As mãos e a pandemia

[dropcap]H[/dropcap]avia neve nos Pirinéus na Páscoa de 1972. E eu ainda não sabia que 48 anos depois estaria em quarentena, por causa de um vírus. Objectivamente: por causa de uma guerra biológica em que o campo de batalha é formado por curvas e cidades desertas.

O futuro é o que está à mão, mas também o que virá e que já não caberá na minha mão. Tudo o que se estende para fora do corpo não está na minha mão prevê-lo. Mas é aí que me reencontro, é aí que me sento com todos os livros ainda por escrever. É aí que me deixarei cair dentro do poço da Alice por estar sempre distraído a olhar para as nuvens.

Em tempos de pandemia o futuro é a parte da vida que não envelhece. O que persiste. Todos os discursos conjecturam essa perenidade. A economia é o ponto de encontro das angústias que se conjecturam e antecipam. A economia, não o economês dos pobres diabos, é o dorso oculto da pandemia.

Esquecemos muitas vezes que o polegar foi a primeira forma em que investimos para conjecturar a natureza. Depois, quando os humanos se puseram de pé e começaram a andar em frente, o bullying à natureza foi sendo realizado pelo tempo. E o tempo, afinal, éramos e somos nós: assediar a natureza tornou-se no relógio invisível que abre caminho para que continuemos a andar em frente. Sem parar. Uma erosão nefasta que brilha (maravilhosamente) e que nos segreda que o futuro há-de descer pela mesma ravina que o vê desaparecer todos os dias.

Nestes dias de recolhimento, os crepúsculos chegam durante o dia e enfrentam a luz como uma música que subverte a imaginação, por vezes o tédio. Uma imagem que me devora e que me alimenta. A biografia é, ou poderia ser, esse breve parágrafo que enche a possibilidade de eu ter sido (e de aqui continuar a escrever esta crónica). Imaginemo-la como uma fotografia – sempre a mesma – a passar em ‘loop’ e sem qualquer esquadria. Ou como a chuva a transbordar os vidros da janela. Uma fotografia que se diz natural apenas porque é (ou será) olhada por alguém. O que se apresenta como natural visa afinal, e com toda a inocência, o futuro.

Tinha 17 anos quando cheguei aos Pirinéus e a polícia não me deixou passar. Estava com uma tia e com o meu irmão. Atirei o saco que trazia ao ombro contra as grades da fronteira francesa. Um gesto violento, mas um gesto que ficou sem resposta. O polícia francês tinha uma barriga enorme e sorriu com rosto de cágado. Foi aí que a minha memória susteve o mundo. Foi aí que o meu futuro podia ter sido sempre outro e outro.

Nunca provei um martini, mas poderia colocar um copo de martini na minha biografia. Nunca usei um arco-íris na lapela (nem na net), mas poderia perfeitamente colocar um arco-íris na lapela da minha biografia.

O futuro é uma enxada. Uma parte metálica a que se adapta um cabo e que só tem sentido, porque se conjectura e antecipa o que ela faz (ou poderá vir a fazer). Cada ferramenta pode ser o mundo todo, mas o essencial não cabe nunca na narração. Não me lembro do comboio que me levou e me trouxe dos Pirinéus a Saragoça nesses dias distantes da Páscoa de 1972.

Hoje estou encostado à janela a averiguar o poço da Alice e as ruas estão desertas. É nesse vaivém vertical que circularão todas as biografias. Sobem, descem, vertiginam em ‘loop’. O que se apaga, irá arder mais tarde. E a escrita pode ser esse fogo, do mesmo modo, dizia eu (dizia mesmo?), que o futuro é o que está à mão e ainda por vir, mas também o que virá e que já não cabe mais na minha mão.

Sobre as cinzas, ainda havemos um dia de festejar. Não se sabe bem o quê. Nem que seja a capacidade que os humanos têm em perceber e criar aquilo que designam por festa. Nem que seja para tocarmos com as mãos (e com os polegares) uns nos outros. Afinal somos velhos primatas, sedentos e desejosos de nos erguermos.

9 Abr 2020