António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasAlmas tenras 23/03/2017 [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]iz Solzhenitsyn sobre um amigo, nos diálogos que teve com o cineasta Alexander Sokurov, em 1998: “Ele tem uma alma tenra, amável e pura”. O primeiro adjectivo faz-me imaginar que, na cadeia dos seres, as almas variam de consistência, desde as cremosas como leite-creme às duras como o aço. Já conheci almas de puro minério, tipos ruins e ufanos disso. Em África conheci o mal. Simples acaso, tive sorte na Europa e lá se camuflará mais o que aqui será exposto? É irrelevante, lidei aqui com o problema, desde situações de ostracismo a cenas de extrema crueldade que, tanto pessoal como profissionalmente, vivi ou presenciei. Ter resistido ao cinismo que quer infiltrar, espesso, a personalidade por causa do inusitado que nestas regiões se enfrenta foi claramente uma das provações da minha vida. Ora, o fabuloso destas conversas com o autor de o Arquipélago de Gulag é perceber que quando fala do amigo no fundo fala de si. Metem-no no Gulag durante anos (num dos dias trabalhou a -35 graus) e o homem toca harpa. Confiscam-lhe os seus cinco diários de guerra e o homem toca harpa. Interrogam-no, torturam-no, por mesquinhez e maldade, censuram-lhe os livros, o homem toca harpa. Obrigam-no a viver uma miséria vexatória. Consegue que os seus manuscritos saiam clandestinamente do país e uns anos depois ganha o Prémio Nobel. Nem lhe serve de nada ter-se abstido de ir a Estocolmo, o regime soviético expulsa-o em 1974. Passa a viver em Vermont, nos EUA. Em 1996 regressa à Rússia. E a criatura que no documentário se apresenta é a mansuetude em pessoa, sem um grama de ressentimento, sem poses, sereno, capaz de uma compaixão e de uma compreensão sobre os seus verdugos que desconcerta. Entretanto, os direitos da venda internacional de o Arquipélago de Gulag, aplica-os em auxiliar os que como ele viveram tal inferno. Pior, com convicção recusa, apesar da insistência de Sokurov, dar qualquer relevo à crueldade humana na textura das comunidades humanas e contrapõe: “se um homem cruel encontrar um homem bom perde terreno para se exercitar e acaba a sua natureza por atenuar-se!”. O que me faz lembrar como para Saramago era a bondade a primeira qualidade do humano. O chato com a grandeza, quando a encontramos, é que não possamos imitá-la. Leio, entretanto, que está a sair em Portugal uma nova tradução do Arquipélago de Gulag. 26/03/2017 Uma é loura, outra morena – as minhas filhas. A loura tem nove e a morena doze. A loura ensaia uma peça na viola-d’arco. A outra discute a lei da gravidade com a mãe. A loura interrompe um acorde e pergunta: – Não percebo nada, afinal os raios são atraídos ou caem na terra – como as maçãs das árvores? – Que raio de pergunta… – redargue a morena. – Se for por causa da gravidade caem, não têm escolha. Uma coisa atraída ainda tem escolha. – Não, olha os teus ímanes… são atraídos e não têm escolha. – Mas a Miranda da minha turma era atraída pelo Vitor e preferiu não o beijar, quando ele lhe pediu… Ela sentia-se atraída mas escolheu… – Que têm os raios a ver com as pessoas? – Pois, por isso acho esse Newton um chato, faz-nos querer ligar maçãs com raios e agora com pessoas… E sabes, para mim, que as maçãs caiam não vejo nisso nada de especial… o que me intriga é que elas adocem. Cala-se e volta a atacar o seu trecho na viola-d’arco. Até que o rosto se lhe ilumina e vota o baixar o arco. E atira sorridente: – Já sei para que pode servir a gravidade? – Diz lá, deve ser boa… – Foi a gravidade quem engravidou a Miazinha (a nossa gata)… E lança uma gargalhada. 