Tânia dos Santos Sexanálise VozesPerguntas Natalícias Inconvenientes Para muita gente no mundo o Natal significa tempo em família. Para outra gente o Natal significa tempo com aquelas pessoas com quem partilhamos ADN, mas com quem não gostamos de estar na mesma sala. Famílias são assim, esse conceito aberto que gravita entre harmonia, conforto e disrupção – é a complexidade que lhe dá um certo charme. Um dos acontecimentos clássicos natalícios é o do constante questionamento por parte das famílias: então e namorado/namorada? Então e filhos? No Natal discute-se a vida romântica e a procriação, sem rodeios e censuras, não fosse esse o dia do parto de uma virgem. A maioria dos filmes e séries românticas natalícias partem desta interação em particular. O enredo vai, muito provavelmente, girar à volta do desespero de se arranjarem parceiros românticos para satisfazer as ansiedades das famílias que não se vêm multiplicadas em outras famílias como elas. Clássico. Todo este questionamento, no entanto, é problemático por várias razões. O conceito de família tende a ser bastante limitador e inflexível. Não só se baseiam em expectativas heteronormativas de relacionamentos românticos – desrespeitando todas as outras formas de romance que não são entre um homem e uma mulher – mas como desrespeitam todas as outras formas de estar no mundo, e em família, que podem não implicar relacionamentos românticos. Os solteiros são sacrificados, criticados e escrutinados porque não oferecerem essa tal normalidade. Muitas famílias também não aceitam a transição, o não-binarismo, as performances de género que as cabecinhas retrogradas acham fora da caixa. Nu e cru: no natal fala-se muito de sexo, mas com pruridos. Depois há a pergunta dos filhos à qual já fui pessoalmente vítima inúmeras vezes e em várias situações familiares. Outro clássico natalício deveras preocupante. Lá porque o útero pode gerar vida, não quer dizer que a detentora do útero o queira. Caso existam desses perguntadores por aí, vale a pena relembrar que ter filhos é uma escolha e não uma obrigatoriedade da vida. Para as pessoas que não podem ter filhos, fazer essa pergunta não só é dolorosa, como cruel. Apela-se à sensatez no que toca à privacidade e, muitas vezes, à dificuldade destas questões da procriação, da fertilidade e das desigualdades de género que ainda se vivem à custa da parentalidade. Partir do princípio de que a pergunta dos filhos é inócua, só mostra o caminho longo por percorrer para a mudança. O Natal pode ser um grande stressor porque a família não é necessariamente uma zona de conforto e porque o sentido de família continua contíguo a uma representação antiga e desactualizada. Ter consciência disto talvez ajude os muitos Natais por aí que não são perfeitos como as lenga-lengas natalícias nos fazem querer. Num ano em que existem dificuldades acrescidas nestes encontros familiares, esta eterna busca por perfeição é cada vez mais desmistificada. Para quem precisar, as perguntas natalícias inconvenientes já fizeram com que se escrevessem listas de possíveis respostas à letra. Basta procurarem. Não há nada como atrapalharem a dinâmica familiar natalícia com o azedume comum de quem está farto de se justificar à frente da mesa do bacalhau e das rabanadas. “O mundo já está cheio de gente estúpida de qualquer forma” – toma lá, Tia Alberta.