Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasAmadis Vêm-nos ecos de encantamentos quando surge a Primavera, talvez que ela esteja ligada a uma lenda lá longe, à dos bosques verdes da memória onde a transparência das manhãs nos traz reinos antigos. Amadis de Gaula – a terra de Gales – e não da Gália, França, que ambas as regiões se orientavam aqui nas lendas bretãs, dando depois origem aos trovadores anglo-franceses, que as nacionalidades ainda demoraram a vir; e chegaria Amadis a Portugal com Dinis, este emblema céltico com seiscentos anos de atraso e remetido à intertextualidade como não pode deixar de ser num sistema transformado. Estamos mergulhados nas brumas de um sonho que correu a Europa e a marcou de formas várias reescrevendo-se e adaptando-se ao modelo das suas sociedades. Amadis, o Namorado, leva-nos até à poesia de Sophia Mello Breyner, esta versão na sua «Fada Oriana» – Oriana a sem Par, Donzel do Mar, uma paixão por uma gentil senhora muito jovem, escrito por um irmão mais novo de D. Dinis, e nós percorremos esta viagem de idealismo amoroso que na época de quinhentos tanto viria a ser reabilitado como um treino moral de valentia, doçura e suave sentir, que muitos o acharam profano lascivo e vadio, doutos seres de responsabilidades culturais que por sinal nunca vêm mencionados, mas Amadis foi proclamado como «Doutrina de Cavaleiros e roteiro de Príncipes» havendo nas lutas além-mar quem o quisesse imitar levando a narrativa com eles. Até um certo tempo, 1600 por aí, o “Português Namorado” que Espanha ridicularizara em nós por excesso de sentimentalismo e devoção, fizera que Cervantes escrevesse contra o estigma dos cavaleiros andantes retirando obra maior de uma densidade a golpes severos de ironia e marcando claramente o fim de uma era narrativa. Nós, pequenos, quantas vezes ausentes, levámo-la no coração, e Afonso Lopes Vieira trezentos anos mais tarde lhe presta ainda culto como uma memória profunda das bases nacionais, ao escrever «Romance de Amadis». Já o mundo é outro, e o que mais fascina é esta memória que nunca esquece os ciclos quase perfeitos de uma velha litania. Esta disputa pelo texto entre Portugal e Espanha viria a reflectir-se para nosso lado como a primeira “flor de sal” deixada perdida, mas que marcou condutas e fez toda uma linhagem de lirismo com uma lealdade transfiguradora. Deixámos fugir Amadis, como deixamos e abandonamos quase tudo que os nossos sonhos transportam. Somos poucos para tão grande amor! Nos tempos de agora toda esta conexão será no mínimo estranha pois que nos tornámos ausentes de nós mesmos, criaturas amordaçadas por coisas que não estão no caminho das lendas, que tudo aquilo que nos lembrava se foi de nós também partindo, e que tal estado seria ainda um mal menor se dele ao menos houvesse consciência. Estamos submetidos a ordens, mas não às leis da Ordem, essa outra coisa que é fundamental no instinto maior da liberdade. Faz agora cem anos que Lopes Vieira no pinhal D´el -Rei, na sua casa, nos daria de novo a encantadora versão dos seus anos de investigação para reescrever uma natureza que continua a querer falar-nos como se fosse um convite de alvorada. Suspenso fica o amor de Amadis e Oriana, sem lhe sabermos o fim? Mas o amor não tem fim, se é belo amor; ou, se o tem, tem-no em si mesmo, Porque o amor ama o amor. AFONSO LOPES VIEIRA – ROMANCE DE AMADIS Assim termina o que a Primavera vem de novo lembrar, uma gesta que parece esquecida mas que renasce firme nos nossos corações. O vinte e cinco de Abril traz a lenda inconsciente de um corpo comum nas bailias de um antigo sonho, e foi por isso que nele estivemos tão felizes, que os jovens capitães foram Amadis na vontade de servir com ternura a nossa causa. Com Oriana, e além o mar.