27/03/2017 Umas das consequências mais erróneas que se segue ao abandono dos «mitos do progresso» é deduzir-se daí que nada é passível de evolução, pelo que não haveria culturas mais avançadas do que outras. É o pretexto para uma abjecta preguiça que degenera numa violência não declarada. Cansa ter de explicar o óbvio: ser um mero utilizador de gadgets e electrodomésticos é inferior a ter a capacitação técnica para os inventar e reproduzir; que uma cultura laica, no interior da qual cada qual pode escolher livremente a sua crença, é superior a uma cultura que de antemão sujeite o pensamento a uma forma única, condicionando-lhe os possíveis e as virtualidades; que a astronomia exige mais estudo e uma propensão para o pensamento abstracto mais complexos do que aqueles a que obrigam a astrologia, etc., etc. Em resultado do pensamento débil do relativismo vejo, junto dos meus alunos, que se galvanizou um retorno total à superstição e à feitiçaria – mergulham na “tradição”. Nenhum aluno em dramaturgia me apresenta o esboço de uma história urbana. Lembrava uma aluna num colóquio que teve lugar na universidade, na semana passada, como os temas se socorrem invariavelmente «do caminho fácil do exotismo», ou seja, encharcam-se em histórias de curandeiros. Está presente no quotidiano, é relatado sem crivo nos media. Em 2008 tive de explicar pacientemente a três turmas na universidade que era deveras improvável que uma mulher pudesse ter parido um bule e três chávenas, como foi noticiado em todas as televisões do país, e em 2011 o parlamento da vizinha Suazilândia aprovou uma lei que proibia as bruxas de voarem acima de cento e cinquenta metros de altitude para não chocarem com as aeronaves. Não melhorou desde então. Simultâneos ao assomo da superstição, crescem os sinais de riqueza material – o parque automóvel de Maputo abisma pela presença maciça de últimos modelos e de carros de luxo -, de aumento da pobreza – sou assediado diariamente por uma dúzia de pedintes – e da inflação – um pequeno frasco de molho de soja custa hoje uns inefáveis 10 dólares – enquanto, agora mesmo, se assiste a um surto de cólera em todo o país; o que demonstra que, pelo menos em termos preventivos, os curandeiros trabalham pouco.
Hoje Macau China / ÁsiaPequim e Moscovo querem investigação a uso de armas químicas no Iraque [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Rússia e a China propuseram que a comissão das Nações Unidas que investiga o uso de armas químicas na Síria alargue os trabalhos ao Iraque, uma proposta rejeitada imediatamente pelo Reino Unido. Os dois países sugeriram a possibilidade de alargar o âmbito do Mecanismo de Investigação Conjunta durante uma reunião sobre a batalha de Mossul, onde forças iraquianas combatem extremistas do Estado Islâmico. Os membros do Conselho de Segurança expressaram “preocupação unânime” com as últimas informações sobre o uso de armas químicas pelo Estado Islâmico, de acordo com o embaixador britânico Matthew Rycroft, que presidiu às negociações. A Rússia e a China apresentaram uma proposta de resolução que “pretende expandir o trabalho do Mecanismo de Investigação Conjunta ao Iraque”, disse Rycroft, acrescentando que o Reino Unido se opõe à medida. “O Reino Unido assinalou que há muitas diferenças entre a situação no Iraque e na Síria”, afirmou. Nada a esconder Ao contrário do Governo sírio, o Executivo iraquiano “está a cooperar totalmente com o OPCW”, indicou Rycroft, referindo-se à sigla inglesa da Organização intergovernamental para a Proibição de Armas Químicas, que trabalha com a ONU para implementar o Mecanismo de Investigação Conjunta. “Não há alegações” de que o Governo iraquiano use armas químicas, afirmou. O conselho não tomou qualquer decisão sobre a proposta na sexta-feira. Rycroft não indicou se a Rússia e a China vão submeter a sua resolução a votos no futuro. A disputa evidenciou uma discordância fundamental entre os países ocidentais e a Rússia sobre a Síria. O Mecanismo de Investigação Conjunta – que Moscovo ajudou a estabelecer como membro do Conselho de Segurança – concluiu que o Governo sírio, aliado da Rússia, usou armas químicas pelo menos três vezes. No entanto, em Fevereiro a Rússia e a China vetaram uma proposta de resolução para sancionar o Governo sírio devido ao uso de armas químicas.