Paulo Branco, produtor de cinema: “Este festival foi uma ideia minha”

Há 10 anos atrás sentiu que era importante criar em Macau uma janela cultural forte através de um festival de cinema e chegou mesmo, segundo o próprio, a dar o mote para o projecto. Não querendo “assumir a paternidade” do IFFAM, Paulo Branco, produtor do filme português “A Herdade”, falou ao HM acerca do contributo que a Ásia tem dado à arte cinematográfica, das novas plataformas digitais, mas também de uma carreira marcada pela presença incontornável do realizador Manoel de Oliveira

[dropcap]E[/dropcap]Estudou engenharia no Técnico, até 1971, três anos antes do 25 de Abril. O que aconteceu na sua vida para enveredar pelo cinema?
Isso é quase um filme. Foi uma sucessão de acasos mas, sobretudo, o facto de ter descoberto, como cinéfilo, a sétima arte. A certa altura, comecei a ter um prazer enorme em ver filmes, em descobrir e foi isso que me levou à produção. Nunca na minha vida pensei ser produtor e aqui estou, ao fim de 40 anos. Encontrei um espaço onde, de certa maneira, e eu sou uma pessoa extremamente anárquica, tento transformar os sonhos dos realizadores em realidade. Por isso tenho que ter um lado concreto e isso é uma batalha diária comigo próprio, ou seja, fazer com que os filmes existam e depois ocupar-me deles, de maneira a dar-lhes uma visibilidade para que possam existir.

Lembra-se que obras o fizeram apaixonar-se pelo cinema?
Talvez a primeira tenha sido o “Rio Bravo” de Howard Hawks. Lembro-me também de ter visto, quando era muito jovem, “As aventuras de Robin dos Bosques” com o Errol Flynn e ter ficado traumatizado porque a projecção parou a meio e só muitos anos depois consegui rever o filme. Mas isto são só pequenas recordações. Tive depois a sorte de encontrar pessoas do meio e de me começar a fascinar sobre como é que um filme se torna realidade e, mais tarde, houve alguém que me desafiou para ser produtor e eu, mesmo sem saber nada do que era a produção, lancei-me. E ainda não sei, estou a aprender todos os dias.

A figura de Manoel de Oliveira foi determinante na sua vida e carreira. Como começou esta relação e que lições guarda do grande mestre Oliveira?
Conheci-o através de outros realizadores da altura, o António Pedro Vasconcelos e o Paulo Rocha e cheguei a encontrar-me uma ou duas vezes com ele por acaso, quando ainda era um miúdo. Penso que, nessa altura, nem sequer reparou em mim. Depois, a dada altura, estava eu em Paris, quando o Manoel de Oliveira foi extremamente atacado em Portugal com a Obra “Amor de Perdição”, que tinha passado na televisão. Nessa altura resolvi estrear o filme em Paris porque gostei imenso e, foi um sucesso tal ao nível da crítica, que acabou por ter uma enorme influência, fazendo com que o Manoel de Oliveira voltasse a ser considerado como alguém que ainda poderia dar muito ao cinema. Foi aí que ele veio ter comigo a perguntar se eu queria produzir a próxima obra dele, porque nessa altura o Instituto Português do Cinema começou a exigir produtores para os filmes. Daí nasceu o “Francisca” e também uma relação que foi absolutamente essencial, pois estava a trabalhar com um dos grandes senhores do cinema mundial e, por outro lado, o Manoel era uma lição de vida permanente, porque era alguém que, mesmo com a idade que tinha, acabava por arriscar mais do que qualquer outra pessoa. Isso foi para mim extremamente importante, ou seja, ter um dia a dia, durante vinte e tal anos, com alguém que nunca estava contente e queria sempre fazer mais e continuar, mesmo até ao fim da sua vida.

Todos os cinéfilos têm filmes recorrentes aos quais retornam como quem regressa a casa com saudades das personagens, dos cenários… quais são os seus filmes recorrentes e porquê?
Há muitos filmes da história do cinema, dos grandes, que eu gosto de rever e depois há outros que já vi 30 ou 40 vezes. Um filme que eu conheço de cor e salteado é o “The Searchers”, do John Ford. Outro menos conhecido mas que aborda um tema que a mim sempre me fascinou, é o “Lilith”, de Robert Rossen, que pouca gente conhece mas que é um grande filme. Ainda há pouco tempo revi um filme extraordinário do Douglas Sirk, “The Tarnished Angels”, que é uma adaptação de um romance do William Faulkner. Depois há outros. Estou a falar mais nos filmes americanos porque do cinema europeu logicamente que revejo eternamente os filmes do Rossellini e os filmes do Renoir. Portanto, há sempre uma relação com toda essa cinematografia que, ao rever agora um filme como o “Roma, Cidade Aberta” ou o “Alemanha, Ano Zero”, percebe-se que todo cinema moderno nasceu do Rosselini. Ou ao rever um clássico como “Le Carrosse d’Or” do Renoir, percebe-se que a grande relação que existe entre o teatro e a vida, foi ele que nos ensinou. O cinema sempre foi uma fonte para mim, não só de prazer, mas também de descoberta, que me permitiu não ter medo de arriscar e de estar sempre à procura de novos territórios, até mesmo para a minha própria vivência pessoal. Tento aproveitar este dom magnífico ao máximo, de ainda estar aqui apesar de ter 69 anos.