Valério Romão Artes, Letras e IdeiasEstá quase, já passou Daqui a pouco, a Primavera. Que faremos então com tanto sol? É mais fácil confinar no Inverno; mais intuitivo. É mais fácil respeitar as regras de distanciamento social, as recomendações de que se evitem contactos desnecessários, as proibições das festas. A Primavera – onde ela existe – foi sempre uma época de renovação e de festejo; está ligada a bonança das colheitas, à fertilidade, ao engordar do dia. Os animais reaparecerem na Primavera e pontuam a paisagem onde tudo quanto é verde se estende em direcção ao sol e ao céu. Tudo é mais suportável na Primavera. Esta poderá ser a segunda Primavera de que seremos subtraídos. Pouco me importa que me levem o Inverno e boa parte do Outono; está frio, chove. Podem ficar com os poucos dias de clemência meteorológica. Já a Primavera é outra coisa. É como acordar de um longo sono salpicado de sonhos oblíquos e estranhos estados de vigília e não poder sair da cama para celebrar a vida na igreja das coisas. Quando vivia em França, com os meus pais, uma boa parte da infância, numa cidade do interior ladeando uma cordilheira de vulcões dormentes – Clermont-Ferrand – onde o clima era particularmente inclemente – Invernos nevosos e Verões infernais, a Primavera, muitas vezes tardando em aparecer até despontar, tímida, nos últimos dias de Março, como se tivesse prurido em chegar, era a única altura da vida da cidade em que o corpo parecia estar em sintonia com o ambiente. Eu estava sempre doente no Inverno, amiúde no Outono, e calhavam-me sempre pelo menos duas sessões de amigdalite no Verão. Na Primavera descobria o que era ser como os outros miúdos – sempre muito mais robustos do que eu. Na Primavera éramos todos imortais. Na Primavera o meu pai atrevia-se a tirar-me da segurança de casa aos fins-de-semana para fazermos piqueniques à beira-rio com a trupe de emigrantes com que partilhávamos pão e histórias da terrinha. Íamos pescar trutas – de que eu fingia gostar à mesa mais do que na verdade gostava –, ver a procissão dos bichos a caminho das múltiplas peripécias da vida (isto é um gaio, filho, isto é uma lebre, vês como têm as pernas muito mais longas do que as dos coelhos, isto é…), e no caminho de regresso, o meu pai ia apontando – para desespero da minha mãe, que insistia em que ele olhasse antes para a estrada – onde tinha trabalhado, onde tinha comido a melhor perdiz estufada, onde tinha bebido uns copos a mais. Era a topografia do adulto de meia-idade antes da chegada da mulher e filho, a segunda adolescência numa terra em que uma estranha liberdade eclode do anonimato. Tenho poucas lembranças da minha infância – felizmente. Essas poucas lembranças são bastante desproporcionais em relação aos sítios de onde elas vêm e ao tempo que neles passei. Estava quase sempre na cidade, enfiado em casa ou na sala de aula. Lembro-me vagamente da casa em França, uns pormenores difusos, o sítio do fogão, o padrão do papel de parede, a cor com que pintaram as janelas. Da escola lembro-me ainda menos; umas rampas que tínhamos de descer ou subir para entrar nas salas de aulas, um pátio enorme onde as crianças mais façanhudas se entretinham a humilhar as crianças mais reservadas, duas freiras extremamente meigas que eram o meu porto de abrigo quando as coisas não faziam sentido ou o almoço era fígado guisado. Do que me lembro bem era do cheiro acre da terra na Primavera, do meu pai procurando os meus dedos magros e frágeis para me ajudar a passar por um curso de água, dos gaios para que apontava com minúcia de coleccionador. Da Primavera que tudo renova.
José Simões Morais h | Artes, Letras e Ideias立春 Li Chun – Princípio da Primavera [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje, 3 de Fevereiro celebra-se na China a Festa do Princípio da Primavera e inicia-se o ano do Galo Solitário. Li Chun, ou Princípio da Primavera, comemora-se normalmente a 4 de Fevereiro, podendo por vezes ocorrer também no dia 3, ou 5, se houver ajustamentos e é o primeiro dos vinte e quatro termos em que está dividido o Calendário Solar do Agricultor. Com datas fixas, os termos estão directamente ligados à eclíptica do Sol e são indicadores das estações do ano, por isso conectados com a agricultura. Foi durante a dinastia Han (206 a.n.E.