Hoje Macau VozesPedro Baptista: Portuense ilustre, sinófilo por descobrir [dropcap]N[/dropcap]ascido a 20 de Abril de 1948 e falecido a 20 de Fevereiro de 2020, Pedro Baptista foi justamente lembrado pela sua autarquia como um grande portuense. Ao Porto devotava um amor tal que o parecia erigir utopicamente a uma espécie de cidade-estado ideal feita daquilo que os sonhos são feitos, mas também da concreta memória, depositária do seu passado liberal e dos seus escritores e pensadores, sintetizada em orgulho tripeiro, responsabilidade cívica e nacional, nas suas palavras evocativas da revolução liberal de 1820, cujas comemorações, em curso, comissariava. O seu percurso biográfico, desde a luta antifascista aos vários comprometimentos políticos e cívicos que foi cultivando, é descrito de forma escorreita e solta, aqui e ali intempestiva e sempre desabrida, nos seus dois volumes de memórias (Da Foz Velha ao Grito do Povo [2014] e Da Revolução Gorada aos Desafios do Presente [2015]), situadamente redigidos no exílio voluntário em Cantão e Macau, República Popular da China, onde por vários anos viveu. A sua inscrição social assegura-lhe lugar histórico já atestado, primeiro na formação de um maoismo português (veja-se a obra historiográfica de Miguel Cardina) e, posteriormente, na pugna regionalista a que dedicou grande parte das suas energias em democracia, sob vários formatos (veja-se a este respeito a biografia divulgada pela Câmara do Porto e o importante amigo do seu correligionário Francisco Assis no Público do passado 22 de fevereiro). No entanto, recordar a sua militância cívica não pode nem deve, sob pena de se cometer uma grande e angelista injustiça, subalternizar o autor Pedro Baptista, o homem de letras e o pensador. Não nos deteremos aqui nem nos romances nem nos ricos materiais pedagógicos que foi como docente liceal compondo, mas destacaremos o volume Ao Encontro do Halley [1987], que de alguma forma assinala a sua redescoberta enamorada da cultura portuguesa. Neste âmbito, homenageamos aqui o historiógrafo e intérprete do pensamento português contemporâneo, em especial da chamada “escola portuense” de Filosofia, da qual sempre validou a pluralidade, contra as leituras monolíticas, e a riqueza do seu labor de ensino e debate, livre e aberto, suscitado pela grande figura de Leonardo Coimbra. Este havia sido o fundador da primeira Faculdade de Letras do Porto, barbaramente extinta pela ditadura militar, a que Baptista dedicou o exaustivo estudo O Milagre da Quinta Amarela [2012], onde compulsa os contributos da plêiade de professores e alunos que no espaço de uma breve década enriqueceram a cultura portuguesa. Assim, a sua opção por autores menos atendidos, como Lúcio Pinheiro dos Santos [2010], cujo pensamento incorpora nítidas marcas indianas (como sublinha) e o grande helenizante Newton de Macedo, de quem também colige as obras completas [2014], que detidamente comenta [2010], vem reforçar o programa teórico de reapresentação da diversidade interna daquele projecto pedagógico. No caminho aberto por Leonardo, Pedro Baptista assumia-se-nos entusiasmado pelo futuro, movido na confiança de que o homem não é uma inutilidade num mundo feito, mas obreiro de um mundo a fazer. A expressão leonardina “Mundo a fazer” deu sugestivamente lema e título a uma das suas colectâneas de ensaios [2013]. Assim, insurgia-se contra as visões enclausurantemente paroquiais que dicotomizam castiços e estrangeirados, afirmando que só na abertura ao outro é que poderemos ser verdadeiramente quem somos: A história da cultura dos nossos dois últimos séculos parece-nos indicar a sina de que quando estamos na Europa e no mundo, tendemos para estar connosco, ao passo que, quando estamos sozinhos, nem connosco estamos. Tal como o seu patriotismo era plural, sublinhando a irredutibilidade dos contributos regionais para a construção da cultura nacional, também a sua visão da história da filosofia não era a de uma reconsagração do já instituído. Era a de uma recuperação do olvidado e do outro, preocupando-se sempre com os nexos, articulações e diálogos que o pensamento vai estabelecendo com a ciência e a acção ético-política no mundo, mas também com as expressões literárias, tão carecentes de uma crítica filosoficamente fundamentada. Neste sentido, o seu genuíno universalismo leva-o a intuir desde muito jovem que só por provincianismo cultural poderíamos estudar filosofia ignorando o contributo asiático, e nomeadamente chinês. Assim, vemo-lo muito jovem, em 1960-1970, na Faculdade de Letras do Porto a impor aos professores e colegas o tratamento de um tema à época inesperado e vanguardista: o taoísmo como tendência materialista na filosofia medieval chinesa: Sigamo-lo: A realidade de chineses pensantes foi adquirida com facilidade, mas teve de ser equacionada… a existência de uma filosofia chinesa foi o diabo… a professora punha as maiores dúvidas, depois oposições, depois confessou que foi apanhada de chofre e que nós devíamos ter avisado porque as coisas não podiam ser assim… avisado de quê? Da existência da China e de chineses? Da existência da cultura chinesa medieval? O debate prosseguiu pelos corredores, alargou-se e continuou na aula seguinte. Com propriedade, o Pacheco Pereira frisou que não podiam aceitar a existência da filosofia chinesa como não podiam aceitar a existência da árabe ou de qualquer outra porque o curso