O que nos pode dizer sobre o processo de produção de “A Herdade”?
Foi muito particular porque é um projecto que já queria fazer há muitos anos, de uma grande ficção, a partir da herdade de uma grande família que atravessa um período pouco retratado no cinema português que é o lado dos grandes latifundiários, das grandes famílias e da forma como tudo isso passou do feudalismo aos tempos modernos, trazendo todas as feridas abertas e destruições que existiram, infelizmente, com essa evolução natural da sociedade. O filme retrata um personagem que é um sedutor nato, bigger than life, patriarca no sentido antigo do próprio conceito e que, ao mesmo tempo, tem um poder de destruição enorme porque a atenção que tem para determinadas situações da sua herdade, não tem, em termos pessoais, com a sua família. São todas essas contradições que fazem com que o filme tenha uma emoção e uma capacidade de prender os espectadores e de fazer um retrato extremamente forte de todos os personagens que existem nesta história.

Desde o próprio João Fernandes, que é realmente o patriarca, mas também a personagem da mulher, os filhos, as pessoas que trabalham na herdade, há ali um lado, uma tensão e uma evolução dos personagens que penso que traz algo de novo ao cinema português e é isso que penso que transformou este filme num grande êxito em Portugal e lhe conferiu também uma dimensão internacional. Apesar de ser um filme que só fala de algo que se passou connosco no nosso país, há esse lado universal e melodramático e essa tensão.

Que ideia tem do Festival de Cinema de Macau e que margem de progressão em termos de projeção mundial acha que pode vir a ter?
Sabe, este festival foi uma ideia minha, que eu trouxe aqui há 10 anos ao Alexi Tan. Foi a partir de mim que eles depois convidaram o Marco Müller para a primeira edição, portanto há 10 anos atrás senti que havia aqui talvez uma possibilidade. Como me estava a divertir com o meu festival lá em Portugal pensei: “porque é que não vou propor isto a Macau?”. Eu vim, só que depois, o Marco Müller era para ter estruturado a ideia e vá… faltou-me a paciência, como se costuma dizer. Depois vim cá ver que isto agora é uma realidade, mas os princípios que eu na altura achava importantes, como a atenção ao cinema asiático, a possibilidade de haver uma competição de primeiras e segundas obras, tudo isso já estava um pouco no projecto inicial. Logicamente que transformaram isso depois. Mas acho que na altura sentia-se que era importante que houvesse aqui uma janela cultural forte e que um festival de cinema podia trazer isso. Não quero de maneira nenhuma assumir a paternidade do festival, simplesmente dizer que estou extremamente satisfeito que Macau tenha, neste momento, um festival. Agora, não me cabe a mim dizer qual é a dimensão que ele está a ter ou não. Estou aqui porque para mim era extremamente importante que os portugueses de Macau pudessem ver “A Herdade” numa sala de cinema.

Acabou a resposta anterior a falar em sala de cinema. Como vê a transição da sala de cinema para o pequeno ecrã liderada por plataformas como a Netflix? Podemos chamar a isto cinema?
Para já não vejo, porque nem sequer computador tenho. É uma questão muito prática. Por outro lado, qualquer realização de ficção, quer seja para cinema ou televisão, pode ser considerada cinema. Mas, no grande ecrã a atenção e o respeito são diferentes. Podemos dizer que há um gesto do próprio espectador, há o ir ao cinema que é, penso, essencial. É a mesma coisa, por exemplo, que ver as obras de arte todas que quiser na internet, mas outra coisa é ir mesmo vê-las. Agora não quero dizer se é cinema, isso são coisas que deixo depois para historiadores e filósofos. Mas é um prazer que é diferente e que ainda por cima, não nos permite estar distraídos pelas 50 mil coisas que acontecem ao mesmo tempo que se está a ver um filme na televisão ou num computador. Na sala de cinema as pessoas estão atentas a tudo, até mesmo aos ventos, aos silêncios e tudo que, ao ver na televisão, passa muito mais despercebido. A maior parte do que é construído para televisão tem, e não falo já nas plataformas, mas nas ficções televisivas, um ritmo especial para as pessoas não fazerem zapping e portanto, isso já formatiza de certa maneira um pouco o modelo. Por isso é que eu não sou adepto das séries, já sabemos exactamente qual é o ritmo, e o lado inventivo que o cinema sempre trouxe perde-se, talvez não nos conteúdos mas, em termos formais. Há excepções como o Twin Peaks, do David Lynch, mas isso é uma pessoa que já demonstrou que qualquer terreno para onde vá, é absolutamente extraordinário.