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasLou Andreas-Salomé [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão sei se a Rússia será convertível ou não ao culto mariânico, nem um tal aspecto parece de facto de grande importância, a grande Mãe Rússia poderá assim interessar a um devoto cidadão, sem dúvida, mas não a um outro qualquer do mundo que a olha nos seus flancos como uma imensa terra onde cabe tanta de vida, como de morte, até continentes, mas ela tem para além destes mitos, pessoas incríveis e uma delas é Lou Andreas-Salomé. Sempre nos debruçámos fascinados perante esta segunda fase do século dezanove porque ele nos transmite uma polidez e uma vanguarda que permanecem como fundo ideológico dentro dos nossos sonhos: tinham algo de inédito, brilhante, civilizador e único. Hoje olhamo-los e sabemos que nunca conseguimos fazer melhor: as nossas relações pessoais são mais árduas, os nossos preconceitos mais intrigantes, as nossas vidas bem mais ásperas. Eles, porém, eram extremamente modernos e não sabemos o porquê de tudo isto acontecer desta maneira. Claro, há o contexto social, histórico, cultural, sem dúvida, pois se desejarmos encontrar respostas elas não se esgotarão, mas estou mais inclinada a repousar a deriva desta visão no fascínio natural que me provocam do que analisar com as articuladas fórmulas de pensamento asséptico: eles eram excepcionais. Lou nasceu numa família de irmãos, todos homens. Adorada pelo pai, a vida encarregou-se de a levar até eles como uma criatura aglutinadora e inspirada, talvez esta confiança se deva à sua própria infância de eleita entre os homens, Talvez a sua natureza fosse capaz de exercer esse fascínio e, tanto assim foi, que nunca essa realidade a deixou: Lou foi a mulher mais moderna e mais progressista do seu tempo e nem por isso deixou de ser uma feminina mulher no seu imenso intelecto. Casou cedo, o marido é sempre referenciado nos seus escritos com carinho e uma grande cumplicidade, e que marido é este e que força emana esta mulher para numa organização de homens os manter de forma tão natural e com uma tal harmonia de grupo? Creio que havia uma noção profunda da sua autonomia intelectual e de que sem ela, eles seriam apenas homens comuns, maridos burgueses, amigos tediosos, e outras formas que os homens suspeitam, carregar como fardos, a inteligência deles foi afinal ter entendido uma tão surpreendente verdade, e, por isso, ninguém, nenhum deles, se lembrou – tenho a certeza – lhes passou mesmo pela cabeça, conduzi-la ou pressioná-la. Aliás, eles precisavam dela como o melhor dos interlocutores, sabiam que cresceriam como seres na enorme esfera de contacto com que tanto os rodeou e, tendo ultrapassado as pequenas intrigas de género que tanto paralisam os grupos, o marido era um ser ao serviço de uma causa e, se não participava nas grandes questões, proporcionava que elas existissem. Assim, podem nascer ideias e gente e avanços e vida e saber. Assim, os seres têm funções que não regateiam por ilusões sem mérito e é este o nível civilizacional que os faz tão especiais. Lou manteve sempre bem firmes os pilares de um núcleo abrangente onde foram forjadas algumas bases do pensamento moderno, como Freud, por exemplo, como Nietzsche que por razões pessoais se afastou do grupo (o que menos conseguiu lidar com o embate Lou) e a sua noção de unidade fê-la manter-se firme mesmo quando, por razões não previstas mas assumidas, se apaixonou por Rilke e foi bonito! Rilke era o mais jovem, o poeta, o mais frágil também, o que mais precisou dela até como uma mãe e ninguém se opôs à vivência profunda