não tinha dúvidas de que só a esquerda poderia conduzir o Brasil a futuro melhor, mas independentemente de estar certa ou errada – Becker nunca nos dá essa informação, não toma posição partidária – era uma consciência sem base real, sem base na realidade do país. A partir de agora, daquela encomenda absurda, começou a revolver o país e a sua consciência e depois da sua viagem do Paraná, decide entrar na política, decide que tem de ter uma posição mais activa, tem de ajudar a mudar o país. No momento em que Carol pretende entrar para o PT dá-se o escândalo do «mensalão», que estoura no início de Junho de 2005, quando o deputado Roberto Jefferson diz na Folha de São Paulo que o PT pagou a vários deputados trinta mil reais por mês para votar a legislação que queriam na Câmara dos Deputados. Mas não era só o PT que saia mal na fotografia. Havia deputados de mais dez partidos envolvidos, entre eles o PSDB e o PMDB. O escândalo, que com o tempo parece não ter mudado muito ou nada no Brasil, mudou muito em Carol. Entristeceu, deprimiu, deixou de sair e de investigar, desistiu da política. Passados meses, voltou ao seu trabalho de escrever teses, continuou a acreditar no PT, num projecto de esquerda para o país, mas nunca mais conseguiu ter vontade de ingressar na política. O livro fascina também pelo modo como nos mostra a vida nocturna de São Paulo, a esperança que todos aqueles jovens tinham no Brasil. E mesmo depois de um escândalo continuaram a ter, e a ver o país crescer. A frase final do livro, hoje, impressiona muito: «[Depois de uma noite na Rua Augusta com amigos] Carol regressava a casa cansada mas feliz. Consciente de que o país não precisaria dela para construir o seu futuro.”
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA paródia religiosa [dropcap]A[/dropcap]inda que tenha deixado o seu último romance inacabado, Angel Jesus Tornado pintou uma das maiores reflexões acerca de São Paulo no seu “Ninguém em Damasco”. Foi sempre visível ao longo da sua obra a obsessão pelas figuras marcantes da história e por um tom reflexivo na sua escrita. Apenas como exemplo, lembremos estes três livros: “Um Homem É Uma Ilha”, centrada na figura de Napoleão; “Existência”, cuja narrativa percorre o ano em que Kierkegaard rompe o seu noivado com Regine Olsen; e “Queimar o Mundo”, onde Jesus Tornado explora as tentações de ódio que assaltam o humano na sua relação com o mundo através da figura de Nero. Mas em “Ninguém em Damasco”, Jesus Tornado transfigura-se e transfigura a sua própria ideia de prosa. Talvez a proximidade da morte seja a responsável pelo tom mais metafísico do livro ou, então, seja o próprio tema, a conversão, que assim o exija. Pois toda a conversão é metafísica. “Ninguém se torna outro sem um pé no além”, escreve Juan Mantero, historiador que é o narrador do livro. O salto para o desconhecido implica necessariamente fé, seja ela religiosa ou de outra dimensão. Em “Existência”, Jesus Tornado já havia tocado na questão do salto, imagem tão querida a Kierkegaard, mas o tom do livro mantinha-se junto às sebes, rente ao muro, sem pé no além. No decorrer do romance, Mantero descobre uma pequena passagem de São Paulo, apócrifa, que talvez nos coloque na pista certa: “A morte não é ninguém; quem um dia foi não pode deixar de ser. Morrer é apenas deixar o corpo, pois a morte não passa de tudo o que nunca foi.” Esta descrição de poder morrer e nunca atingir a morte, deixa profundas marcas no narrador do livro, ao ponto de se converter ao cristianismo. Até aí, o seu interesse por São Paulo e pela religião era estritamente “científico”. Mas no romance ficamos a saber que, mais do que o teor da passagem, a responsabilidade da conversão de Mantero se deve à sorte de ter encontrado esses pergaminhos, a que ele chama “Confissões de São Paulo”. Essa descoberta pareceu-lhe um sinal divino, como se São Paulo lhe falasse directamente, como se o tivesse escolhido. Através deste episódio de Mantero, Jesus Tornado tece longas reflexões acerca da necessidade de transformarmos coincidências em sinais, de conferir sentido ao que não tem. “O contrário da morte é Deus e morrer é encontrá-Lo.” Muitos têm visto em Juan Mantero um alter-ego de Angel Jesus Tornado, intuindo assim