Morreu empresário Rui Nabeiro aos 91 anos

O empresário Rui Nabeiro, fundador do grupo Nabeiro – Delta Cafés morreu ontem aos 91 anos, vítima de doença, no hospital da Luz, em Lisboa. “A data e o programa das exéquias serão oportunamente comunicados”, indicou.

“É com profundo pesar que a família Nabeiro informa que faleceu hoje, dia 19 de março, o Comendador Manuel Rui Azinhais Nabeiro, presidente e fundador do Grupo Nabeiro — Delta Cafés”, pode ler-se num comunicado enviado ontem pelo grupo.

“O espírito empreendedor e a sua ética de trabalho estiveram sempre presentes nos momentos decisivos da sua vida. Em 1961, criou a Delta Cafés, dando origem a um grupo empresarial que hoje lidera o mercado dos cafés em Portugal e hoje em forte expansão nos mercados internacionais. Toda a família Delta está profundamente triste com esta perda e estende as sinceras condolências a todos aqueles que também hoje perderam um grande amigo.

Estamos todos empenhados em continuar o seu legado e honrar a sua visão, continuando a produzir o melhor café do mundo, apoiando as comunidades locais e promovendo a sustentabilidade”.

O Comendador Rui Nabeiro “encontrava-se hospitalizado no Hospital da Luz, devido a problemas respiratórios”, pode ler-se no mesmo comunicado, enviado pelo Grupo Nabeiro.

História de vida

Manuel Rui Azinhais Nabeiro nasceu a 28 de Março de 1931 na vila alentejana de Campo Maior, no seio de uma família humilde. Começou a trabalhar por volta dos 12 anos. Aos 17 anos, após a morte do pai, assumiu os destinos da empresa da família, uma pequena torrefação. Apostou na venda de café em Espanha e constituiu, mais tarde, uma sociedade com os tios, a Torrefação Camelo, que mais tarde vendeu.

Em 1961, criou a Delta Cafés. “Na vila alentejana de Campo Maior, num pequeno armazém com 50 metros quadrados e sem grandes recursos, inicia a actividade com apenas duas bolas de torra de 30 kg de capacidade”, pode ler-se no site da empresa, hoje com 62 anos de história. “Um Cliente um Amigo” era a filosofia de gestão de Rui Nabeiro, incorporada no que a Delta escreve sobre si própria, “Uma Marca de Rosto Humano”.

Em 2007 inaugurou o Centro Educativo Alice Nabeiro para dar resposta às necessidades extra-escolares das crianças de Campo Maior. Com o patrocínio da Delta a Universidade de Évora criou, em 2009, a Cátedra Rui Nabeiro, destinada à promoção da investigação, do ensino e da divulgação científica na área da biodiversidade.

Recordação de Timor

O Presidente da República timorense lamentou a morte de Rui Nabeiro, um “homem bom e generoso”, recordando os esforços do empresário português para promover o café timorense no exterior.

“Uma vida longa de grandes iniciativas empresariais, de criar emprego, riqueza para Portugal, para as comunidades onde a Delta estava instalada”, disse José Ramos-Horta, em declarações à Lusa em Díli.

“Fez algumas tentativas de comprar café de Timor no início, mas o mercado na altura já era bastante orientado para outros países como os Estados Unidos. Ainda assim a sua passagem por Timor foi sentida”, recordou.

O chefe de Estado timorense disse que Nabeiro acabou por não poder voltar a Timor-Leste, apesar de a Delta continuar a promover café de Timor-Leste, e recorda uma viagem que fez com o empresário a um evento internacional em Nova Iorque.

“Falámos muito, falámos muito da Delta e do café de Timor. Tenho grata recordação dele. Uma pessoa boa, generosa para os trabalhadores e as suas famílias”, lembrou Ramos-Horta, que falava à margem da inauguração de um novo espaço multiúsos do grupo de media GMN, em Díli.

