Hoje Macau Via do MeioPoesia chinesa e psicanálise – Lacan em Pequim Por M. Ângela Andrade O que há de peculiar na forma na poesia chinesa, que leva Demiéville a comparar a sua tessitura com a arte de “fritar peixinhos sem destroçá-los”? Há uma alusão à sua leveza e subtileza. Mas esse savoir-faire implica ainda exercitar-se pela repetição, pois os chineses imitam e repetem sempre os códigos poéticos, os mitos e os ritos ancestrais. Para além do saber fazer, da habilidade, o que confere à poesia charme irresistível é o estilo e a singularidade, tal como o demonstra a caligrafia chinesa. O que se apreende é que a repetição chama o novo. Na tessitura de uma poesia provisória, a apreensão do ser sempre escapa. Daí ser “poesia ténue, sempre prestes a se desfazer na via do apagamento, sempre capaz de evitar o desaparecimento, ameaçada de extinção e, no entanto, sempre renascendo. Afinal inextinguível, por tocar nos contrastes da língua em si, da qual se desprende a linguagem.” Antes de prosseguir lendo como Albert Nguyen articula as relações entre poesia chinesa e psicanálise, cumpre notar dados historiográficos da relação de Lacan com a China, sua língua e pensamento: Jacques Lacan sempre fora atraído pelo Extremo Oriente e sabe-se que, durante a Ocupação, havia aprendido o chinês na Escola de Línguas Orientais. Em 1969, quando elaborava sua teoria do discurso a partir da divisão wittgensteiniana do dizer e do mostrar, voltou a mergulhar com paixão no estudo da língua e da filosofia chinesa. Em outra ocasião procurei tratar aqui das referências sobre a língua chinesa nos seminários de Lacan, principalmente as do seminário XVIII. No presente trabalho busco apresentar aspectos das indicações de Lacan a respeito de poesia chinesa: “Se vocês são psicanalistas, verão que é o forçamento por onde um psicanalista pode fazer ressoar outras coisas, outra coisa que o sentido. (….) O sentido, isto tampona; mas com a ajuda daquilo que se chama escritura poética podem ter uma dimensão do que poderia ser a interpretação analítica. É absolutamente certo que a escritura não é aquilo pelo que a poesia, a ressonância do corpo, se exprime. É aliás completamente surpreendente que os poetas chineses se exprimam pela escritura e que para nós o que é preciso é que tomemos na escritura chinesa a noção do que é a poesia. Não que toda poesia… seja tal que a possamos imaginar pela escritura, pela escrita poética chinesa, mas talvez vocês sintam aí alguma coisa que seja outra, outra que aquilo que faz que os poetas chineses não possam fazer de outra forma senão escrever…” A poesia chinesa, porém, só pode ser lida conhecendo o contexto em que brota, ou seja, os fundamentos filosóficos, particularmente daoístas em que está alicerçada. Ainda sobre o contexto: o solo em que florescem essas tradições gerou uma combinação particular de vertentes filosóficas heterogéneas que, no entanto, se revelam bastante assimiladas na cultura chinesa. Nguyen indica ainda os trabalhos de Isabelle Robinet e François Julien que demonstram indiscutivelmente a incidência e força destas doutrinas, tanto na poesia como na estratégia e política da China. O artigo em questão destaca três grandes poetas chineses para ilustrar cada tradição: Wang Wei (budista), Li Po (taoísta) e Du Fu (confucionista). Escolhi para ilustrar a presente exposição, a poesia de Wang Wei. Atalho pela velha floresta; nenhum vestígio No coração do monte, um som de sino; vindo de onde? À tarde, sobre o lago deserto, meditando, Alguém aprisiona o dragão venenoso. Em Televisão, Lacan fala do estatuto provisório da poesia, fazendo dela uma arte do desprendimento, como aquela que o poeta Wang Wei pratica. No encontro de poesia chinesa e psicanálise surgem interferências e diferenças. Nguyen destaca a ressonância, termo que equivale à interferência, como o alvo da interpretação psicanalítica. As interferências ou ressonâncias são: 1. A natureza, que na poesia chinesa indica o lugar do vazio, o furo. “Lugar de ressonância, lugar de interferência: nada pode ressoar sem um furo: aquilo que no saber constitui o sintoma analítico, aquilo que deixa o poema e o livro inacabados, aquilo da ruptura da tradição que provoca a rã de Bashô, que se lança no poço, plof! e tantas outras indicações desta interferência da ressonância.” 