desta paixão que despertou respeito: quando dois grandes seres se apaixonam não há areias movediças, as pessoas ao contrário do que se julga, percebem isso e são raras as que desprestigiam a unidade dos amantes. Foi, de facto, um tempo profundo e criativo em que Rilke cresceu como grande poeta e que nos deixaram aquelas maravilhosas cartas que são testemunhos literários de preciosa dádiva. Lou, no entanto, impediu sempre que Freud psicanalisasse Rilke, alegando que poderia ferir as fontes da criatividade, pois que um poeta da dimensão de Rilke trabalhava com áreas que não deviam estar expostas à psicanálise. Não há nada melhor que estarmos unidos àqueles cujas linguagens entendemos e cujos desígnios são também os nossos. O destino abre-se para que passem de forma tão única, que creio ser entendível por todas as partes; e também sabemos do terrível, daquilo que o destino não quer e por levianas questões ele separa. Aquilo que nós, tristes e cansados, desgraçadamente insistimos ainda em querer, creio ser esta a mais terrível das misérias, o não nos apercebermos que a vida nos ajuda levando alguns. Sim, mas, onde está o nosso núcleo que abre assim? Onde estão agora os meus Rilkes, os meus Paul Rée, os meus Nietzsche? Em lado nenhum e, no entanto, temos de prosseguir e não sou Salomé e não sou russa e não sou este tempo e não estou aqui e não vejo estes pares. Hoje, em que todos falam de género como de uma raça tirolesa, nós gostávamos de ser outra vez estas gentes tão únicas, tão unidas, tão fecundas, tão brilhantes. Mas é claro, do que mais fica, Rainer nos quer reter, ele que fora para a Rússia, também, em cuja fonte Lou banhou o seu ser neófito de anjo e de poeta: Tira-me a luz dos olhos: continuarei a ver-te/ Tapa-me os ouvidos: continuarei a ouvir-te/ E embora sem pés caminharei para ti/ E já sem boca poderei ainda convocar-te/. Arranca-me os braços: continuarei tocando-te/ Com o meu coração como uma mão/ Arranca-me o coração: ficará o cérebro/ E se o cérebro me incendiares também por fim/ Hei-de então levar-te no meu sangue. Parece tudo demasiado bonito para não nos inundar uma estranha noção de lenda quando Lou a propósito da sua morte escreve a carta que ele não lera. Tu, o homem incomparavelmente cheio de infância e cujos passos não podem errar porque continua a orientá-los o fundamento primeiro. Fazia-se de novo, então, presente o Rainer com o qual se podia estar de mão dada, como num refúgio inexprimível , e o que se transformava, entretanto, em poesia voltava a construir à sua volta esse mesmo refúgio, como um esplendor interminável. Temos tantas saudades deste futuro, de tudo isto….
Julie Oyang h | Artes, Letras e IdeiasDesejos em Confronto 中俄边境的一些镜头 [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o Verão de 2014, Davide Monteleone iniciou uma viagem ao longo da fronteira da Rússia com a China em busca de algo que fosse real e fizesse sentido. Nessa altura o fotógrafo italiano vivia em Moscovo há mais de uma década. As imagens dos locais remotos, capturadas pela sua objectiva, trazem-me à ideia as palavras de Marcel Proust: “Não conseguimos alterar a realidade em função dos nossos desejos, mas aos poucos os nossos desejos vão-se alterando.” Juntei aqui quatro fotografias cujo significado, tal como um desejo secreto sem pretensões a tornar-se realidade, não se altera nunca. Monteleone: “Num local remoto como este os russos ficam à espera que algo aconteça, ao passo que os chineses tentam fazer qualquer coisa.” Réplica da Catedral de São Basílio. A original, mandada construir no séc. XVI por Ivan O Terrível, está na Praça Vermelha em Moscovo. A réplica que aparece na foto foi construída pelos chineses em Jalainur. As torres pintadas e as cúpulas em forma de cebola são ocas; dentro do edifício aloja-se um museu dedicado à Ciência. © Davide Monteleone Yu Shi está a estudar em São Petersburgo para vir a ser padre ortodoxo. A foto foi tirada em Harbin, na China. © Davide Monteleone Um vendedor de comida espera os clientes na margem do rio Songhua, em Harbin, sob as duas pontes ferroviárias – a velha e a nova – pertencentes à Linha Chinesa do Leste. A ponte antiga, à esquerda, foi construída pelos russos no início do séc. XX. A nova, à direita, foi construída pelos chineses. © Davide Monteleone Passageiros no terminal ferroviário da cidade de Manzhouli, uma pequena cidade chinesa junto à fronteira com a Rússia. © Davide Monteleone