O lote “Timor” é hoje um dos que integra a coleção da Delta, descrito com “um blend harmonioso, exótico e de deliciosa plenitude”, com café da região de Ermera, a sul de Díli, e que se distingue segundo a empresa pelo seu “sabor cheio, acidez suave e traços doces de chocolate”, segundo a empresa.

No inicio de 2000 as autoridades transitórias timorenses chegaram a anunciar que Rui Nabeiro e a Delta Cafés pretendiam comprar todo o café do país então armazenado, com um programa de pretendia colaborar com o desenvolvimento do setor que emprega cerca de 70 mil famílias.

O apoio da Delta era essencial para travar o que era, na opinião das autoridades timorenses, o monopólio norte-americano que até então controlava quase toda a exportação de café de Timor-Leste. O empresário português visitou Timor-Leste em março de 2000.

20 Mar 2023

José Luís Peixoto, escritor: “Cada livro é um degrau para os próximos”

O mais recente romance de José Luís Peixoto, “Almoço de Domingo”, à venda em Macau, tem como figura central Rui Nabeiro, o pai dos cafés Delta. Apresentado no fim-de-semana passado no FOLIO – Festival Internacional de Literatura de Óbidos, Portugal, o romance foi construído a partir de entrevistas com Rui Nabeiro e representa o interesse do escritor em explorar a fronteira “dúbia” entre ficção e realidade

 

Há pouco, na sessão de autógrafos, falava com uma leitora sobre o livro “Uma Casa na Escuridão”, que já faz 20 anos. Esperava ter chegado até aqui?

Sempre tive essa esperança. Ainda assim, nunca foi muito garantido. É por isso que hoje, quando constato que, passados 20 anos, ainda aqui estou, a publicar livros num caminho sempre ascendente, com cada vez mais leitores e mais reconhecimento, é muito gratificante. Dá-me também muito entusiasmo para o que aí vem, porque na escrita olhamos sempre para o futuro, a trabalhar em algo que está por vir.

Isso passa por uma evolução como escritor, na forma de escrita? Já se aventurou pela poesia e pela literatura de viagens com o livro sobre a Coreia do Norte. Pretende agora trazer algo de novo?

Às vezes tenho a sensação de que cada livro é como um degrau que depois me leva aos próximos. Na verdade, quando olho para cada livro que escrevo, como é o caso deste último, [Almoço de Domingo], tenho sempre a sensação de olhar para os anteriores e de encontrar neles o que me levou a escrever esse livro. Neste momento, estou num ponto em que tem sido muito interessante para mim trabalhar a fronteira muito dúbia entre a ficção e o factual.

E a não ficção.

Entre a ficção e o que é o histórico, de certa forma. Tenho vindo a tratar disso noutros livros com relações autobiográficas assumidas, como no caso do livro da Coreia do Norte ou no “Caminho Imperfeito”, que fala da Tailândia e que também tem essa dimensão de não ficção. Também já inclui figuras e pessoas conhecidas que todos sabemos que existem ou que existiram, como é o caso de José Saramago no romance “Autobiografia” ou de Rui Nabeiro neste último livro. Tem sido muito interessante, porque passear nessa fronteira assenta um pouco quase neste mal-entendido, que existe desde há séculos, sobre o que é real e não é, o que é verdade e não é. Muitas vezes são colocadas essas questões assentando-as no debate ficcional e autobiográfico quando, de facto, esta questão não se prende com esses temas, porque existe uma verdade na ficção também. Ainda assim, é um tema que recorrentemente é trazido e que hoje em dia se encontra muito em múltiplos aspectos da nossa sociedade. Lembro-me dos reality shows, por exemplo.

Uma realidade um bocado construída.

Sim, um bocado fabricada. Acho interessante reflectir sobre isso, porque as ficções, na vida, são muitas, e de vários tipos. É muito comum, no nosso dia-a-dia, darmos por ficcionais coisas que têm uma dimensão biográfica importante, e darmos como concretas coisas que são muito trabalhadas ficcionalmente.