2. A relação com o real. Essa segunda interferência assenta-se no lugar concedido ao real. A relação ao real é distinta na psicanálise. Na poesia chinesa, o real surge como realidade derradeira, sinónimo de Dao. Já a psicanálise confere ao sujeito o estatuto de separado, cortado definitivamente de todo o mundo e de toda cosmologia. Assim, separação, exclusão do sujeito, em oposição à integração daoísta. Poderíamos, talvez, aproximar essa relação ao real no taoísmo com a música tonal, enquanto que a relação ao real na psicanálise com a música atonal. Ou ainda com Badiou: “O real, para Lacan, se dá como ausência de sentido. Mas o que é preciso entender bem, é que ausência de sentido para Lacan, nunca quer dizer não-sentido. Há uma função de sentido do real, enquanto ausência de sentido. Há uma ausência no sentido, uma subtracção ao sentido que não é um não-sentido. É essencial compreender a diferença entre ausência de sentido (ab-sens) e não-sentido (non-sens).” 3. A mistura, mestiçagem (métis) da linguagem ou do real com a linguagem do simbólico. É a que se contrapõe à linguagem unívoca do Um fálico; a mestiçagem favorece a maleabilidade de espírito. Efeito de sujeito, afânise, ou o estatuto provisório, evanescente do ser? O sentido de “poesia provisória” diz respeito ao caminho no qual a apreensão do ser sempre escapa. O analisante e o poeta seriam, nesta perspectiva, um efeito poético. Nguyen conclui seu trabalho com o que nomeia de Lacan chinês. Diz ele, “Como situar esta possibilidade do passo suplementar que Lacan realiza sobre o taoísmo e a poesia? A resposta é dupla. Por um lado, Lacan, ao formular a estrutura, não deixa de examinar o registo da consequência (desenvolvida nesse mesmo seminário). A causa não porta somente efeito, mas consequências. E por outro lado, esse passo suplementar é autorizado pelo que nomeio de “Lacan chinês” para designar o lugar sempre marcado de referências chinesas em seu ensino, do início ao fim. Lacan começa seu ensino com o Zen e todos conhecem a referência à Índia de Prajapati e o Deus Trovão dos Escritos, mas é principalmente a partir do seminário “A Angústia”, seminário sobre o afeto certeiro da angústia, central em sua elaboração da teoria da causa, que Lacan, a partir do vazio e do feminino – pois é também este um seminário sobre a abordagem do feminino juntamente a uma tentativa de visualizar um para além da rocha freudiana da castração para o final de análise – com Kuan Yin, a fêmea misteriosa da qual ele extrai o olhar como causa, olhar faltante, olhar vazio, começa a marcar aquilo que será uma insistência sobre as referências chinesas.”
Hoje Macau Via do MeioPoesia chinesa e psicanálise Por M. Ângela Andrade O que há de peculiar na forma na poesia chinesa,1 que leva Demiéville2 a comparar a sua tessitura com a arte de “fritar peixinhos sem destroçá-los”? Há uma alusão à sua leveza e subtileza. Mas esse savoir-faire implica ainda exercitar-se pela repetição, pois os chineses imitam e repetem sempre os códigos poéticos, os mitos e os ritos ancestrais. Para além do saber fazer, da habilidade, o que confere à poesia charme irresistível é o estilo e a singularidade, tal como o demonstra a caligrafia chinesa. O que se apreende é que a repetição chama o novo. Na tessitura de uma poesia provisória, a apreensão do ser sempre escapa. Daí ser “poesia ténue, sempre prestes a se desfazer na via do apagamento, sempre capaz de evitar o desaparecimento, ameaçada de extinção e, no entanto, sempre renascendo. Afinal inextinguível, por tocar nos contrastes da língua em si, da qual se desprende a linguagem.” 