era não de filosofia, mas de filosofia europeia branca! – Talvez pensamento, mas não filosofia – atalhariam as boas almas… Mas quem é o Ocidente para definir a bitola do que é filosofia e do que não é filosofia na Humanidade? E mesmo que se aceitasse esse ponto de vista inaceitável, se considerássemos pensamento e não filosofia, o problema era precisamente o mesmo! Era a conceção colonial e imperialista subjacente ao aparelho ideológico, na versão portuguesa a que aquele curso pertencia, tal como a própria conceção de filosofia, de cultura e de civilização… Mal eu sabia que a Faculdade anterior, dissolvida pelo Salazar em 1927, com efeitos a 1931, para ser substituída por aquele pastiche ruminoso que eu frequentava, estudava e com atenção a filosofia oriental, não por ter uma conceção anticolonial, mas por ter uma conceção universal e aberta, com pretensão civilizada a ser ciência, ou pelo menos a ser saber… Como de resto em toda a Europa! Porque se soubesse, abrir-se-ia aí mais uma frente a introduzir fissuras nas barragens inimigas. Parece-nos poder interpretar a partir deste trecho, inserto na primeira parte das suas memórias [p. 289-290], como o maoismo foi nele uma primeira forma ainda incipiente, de sinofilia, uma abertura a uma sinologia por construir, rumo a um universalismo que teria necessariamente de incluir o contributo chinês. Não podemos deixar de sublinhar a justeza desta sua interrogação: como é que um país que tanto se orgulha retoricamente do seu pioneirismo na procura do Oriente nunca tenha criado, desenvolvido e consolidado uma forte tradição científica e cultural sinológica que tanto o enriqueceria e prepararia para o presente em que estamos e para o futuro a haver? A nossa sinofilia, poética e ideológica, tem de se desdobrar em científica sinologia. Leiamos assim a esta outra luz a evocação que a pretexto de Wenceslau de Moraes redige em 2009, onde se interroga desencantadamente sobre o que fomos histórico-culturalmente procurar ao oriente exótico: Algo estranho, exterior a nós? Ou uma parte de nós? Teremos tido capacidade para uma verdadeira abertura, para nos apresentarmos virgens, ou pelo menos desarmados, desalmados, da nossa ocidentalidade, disponíveis para vermos o Outro na sua realidade – seja lá isso o que for! Ou fomos para mais uma vez nos vermos a nós? [Mundo a fazer, p 29] Neste sentido, o próprio Ocidente, neste século XXI, para ser livre, teria de ser livre de ser ocidental, nesse sentido excludente e imperial que tão longamente se tem imposto. Esperemos que as suas reflexões ainda inéditas sobre a China, de que há vários anos nos falava, ainda que incompletas, possam chegar a ver a luz do dia. Encorajamos os seus próximos a deitarem mãos a esta tarefa. Talvez Pedro Baptista tenha, na sua estadia chinesa, retomado, de forma problematizadora, o taoismo provocatório da juventude. Sabemos que foi reler os sagazes textos de Marx sobre a Ásia, que foi até reler algum Mao, que andava fascinado pela complexa história da filosofia chinesa de que abundantemente se documentou. Acalentava ainda o projecto de estudo da Filosofia contemporânea portuguesa em Macau, tema sobre o qual redigiu uma germinal introdução em 2013 [Livros do Meio], onde chama a atenção para a lacuna que é a ausência de um levantamento sistemático do influxo sinológico que a ligação a Macau inscreveu na cultura literária e filosófica portuguesa.
Hoje Macau SociedadeÓbito | Pedro Baptista, escritor e ensaísta, morreu de doença súbita [dropcap]M[/dropcap]orreu o escritor e ensaísta Pedro Baptista, de 71 anos, comissário das comemorações da Revolução Liberal do Porto, que arrancam esta quinta-feira, avançou ontem o Jornal de Notícias. Ao que JN apurou, Pedro Baptista terá sido vítima de doença súbita, na madrugada de ontem, em casa, no Porto. Pedro Baptista era esperado ontem de manhã, às 11 horas, na Casa do Infante, para uma visita prévia à exposição que recorda a Revolução Liberal de 24 de Agosto, no Porto. A autarquia do Porto reagiu com consternação à notícia, conhecida esta manhã, aquando da visita prévia à exposição, inaugurada ontem no Porto. A exposição, na Casa do Infante, vai estar patente até 6 de Setembro. Segundo apurou o JN, a mostra passará a ter um caráter mais simbólico, de homenagem a Pedro Baptista. O autor com ligações a Macau, onde passou parte da vida, foi também colaborador por diversas vezes do Hoje Macau.
admin SociedadeÓbito | Pedro Baptista, escritor e ensaísta, morreu de doença súbita [dropcap]M[/dropcap]orreu o escritor e ensaísta Pedro Baptista, de 71 anos, comissário das comemorações da Revolução Liberal do Porto, que arrancam esta quinta-feira, avançou ontem o Jornal de Notícias. Ao que JN apurou, Pedro Baptista terá sido vítima de doença súbita, na madrugada de ontem, em casa, no Porto. Pedro Baptista era esperado ontem de manhã, às 11 horas, na Casa do Infante, para uma visita prévia à exposição que recorda a Revolução Liberal de 24 de Agosto, no Porto. A autarquia do Porto reagiu com consternação à notícia, conhecida esta manhã, aquando da visita prévia à exposição, inaugurada ontem no Porto. A exposição, na Casa do Infante, vai estar patente até 6 de Setembro. Segundo apurou o JN, a mostra passará a ter um caráter mais simbólico, de homenagem a Pedro Baptista. O autor com ligações a Macau, onde passou parte da vida, foi também colaborador por diversas vezes do Hoje Macau.