-200) que se resolveu celebrar no dia 4 de Fevereiro, o Princípio da Primavera, mas após muitas reformas acordou-se comemorar no primeiro dia do primeiro mês lunar também essa festividade, cujas datas são muito próximas uma da outra. O Ano Novo e o início da Primavera traduzem uma renovação e a combinação entre o calendário solar e o lunar, conhecido como calendário lunisolar, passou a ser usado na China. Combina os doze ramos terrestres com os dez caules celestes e cria um ciclo de 60 anos, que se vai repetindo. Em tempos antigos, quando a China tinha uma economia baseada na agricultura, esta festividade durava um mês e celebrava o final do Inverno, a estação de interregno para os agricultores e o início da Primavera, quando de novo a terra começava a ser trabalhada. Agora assiste-se a grandes festejos no primeiro dia da primeira Lua e não no Princípio da Primavera, apesar dos mestres da geomancia colocarem no Li Chun o dia da mudança para a regência do signo do ano. Este ano lunar chinês, que começou a 28 de Janeiro de 2017 e terminará a 15 de Fevereiro de 2018, vai ter treze meses, havendo um duplo mês, o da sexta Lua, sendo o primeiro denominado intercalar, ou adicional e o segundo sexto mês, chamado natural. Nele se celebrará por duas vezes a Festa do Princípio da Primavera, por isso auspicioso para o nascimento de crianças. Quando num ano lunar não se celebra nenhuma Festa da Primavera, isto é, quando o Ano Novo Lunar começa após o dia 4 de Fevereiro e no ano seguinte termina antes dessa data, diz-se ser um ano cego. O calendário solar do Agricultor Lichun, Princípio da Primavera, é a primeira grande festa solar e marca o início do ano agrícola, após um período de hibernação, quando a Terra desperta para um novo ciclo de vida. É o primeiro dos 24 termos solares de um sistema elaborado através dos tempos, a partir das observações feitas por astrónomos. Entre estes termos estão os dois solstícios, os primeiros a ser estabelecidos e depois, os dois equinócios. Pesquisas em torno do movimento aparente do Sol foram por isso necessárias para elaborar os calendários, sendo feitas de duas formas diferentes. Uma, pela medição da sombra do gnómon (instrumento que marca a altura do Sol pela direcção e comprimento da sombra de uma vara) ao meio-dia, assentando em tal medição o anunciar das estações e o determinar do ano trópico. A outra maneira era o estudo da variação aparente da velocidade anual do Sol e a averiguação do valor anual da alteração do ponto do solstício do Inverno observando a posição do Sol contra o céu, com a ajuda de instrumentos astronómicos. Anunciar a data precisa das estações era impossível sem uma identificação exacta da altura em que acontecia o solstício de Inverno. Mas já em 2317 a.n.E., durante o reinado do Imperador Yao, o ano tinha 365,25 dias e em 1100 a.n.E., mediante observações do Sol estabeleceu-se com uma aproximada exactidão a posição do solstício de Inverno. Estava encontrado o ano trópico, o período de tempo que transcorre desde o começo de uma Primavera, à outra, mostrando as mudanças sazonais anuais. Mais tarde calculou-se o equinócio da Primavera, que chega após 81 dias do solstício de Inverno. Os 24 termos solares gradualmente reconhecidos por volta do século III a.n.E., foram compilados por Lu Shi Chun Qiu, mas foi na enciclopédia Huai Nan Zi, escrita em 120 a.n.E., que todos os termos ficaram mencionados. Eis a lista dos 24 termos: Nome chinês: Tradução: Início: Lichun Princípio da Primavera 4 de Fevereiro Yushui Água da chuva 19 de Fevereiro Jingzhe O acordar dos insectos 6 de Março Chunfen Equinócio da Primavera 21 de Março Qingming Puro brilho 5 de Abril Guyu Chuva para as sementes 20 de Abril Lixia Princípio do Verão 6 de Maio Xiaoman Despontar da semente 21 de Maio Mangzhong A semente na espiga 6 de Junho Xiazhi Solstício de Verão 22 de Junho Xiaoshu Suave calor 7 de Julho Dashu Maior calor 23 de Julho Liqiu Princípio do Outono 8 de Agosto Chushu Limite de calor 23 de Agosto Bailu Branco orvalho 8 de Setembro Qiufen Equinócio do Outono 23 de Setembro Hanlu Frio orvalho 9 de Outubro Shuangjiang Queda de geada 24 de Outubro Lidong Princípio do Inverno 8 de Novembro Xiaoxue Leve nevão 23 de Novembro Daxue Grande nevão 7 de Dezembro Dongzhi Solstício de Inverno 22 de Dezembro Xiaohan Pequeno frio 6 de Janeiro Dahan Grande frio 21 de Janeiro Dos 24 termos solares, doze são chamados “jieqi“, enquanto os restantes se denominam “zhongqi“. Xiaohan, o 1º do grupo “jieqi” chega trinta dias antes do 2º, Lichun, o Princípio da Primavera. O intervalo entre cada um dos outros dez desta série é idêntico. O solstício de Inverno, Dongzhi, inicia a série “zhongqi” dispondo-se da mesma forma. Quando um mês que está para ocorrer não contém nenhum termo das séries do segundo grupo “zhonqi” esse mês será considerado um mês intercalar. Estes meses seguem-se ao mês a que estão associados. Os oito termos – os equinócios, os solstícios e o início de cada uma das quatro estações, são mais importantes que os outros, havendo um intervalo de mais ou menos 46 dias entre cada um deles. Este sistema, único no mundo, sugere o nível a que chegou a ciência da China antiga. Deixamos aqui agora votos de um bom Ano Novo – Kung Hei Fat Choi (Próspero Ano Novo), que só deve ser dito após se iniciar o novo ano lunar e Sun Tan Kin Hong (Boa Saúde), em mandarim: Gong Xi Fa Cai e Shen ti Jian Kang.