3 Antes de prosseguir lendo como Albert Nguyen articula as relações entre poesia chinesa e psicanálise, cumpre notar dados historiográficos da relação de Lacan com a China, sua língua e pensamento: Jacques Lacan sempre fora atraído pelo Extremo Oriente e sabe-se que, durante a Ocupação, havia aprendido o chinês na Escola de Línguas Orientais. Em 1969, quando elaborava sua teoria do discurso a partir da divisão wittgensteiniana do dizer e do mostrar, voltou a mergulhar com paixão no estudo da língua e da filosofia chinesa.† Em outra ocasião procurei tratar aqui das referências sobre a língua chinesa nos seminários de Lacan, principalmente as do seminário XVIII. No presente trabalho busco apresentar aspectos das indicações de Lacan a respeito de poesia chinesa: “Se vocês são psicanalistas, vocês verão que é o forçamento por onde um psicanalista pode fazer ressoar outras coisas, outra coisa que o sentido. (….) O sentido, isto tampona; mas com a ajuda daquilo que se chama escritura poética vocês podem ter uma dimensão do que poderia ser a interpretação analítica. É absolutamente certo que a escritura não é aquilo pelo que a poesia, a ressonância do corpo, se exprime. É aliás completamente surpreendente que os poetas chineses se exprimam pela escritura e que para nós o que é preciso é que tomemos na escritura chinesa a noção do que é a poesia. Não que toda poesia… seja tal que a possamos imaginar pela escritura, pela escrita poética chinesa, mas talvez vocês sintam aí alguma coisa que seja outra, outra que aquilo que faz que os poetas chineses não possam fazer de outra forma senão escrever…”4 A poesia chinesa, porém, só pode ser lida conhecendo o contexto em que brota, ou seja, os fundamentos filosóficos, particularmente taoístas em que está alicerçada. Ainda sobre o contexto: o solo em que florescem essas tradições gerou uma combinação particular de vertentes filosóficas heterogéneas que, no entanto, se revelam bastante assimiladas na cultura chinesa. Nguyen indica ainda os trabalhos de Isabelle Robinet e François Julien que demonstram indiscutivelmente a incidência e força destas doutrinas, tanto na poesia como na estratégia e política da China. O artigo em questão destaca três grandes poetas chineses para ilustrar cada tradição: Wang Wei (budista), Li Po (taoísta) e Du Fu (confucionista). Escolhi para ilustrar a presente exposição, a poesia de Wang Wei. Atalho pela velha floresta; nenhum vestígio No coração do monte, um som de sino; vindo de onde? À tarde, sobre o lago deserto, meditando, Alguém aprisiona o dragão venenoso. Em Televisão, Lacan fala do estatuto provisório da poesia, fazendo dela uma arte do desprendimento, como aquela que o poeta Wang Wei pratica. No encontro de poesia chinesa e psicanálise surgem interferências e diferenças. Nguyen destaca a ressonância, termo que equivale à interferência, como o alvo da interpretação psicanalítica. As interferências ou ressonâncias são: 1. A natureza, que na poesia chinesa indica o lugar do vazio, o furo. “Lugar de ressonância, lugar de interferência: nada pode ressoar sem um furo: aquilo que no saber constitui o sintoma analítico, aquilo que deixa o poema e o livro inacabados, aquilo da ruptura da tradição que provoca a rã de Bashô, que se lança no poço, plof! e tantas outras indicações desta interferência da ressonância.” 2. A relação com o real. Essa segunda interferência assenta-se no lugar concedido ao real. A relação ao real é distinta na psicanálise. Na poesia chinesa, o real surge como realidade derradeira, sinónimo de Tao. Já a psicanálise confere ao sujeito o estatuto de separado, cortado definitivamente de todo o mundo e de toda cosmologia. Assim, separação, exclusão do sujeito, em oposição à integração taoísta. Poderíamos, talvez, aproximar essa relação ao real no taoísmo com a música tonal, enquanto que a relação ao real na psicanálise com a música atonal. Ou ainda com Badiou: “O real, para Lacan, se dá como ausência de sentido. Mas o que é preciso entender bem, é que ausência de sentido para Lacan, nunca quer dizer não-sentido. Há uma função de sentido do real, enquanto ausência de sentido. Há uma ausência no sentido, uma subtracção ao sentido que não é um não-sentido. É essencial compreender a diferença entre ausência de sentido (ab-sens) e não-sentido (non-sens).”