uma conversão tardia por parte do autor. Talvez fosse isso mesmo que ele pretendeu que nós disséssemos. Talvez tenha entrado na morte nos enganando, ou tentando nos enganar a todos, fazendo-nos confundi-lo com Juan Mantero. Mas não acredito que contrariamente a Saulo e Mantero que se convertem ao cristianismo, Tornado tenha convertido o seu coração ao além. Mais do que ler “Ninguém em Damasco” como se um romance autobiográfico se tratasse, devemos lê-lo como uma acusação, como uma paródia religiosa. Juan Mantero é já ele mesmo uma paródia de São Paulo, e os pergaminhos encontrados, “Confissões de São Paulo”, uma paródia das Epístolas. No fundo, talvez todo o livro seja, não apenas uma paródia à religião, mas uma paródia à humanidade, na sua contínua busca de pergaminhos, de textos antigos, de palavras que nos iluminem a vida. Mas ainda assim, seria sempre uma paródia à religião. Pois a procura de sentido para a vida nas palavras é um acto religioso por excelência. Angel Jesus Tornado deixa o seu livro inacabado com a seguinte frase, escrita por Mantero: “No aeroporto de Roma, percebi que a minha vida ganhava finalmente sentido. Só quem alcança este estádio percebe que nunca esteve realmente vivo.” Tornado depois morre, não Mantero. O tom metafísico da prosa deste seu último livro revela-se então, ele mesmo, uma paródia. O tom metafísico é a formalidade perfeita desta paródia. Sem esse tom, poderíamos ser levados a ver o livro como uma crítica, como uma reflexão séria e condenatória à religião. Assim, não. Angel Jesus Tornado entrou na morte a rir-se dela e de nós, fazendo-nos acreditar numa pseudo-conversão. Não procurou imortalizar a alma, mas imortalizou a sua gargalhada.
Hoje Macau China / ÁsiaChina vai investir 24,8 mil milhões de dólares no Estado brasileiro de São Paulo [dropcap]S[/dropcap]ão Paulo vai receber investimentos de empresas e instituições financeiras chinesas no valor de 24,8 mil milhões de dólares em 10 anos, disse ontem o governador deste estado brasileiro. Os acordos foram formalizados numa missão comercial que o governador de São Paulo, João Dória, fez, juntamente com uma comitiva de empresários brasileiros, à China no início de Agosto, quando este estado também inaugurou um escritório para captação de recursos e novas parcerias na cidade chinesa de Xangai. “Fechámos 24,8 mil milhões de dólares em compromissos de investimentos [da China] nos próximos 10 anos (…). Deste total, 10 mil milhões de dólares (8,9 mil milhões de euros) vem de um compromisso com o China Development Bank e outros 10 mil milhões de dólares com o banco dos Brics [banco de desenvolvimento criado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul]”, explicou Dória numa conferência de imprensa com jornalistas estrangeiros. “Outros 4,8 mil milhões de dólares (4,2 mil milhões de euros) são investimentos programados do sector privado que devem acontecer nos próximos cinco anos. Individualmente, o maior investimento será da Huawei, que investirá 800 mil milhões de dólares numa nova fábrica de tecnologia no interior do Estado de São Paulo”, acrescentou. Questionado sobre a guerra comercial travada entre os Estados Unidos e a China, João Dória disse acreditar que o Brasil manterá uma posição de neutralidade, embora o Presidente do país, Jair Bolsonaro, demonstre publicamente que tem um alinhamento maior com o Governo norte-americano. “Não me preocupa a política [de alinhamento de] Bolsonaro com [Donald] Trump, porque Bolsonaro deve visitar a China em Outubro próximo e se ele tivesse alguma resistência à China, certamente, não faria esta visita”, avaliou. “A meu ver, o melhor para o Brasil é aproveitar a boa oportunidade que a China oferece dadas as medidas restritivas que o Governo Trump impôs aos chineses. É muito claro que a China hoje é um país que procura novos parceiros comerciais no mundo e que a América Latina é prioridade. Na América Latina, a grande prioridade é o Brasil, o maior mercado”, acrescentou. João Dória, que muitos analistas políticos colocam como possível candidato às eleições presidenciais de 2022, governa desde 1 de Janeiro o Estado de São Paulo, o mais industrializado e populoso do Brasil, que é responsável por um terço da riqueza total gerada no país.