Rui Flores PolíticaGuerras de propaganda [dropcap]N[/dropcap]ão se fala muito dele, não tem a visibilidade de um canal de televisão internacional como a BBC, a CNN ou mesmo a Russia Today, mas existe no serviço de acção externa da União Europeia (UE) um departamento que tem como função denunciar, contrariar e refutar a propaganda russa. Chama-se East StratCom Task Force – um nome que parece saído de um filme de espionagem, à boa maneira de James Bond. Imbuído de uma lógica que se assemelha à da Guerra Fria, produz duas newsletters por semana, Disinformation Digest e Disinformation Review, quer em inglês quer em russo, em que não apenas elenca aquelas que terão sido as notícias falsas da semana produzidas pela Rússia, como também reforça os pontos de vista da União sobre assuntos prementes. Esta semana, por exemplo, as publicações, distribuídas online, falavam da propaganda “desconstruída” em torno de Aleppo, e da campanha contra as ONGs em curso na Rússia. Como se viu durante a recente campanha eleitoral para a presidência dos Estados Unidos da América (EUA), as notícias falsas vieram para ficar. Abundam nas redes sociais; no Facebook, por exemplo. Recordo-me particularmente de uma, posta a circular há pouco mais de seis meses, que iria arrumar com as hipóteses de António Guterres ser eleito secretário-geral das Nações Unidas. Tratava-se da alegada apresentação da candidatura de uma mulher – tal como preconizava o ainda secretário-geral Ban Ki-moon –, diplomata filipina, que receberia o apoio de toda a Ásia (China incluída). O pior destas “notícias”, melhor seria se lhes chamássemos boatos, é que são partilhadas e comentadas, passando a fazer parte do conhecimento comum de muitos cidadãos. São alcandoradas ao estatuto de facto. Como a suposta notícia de que Donald Trump teria dito há duas décadas, que a ser candidato presidencial sê-lo-ia pelo partido republicano – “informação” que seria desmentida mais tarde. A generalização destes boatos veio tornar a vida dos jornalistas ainda mais difícil. São apenas os profissionais da comunicação social se vêem forçados a proceder à verificação de um número cada vez maior de alegados factos, como também vão ter de relatar amiúde a própria existência do boato. A divulgação de que ele corre nas redes sociais pode permitir uma melhor compreensão das narrativas que se pretendem fazer passar e da realidade que se procura construir, isto sem se ter a certeza sobre quem está por detrás do processo, cuja origem é quase sempre impossível de determinar. Mais: os governos passaram a acusar-se uns aos outros – particularmente os Estados Unidos e a Europa, de um lado, e a Rússia, do outro – de “assaltos” informáticos e de ataques cibernéticos, com o objectivo claro de destruir a “imagem” do inimigo. É como se o Muro de Berlim não tivesse vindo abaixo. Contrariar a lógica de quem quer danificar a imagem de políticos da UE e afectar os valores que são tradicionalmente comuns a uma maioria dos Estados-membros não é uma tarefa fácil. Os ataques cibernéticos que se sucedem um pouco por todo o lado contribuem para ajudar a construir um inimigo – o que facilita a explicação da derrota. Foi assim nos EUA, tem sido assim nos países que se preparam para eleições em 2017, como a Alemanha, a França e a Holanda. É como se o Muro de