§ 3. A mistura, mestiçagem (métis) da linguagem ou do real com a linguagem do simbólico. É a que se contrapõe à linguagem unívoca do Um fálico; a mestiçagem favorece a maleabilidade de espírito. Efeito de sujeito, afânise, ou o estatuto provisório, evanescente do ser? O sentido de “poesia provisória” diz respeito ao caminho no qual a apreensão do ser sempre escapa. O analisante e o poeta seriam, nesta perspectiva, um efeito poético. Nguyen conclui seu trabalho com o que nomeia de Lacan chinês. Diz ele: “Como situar esta possibilidade do passo suplementar que Lacan realiza sobre o taoísmo e a poesia? A resposta é dupla. Por um lado, Lacan, ao formular a estrutura, não deixa de examinar o registo da consequência (desenvolvida nesse mesmo seminário). A causa não porta somente efeito, mas consequências. E por outro lado, esse passo suplementar é autorizado pelo que nomeio de “Lacan chinês” para designar o lugar sempre marcado de referências chinesas em seu ensino, do início ao fim. Lacan começa seu ensino com o Zen e todos conhecem a referência à Índia de Prajapati e o Deus Trovão dos Escritos, mas é principalmente a partir do seminário “A Angústia”, seminário sobre o afecto certeiro da angústia, central em sua elaboração da teoria da causa, que Lacan, a partir do vazio e do feminino – pois é também este um seminário sobre a abordagem do feminino juntamente a uma tentativa de visualizar um para além da rocha freudiana da castração para o final de análise – com Kuan Yin, a fêmea misteriosa da qual ele extrai o olhar como causa, olhar faltante, olhar vazio, começa a marcar aquilo que será uma insistência sobre as referências chinesas.” Notas 1 “La métis des mots: le poète et le Saint”- Albert Nguyen. BARCA! N. 8. 1997 2 Os interlocutores de Lacan foram inicialmente o sinólogo e tradutor Paul Demiéville, que durante anos dirigiu a École Pratique des Hautes Études, e mais tarde, o escritor e chefe dos trabalhos no Centro de Linguística Chinesa da mesma École, François Cheng, com quem leu textos clássicos em chinês. 3 Ibid. pg 122 4 Lacan. L’insu. pg 129
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasA psicanálise da mulher vista por trás [dropcap]N[/dropcap]um curioso artigo intitulado ‘The 10 Coolest Foreign Words The English Language Needs’*, R. Aston revelou dez palavras de diferentes línguas que não têm correspondência em Inglês. Isto significa que estamos perante dez conteúdos para os quais não há termos em Inglês que os consigam traduzir cabalmente. Faço desde já, notar que nenhuma deles é “Brexit”. Entre essas dez palavras consta uma portuguesa: “desenrascanço”. De referir que o conteúdo associado a ‘desenrascanço’, que equivale a ‘sair de situações complicadas através de repentismos não calculados e geralmente improvisados’, tem na nossa língua variados sinónimos (quase todos reflexivos), entre outros, ‘desembaraçar-se’, ‘safar-se’ ou ‘livrar-se’ de perigos ou de apuros. Esta riqueza justifica-se pela mesma razão que, em Árabe, existe uma dezena de palavras diferentes para exprimir o conteúdo associado a ‘falcão’. Na realidade, uma língua tende a desenvolver e a enriquecer no seu acervo expressivo aqueles conteúdos com que mais lida, devido, entre outras possibilidades, às configurações da natureza envolvente ou ao usos e tradições dos seus falantes. Razão pela qual existe uma enorme escolha de palavras para dizer ‘falcão’ em Árabe (uma das consoantes do alfabeto até imita a sonoridade e a forma da ave de rapina) e razão, também, pela qual o conteúdo ‘desenrascar’ tem tanta saída expressiva na língua portuguesa. Deixo aqui as restantes nove palavras referidas por R. Aston que veiculam conteúdos que não são propriamente da intimidade dos britânicos: a) “Shlimazl” (‘Yiddish’) – Alguém permanentemente sem sorte. b) “Tatemae” e “Honne” (Japonês) – O que alguém deseja acreditar e aquilo em que realmente acredita. c) “Sgiomlaireachd” (Gaélico Escocês) – Referência a alguém que interrompe uma pessoa que está a comer. d) “Tingo” (Pascoense) – Aquele que pede emprestado bens