No caso de “Almoço de Domingo”, o que é real e ficcional na “personagem” de Rui Nabeiro?

É muito curioso porque, sendo o Rui Nabeiro uma pessoa tão concreta, presente, puxa-nos logo para essa dimensão do quotidiano, do real. Mas, por outro lado, neste livro vemos que ele está dividido em três partes que correspondem a três dias concretos, que são 26, 27 e 28 de Março de 2021. O livro chegou às livrarias antes dessas datas, então claro que tudo o que aconteceu foi ficcionado. Mas quando construí esses episódios tive em consideração os hábitos e as características do Rui Nabeiro. Mas é uma construção. O mesmo acontece, talvez de uma forma mais subtil, em relação aos acontecimentos do passado. Esses detalhes parecem insignificantes, mas são eles que constituem a experiência de estar e de ser. Este livro é, na sua essência, um texto de ficção. Para mim é muito interessante todos os vínculos que ele estabelece com o real, por muito que isso depois acrescenta à própria leitura e identidade do texto, até sob ponto de vista prático. O facto de o próprio Rui Nabeiro sentir que a sua história é contada ali, acho fascinante.

Ele transmitiu-lhe isso?

Recebi essa informação sempre um bocadinho indirectamente. Sempre que lhe fiz essa pergunta directamente ele escapou. Ele nunca foi muito objectivo, mas ouvi ele responder a essa pergunta a várias pessoas e a dizer que estava contente. E isso para mim é suficiente.

Fizeram várias entrevistas.

Sim, tivemos conversas em que eu chegava com as minhas questões e temas preparados, e normalmente falava sobre assuntos sobre os quais tinha mais dúvidas e sobre detalhes. São eles que dão vida às descrições e precisava muitas vezes que ele me desses detalhes. Mas em alguns momentos a minha memória e as minhas referências também foram muito úteis. Descrever, por exemplo, a pequena mercearia que a mãe do Rui Nabeiro tinha quando ele era criança contou muito com as memórias que tinhas das mercearias na minha aldeia.

“Almoço de Domingo” remete para quê?

Para já, “Almoço de Domingo” tem a ver com um momento importante do romance que é, na verdade, o coração do livro, em que existe um cruzamento de vários momentos da vida de Rui Nabeiro e daquela família, as gerações do passado e do presente, e até do futuro. A minha ideia era que esse título exprimisse imediatamente a ideia de família, porque esse é um aspecto muitíssimo importante na vida do Rui Nabeiro, o seu projecto e na forma como ele estruturou toda a sua vida. Ao mesmo tempo, como patriarca, é uma figura que está num ponto em que olha para um lado e vê uma quantidade de gerações do passado que ele testemunhou, e olha para outro e vê as gerações do presente e do futuro que não conheceram essa realidade, e ele é a única ponte entre os dois.

Escreveu o romance “Galveias”, uma aldeia no Alentejo de onde é natural, e este último romance é sobre Rui Nabeiro, uma figura também da região. Este é um livro que faz uma nova homenagem ao Alentejo?

Escrever sobre aquele Alentejo foi uma grande oportunidade que este livro em proporcionou. Porque tem muitas realidades. No caso de Campo Maior é impossível contar a história daquele lugar ignorando a fronteira. É marcante a todos os níveis. Tinha alguns ecos da fronteira quando era criança, chegava ali a televisão espanhola, mas não se compara com essa vida [do tempo de Rui Nabeiro]. Foi interessante acrescentar esse Alentejo ao que eu já escrevi. Vem na sequência do meu interesse por ir alargando o meu retrato desta região. No caso do livro “Galveias”, falando especificamente de espaços, acaba por se encontrar uma forma de ser bastante genérica também. Uma das coisas mais engraçadas, e que me acontece muito, é quando encontro pessoas que me dizem “a minha Galveias chama-se tal”. Galveias passa a ser um exemplo, uma referência. E o Rui Nabeiro tem os seus elementos concretos, mas pode ser a referência de um homem, daquela idade, numa outra região.

19 Out 2021