Berlim não tivesse vindo abaixo Angela Merkel, por exemplo, disse há dias que vamos todos ter de nos habituar “a vi- ver com eles”. E são quase impossíveis de confirmar de uma forma independente. Os jornalistas limitam-se a citar os porta-vozes dos governos que acusam outros da autoria de roubo de informação e da autoria de notícias falsas. De serem criminosos, portanto. Os governos passaram a acusar-se uns aos outros de “assaltos” informáticos com o objectivo claro de destruir a “imagem” do inimigo. Foi assim no rescaldo das eleições nos EUA, em que as autoridades norte-americanas apontaram o dedo à Rússia de Putin de ter estado na origem do furto de informação ao responsável pela campanha eleitoral de Hillary Clinton à presidência dos EUA, John Podesta. Sublinhe-se Putin, pois a acusação dos serviços secretos norte-americanos foi clara: um ataque desta ordem não poderia ter sido feito sem uma ordem expressa do Kremlin. Dada a incapacidade de a comunicação social provar a fiabilidade das afirmações postas a circular pelos governos – saber-se-á alguma vez se foi Putin quem ordenou o ataque ou se a fuga dos e-mails da campanha de Clinton, divulgados pelo Wikileaks, partiu de dentro da própria estrutura de apoio à antiga secretaria de Estado? –, esta nova guerra torna impossível ao cidadão comum acreditar no quer que seja. É como se de repente tivéssemos passado a viver num mundo de realidades paralelas, saltando de uma para outra ao ritmo do zapping televisivo ou dos sítios que frequentamos na internet. Saúda-se naturalmente a liberdade de escolha, a liberdade de informação. O problema é que a informação nunca foi pura nem foi nunca totalmente objectiva. A informação sempre foi e sempre será enformada por quem a produz e obedece a uma lógica que escapa, em muitos casos, quer ao jornalista quer ao leitor. É como se o trabalho jornalístico estivesse ferido de morte. Parece que os tempos em que era possível acreditar num ou noutro jornalista fazem já parte da história. Há muitos anos, o relato independente do jornalista em cenário de guerra era essencial para se ter uma visão menos contaminada do que se estava a passar. Agora, acreditar que é possível acreditar não ajuda muito, pois torna-nos em simples receptores de informação, como se o processo comunicacional se resumisse à administração de um vacina, na sequência da qual passássemos todos a pensar o mesmo. Este estado de coisas aproveita a quem? Numa primeira leitura, a Putin. Ao pôr em evidência os podres da democracia “ocidental”, o Presidente russo estaria não apenas a vingar-se pela divulgação dos Panama Papers, que, ao porem em evidência o modo de funcionar dos oligarcas russos, terão sido percepcionados no Kremlin como um ataque proveniente de Washington, mas também a sublinhar uma equivalência moral entre o “ocidente” e a Rússia. Todo este caldo de cultura – a incerteza, as instituições frágeis – seria o enquadramento perfeito para justificar uma liderança autoritária do tipo da de Putin. Mas esta é apenas a leitura que é feita por alguns analistas “ocidentais”
Hoje Macau China / ÁsiaRússia e China desafiam supremacia aérea militar dos EUA [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Rússia e a China estão a gastar elevados recursos financeiros na criação de novas tecnologias militares, desafiando os Estados Unidos e os seus aliados europeus no ar e estimulando uma corrida armamentista, escreve The Wall Street Journal. “O desafio mais actual para a Força Aérea dos EUA é o surgimento de forças adversárias iguais, com potencial militar desenvolvido e que não são inferiores às nossas capacidades”, disse o Chefe de Estado-Maior da Força Aérea dos Estados Unidos general David Goldfein. Nos próximos anos, Moscovo e Pequim podem obter novos modelos de tecnologia aeronáutica, bem como de defesas anti-aéreas, disse o jornal. A modernização