ou dinheiro a um amigo até o deixar sem absolutamente nada. e) “Bakku-shan” (Japonês) – Uma rapariga lindíssima, desde que vista apenas por trás. f) “Espirit d’escalier” (Francês) – Sempre que a palavra ideal ou apropriada é descoberta, já é demasiado tarde para a usar. g) “Mamihlapinatapai” (‘Yaghan’) – Encontro entre duas pessoas que suscita a partilha de um desejo indizível e inexplicável. h) “Backpfeifengesicht” (Alemão) – Um rosto que precisaria de ser trocado por outro novo. i) “Nunchi” (Coreano) – Pessoa que age sem ter ideia alguma da situação social em que está envolvida. Se dermos um passeio, em Português, pelos conteúdos que estas palavras veiculam, encontraremos quase sempre solução, facto que revela a nossa língua como uma boa viajante ao longo de quase todas as latitudes e longitudes do globo. No entanto, pensando em “Shlimazl” (‘Yiddish’), refira-se não há em Português um claro antónimo para “sortudo”, apesar de palavras interessantes tais como “desventuroso” ou “azarento”. É claro que “Shlimazl” (‘Yiddish’) se aplica a qualquer fadista, forcado ou àqueles partidos políticos que, década atrás de década, se atrelam a 0,5% das intenções de voto. Já “Tatemae” e “Honne” (Japonês) andam nas proximidades do par ‘fezada vs. saudade’ ou ‘saudade vs. fezada’, sendo a respectiva ordem puramente arbitrária. A expressão “Sgiomlaireachd” (Gaélico Escocês) corresponderá, por sua vez, ao lusitaníssimo “empata”, seja o comprazimento gastronómico ou de outra natureza mais vivamente carnal. Continuando a nossa visita guiada, “Tingo” (Pascoense) pisca o olho a ‘amigo da onça’, do mesmo modo que “Espirit d’escalier” (Francês) remete para a ideia de oportunidade perdida ou de fora de jogo existencial, embora sem grande solução portuguesa à altura. Para terminar: “Mamihlapinatapai” (‘Yaghan’) cheira a bloco central, “Backpfeifengesicht” (Alemão) acena a ‘cara de cu’, passe o plebeísmo metafísico, ao passo que “Nunchi” (Coreano) não anda longe de ‘patobravismo’. A única palavra que não faz de todo jus ao Português é “Bakku-shan” (Japonês), a tal mulher linda de morrer, embora apenas percepcionada pelo lado de trás. Poderíamos alegar o reverso do ‘espírito de fachada’, mas estaríamos ainda muito longe. O que faltará em Português liga-se, pois, ao tempo e ao espaço: por um lado, negligência face ao atraso da palavra certa a usar no momento também certo (embora, neste caso, se possa confirmar que os portugueses a têm sempre, fonte, naturalmente, do seu genuíno “desenrascanço”); por outro lado, negligência face à retaguarda da beleza feminina. É este último caso que mais deveria preocupar a psicanálise portuguesa. Haverá uma razão para os portugueses terem educado sobretudo o ‘olhar para a frente’ em detrimento do ‘olhar para trás’. Repare-se que o território do nosso país é uma das finisterras que fecha a Eurásia e por isso aqui se foram acamando os povos mais diversos, durante milénios e milénios. Quem aqui ia chegando, esbarrava sempre no litoral e não podia perseguir a sua viagem, a não ser de barco. Foi por isso que os povos portucalenses se esmeraram em ficar pasmados a olhar para o mar, ou seja, para o lado da frente. Para trás ficava a saudade, esse espaço transbordante para o qual, ao modo de Orfeu, não se olha. Antes se imagina e percorre trágica e poeticamente. Ao invés, com o imenso pacífico a leste, o Japão tem pela frente todos os continentes. Daí o hábito de olhar o mundo por trás, seguindo, aliás, o sentido do sol que, no seu itinerário de oriente para o ocidente, passa por lá todos os dias em primeiro lugar. Quem diz o mundo, diz o melhor que nele habita. *R. Aston. ‘The 10 Coolest Foreign Words The English Language Needs’ [Em linha] April, 13 2009. Disponível em https://www.cracked.com/article_17251_the-10-coolest-foreign-words-english-language-needs.html [Consult. 28 de Fev. 2019] Imagem: Pintura de Vilhelm Hammershøi
Tânia dos Santos Sexanálise VozesA Psicanálise [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] sexo teorizado complexifica-se na sua diversidade ideológica, e reduz-se a uma possível doutrina. Estas ideias e experiências do sexo bebem um pouco daquilo que sabemos e daquilo que experimentamos, que depois se misturam em discursos ricos e especializados sobre o tema (isto para dizer que no que toca a sexo, especialmente, a ideologia não é o único preditor para a forma de como ela é sentida e imaginada). A psicanálise trouxe uma perspectiva do sexo a domínio público, e só por isso (independentemente do seu conteúdo) foi recebido com algum choque/fascínio – ou recusado de todo. A este discurso estavam associadas não só perspectivas do sexo mas perspectivas psicoterapêuticas que em muito contribuíram para a forma como percebemos a doença mental hoje em dia, e o sexo tornou-se conceito chave da psique humana. Com a grande praga histérica do séc. XIX, médicos tentavam perceber o que é se passava com a mulheres, que entravam em grandes estados de ansiedade, irritabilidade e tendências ‘promíscuas’. Até então julgavam que elas padecessem de um mal físico – o seu útero estaria fora de controlo. Não é por acaso que histeria vem do termo grego hiteros, que quer dizer útero. Desde a antiguidade clássica que se entendia a explosão emocional feminina como uma desconexão do útero e das suas necessidades, ou seja, o útero era uma entidade própria e potencialmente problemática, e por isso, o foco do problema. Um tratamento possível (mas extremo) era uma histeroctomia. Mas Freud veio mudar o paradigma ao reforçar a condição psíquica/mental do conflito sexual, sendo esta a principal razão para a manifestação histérica. A cabeça é que devia ser tratada, não o órgão reprodutor per se. Com o desenvolvimento de terapias do foro ‘psico’, assim fundou a psicanálise, que incluía uma teoria do desenvolvimento humano que girava em torno da sexualidade. E assim um neurologista se tornou psicanalista. Já se passaram mais de 100 anos desde que estas ideias psicanalíticas vieram a público, e o imaginário sexual que fora descrito continua entre nós, presente e activo. Na gíria popular ouvem-se conceitos de especificidade psicanalítica: fala-se de recalcamentos, líbido, mecanismos de defesa, ego, inconsciente, complexo de Édipo. Mas sempre me perguntei sobre qual seria a ‘lição’ retirada desta teorização para forma como o sexo (e o género) é entendido hoje em dia. As teorias feministas têm a dizer uma ou outra coisa, já que a linguagem psicanalítica sobre as mulheres veio atrasar tentativas de emancipação ao longo da história. Problemas: (1) define um estado de inveja do pénis como parte do desenvolvimento psicossexual feminino (2) entende que a satisfação sexual é alcançada através da penetração vaginal, única e simplesmente (3) define a condição feminina através da maternidade (4) considera que tudo fora do comportamento ‘normal’ feminino da época, é automaticamente problematizado. Entre outros. Claro que tudo isto acontece como uma pescadinha de rabo na boca. As ideias psicanalíticas vieram reforçar ideologias heteronormativas, e as ideias (expectativas) heteronormativas da sociedade em geral reforçaram teorias e perspectivas académicas. Não sou especialista em psicanálise para poder espremer outras considerações acerca das consequências reais da psicanálise. Surpreende-me, contudo, que seja uma perspectiva psicológica muito popular na cultura pop, encontramo-la nos filmes, nas artes plásticas, na música ou na literatura. Dá que pensar o que a psicanálise poderá ainda dizer sobre nós, como sociedade, e da nossa forma de pensar o sexo. Talvez somente mergulhando nos meandros simbólicos e inconscientes do sexo contemporâneo poderemos ver uma inveja do pénis ainda – ou o medo da castração masculina. Talvez ainda possamos assistir ao desejo do filho de matar o pai por ciúmes da mãe, ou dos ciúmes da filha, chamado complexo de Electra. Pode ser que nos recantos do nosso inconsciente ainda faça sentido que o sexo vaginal de penetração seja o único tipo de sexo que nos satisfaz e que nos dá sanidade. Talvez nada disto faça sentido e a sexualidade permanece como sempre foi, um mistério.