é realizada num momento em que a Rússia e a China demonstram a sua força em pontos quentes do Médio Oriente e do mar do Sul da China, por isso os estrategistas militares ocidentais também começam a insistir activamente na construção da nova geração de aviões de combate. A Força Aérea dos EUA tem o caça F-35 e o caça-bombardeiro F-22, que também é capaz de recolher informações sobre o território do inimigo. No entanto, 76% dos aviões de combate dos EUA são aviões ultrapassados: o F-15 está activo na Força Aérea dos EUA desde 1975, o F-16 desde 1979 e o caça F/A-18 da Marinha dos EUA foi entregue pela primeira ao serviço em 1978. Estes aviões bastante velhos também formam a base da Força Aérea de muitos dos aliados dos EUA na Europa e na Ásia, acrescentou o WSJ. A Rússia planeia adoptar o seu próprio caça invisível T-50 em 2018, diz o artigo. A China, por sua vez, aposta há muito tempo em modelos russos, usando projectos antigos ou criando novos usando licenças, mas o país também tem novos projectos – o J-20 e o FC-31, que têm um aspecto semelhante aos F-22 e F-35 americanos. A comunidade militar dos EUA não está apenas preocupada com os meios aéreos da Rússia e da China, lê-se no artigo. Moscovo e Pequim estão a adoptar sistemas de mísseis anti-aéreos mais modernos, como o S-400, que é capaz de abater aviões inimigos a uma distância de 380 quilómetros, o que é duas vezes mais do que anteriormente. “São desafios muito sérios para a realização de quaisquer operações militares”, disse o tenente-general na reserva da Força Aérea dos EUA David Deptula.
Hoje Macau China / ÁsiaPutin e Xi Jinping estreitam vínculos [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Presidente chinês, Xi Jinping, e o seu homólogo russo Vladimir Putin, de visita a Pequim, evidenciaram ontem os pontos de ligação e de cooperação entre os dois países, actualmente envolvidos num clima de tensão com o Ocidente. “A Rússia e a China têm pontos de vista muito próximos ou praticamente idênticos sobre o cenário internacional”, declarou Putin, que está a realizar a quarta visita a Pequim desde que Xi Jinping chegou ao poder em 2013. O líder do Kremlin acrescentou que discutiu com o seu homólogo chinês “o fortalecimento da luta global contra o terrorismo internacional”, a questão do programa nuclear da Coreia do Norte, a situação na Síria e no Mar do Sul da China. “O Presidente Putin e eu concordamos que perante um contexto internacional cada vez mais complexo e em mutação que devemos redobrar os esforços para manter o espírito de parceria e de cooperação estratégica sino-russa”, afirmou Xi Jinping. Moscovo e Pequim partilham interesses geopolíticos comuns, nomeadamente a oposição crescente em relação aos Estados Unidos, e votam juntos muitas vezes no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Os dois países são membros permanentes deste órgão que detém poder de veto. Jogada de cinquenta mil milhões Alvo de sanções norte-americanas, mas também por parte da União Europeia (o seu principal comprador de petróleo), devido ao processo de anexação da península da Crimeia e ao envolvimento no conflito no leste da Ucrânia, a Rússia tem procurado novas soluções nos mercados na Ásia, principalmente com a China, com quem assinou em 2014 um importante contrato de gás. Ontem, os dois países assinaram 30 acordos de cooperação, nomeadamente nas áreas do comércio e da energia. Um desses acordos envolve um projecto de uma estrutura petroquímica no leste da Sibéria. Segundo Putin, 58 contratos estão em discussão num valor global de cerca de 50 mil milhões de dólares, incluindo um acordo para a construção de uma linha de comboio de alta velocidade na Rússia. Xi Jinping também garantiu uma maior cooperação entre os meios de comunicação social russos e chineses, de forma “a reforçar a influência” destes órgãos na opinião pública mundial.