Como vê o cinema feito na China, sobretudo pelas novas gerações?
Houve um grande boom, não só do cinema chinês, mas no cinema asiático nos anos 80, que trouxe um olhar diferente em termos estéticos e de conteúdo daquilo que era feito. É preciso não esquecer que a grande cinematografia sempre esteve na China com o Mizoguchi, Kurosawa, Ozu, mas depois houve uma nova geração que começou a aparecer em Hong Kong, China, Coreia e que se começou a impor ao mundo. Neste momento, há um espaço para o cinema asiático fantástico porque já existe uma diversidade extraordinária de cineastas que são fortíssimos e que têm uma obra extremamente pessoal e que escapa a uma tentativa de controlo industrial. Essa luta existe sempre, seja em que continente for, mas a Ásia consegue realmente impor-se como região que tem dado ao cinema obras incríveis e que, neste momento, fazem avançar a arte cinematográfica.

Até que ponto é necessária alguma loucura para levar avante uma carreira enquanto produtor de cinema independente? Recorda-se do filme que o levou mais perto da loucura e porquê?
Isso acontece-me todos os dias ainda agora e não sei como é que o dia seguinte se vai passar. Adaptei-me a isso e sobretudo a estar pronto a todas as surpresas que possam acontecer e é também a minha maneira de acompanhar o risco artístico que têm os realizadores com quem trabalho. Era fácil demais eu estar numa situação confortável e eles, pelo que são e pelo que querem transmitir, estarem numa situação desconfortável. Fazer uma obra cinematográfica exige da parte deles um risco permanente para que possa resultar nalguma coisa de interessante. Nas situações difíceis eu vou sempre para a frente, não há tempo suficiente para ir ali para uma ponte saber se me deito para o rio ou não.

Tem ideia do número de filmes que produziu em quase 40 anos de carreira? No IMDB, enfim, vale o que vale, a conta dos filmes em que aparece como produtor nos créditos é 278. Como é que isto é possível?
É um bocadinho mais do que isso, mas não faço a mínima ideia. Isso não me cabe a mim responder. Que eles existem, existem. Que eu conheço todos, conheço. Que tenho uma relação pessoal com os filmes todos, também tenho. Posso contar histórias com cada um deles que ainda não me esqueci de nenhum, mesmo aqueles que infelizmente não esqueci. Mas pronto, isso vai-se construindo. É a mesma coisa quando se tem filhos, e eu tenho quatro, e, de repente, dizer, “olha, gostaria de ter mais”. E com os filmes é um pouco a mesma coisa.

10 Dez 2019

Herdade

[dropcap]C[/dropcap]om estreia em 62 salas, este é o filme a que se tecem os mais rasgados elogios por parte de comunicação social e dos actores do sector.

É bom o conseguimento de um produtor, o Paulo Branco, e da equipa de comunicação do filme, desta vontade que exprime também a mudança significativa no acolhimento da produção cinematográfica portuguesa, que da indiferença e da crítica assente em pré-conceitos sobre a qualidade das obras, passou a um enaltecer, vendo pérolas cinematográficas nas obras que o cinema português vai conseguindo produzir. E isto é bom, mesmo que nem tudo seja pepita de ouro nos filmes que, por vezes após anos de insistência, vão conseguindo chegar ao grande ecrã.

Um dos problemas com que o cinema português se tem confrontado nas últimas décadas, é o do acesso aos públicos, o que é o mesmo de dizer, enorme dificuldade no acesso à exibição e distribuição. Um filme português ter estreia em 70 salas, a par de outras produções recentes que também chegam ao primeiro contacto com os públicos em 50, 60 ecrãs, é um dado novo que indica uma mudança de enaltecer, e até festejar.

Nas contas do primeiro fim de semana, de 19 a 22 de Setembro o filme foi visto por 19.424 pessoas, nos 62 ecrãs, o que representa uma receita bruta de 105.372,11€.

Herdade, é um excelente filme para, uma vez mais, se colocar a pergunta “O que é o cinema?”, já tantas vezes formulada no seguimento da formulação primeira, por André Bazin, na segunda metade da década de 40 do séc. XX. Curiosamente é também nos anos 50 que se inicia a materialidade cinematográfica deste fresco cinematográfico assinado por Tiago Guedes. A resposta à pergunta é vasta e depende do modelo de abordagem; dispositivo estético, modelos de produção, recepção, linguagem, géneros cinematográficos, cinema mainstream ou cinema indie, cinema-cinemas, são alguns dos possíveis ângulos para a análise e circunscrição da questão. O espaço permitido à escrita de uma crónica de cinema não é o lugar para uma aproximação/resposta à pergunta tantas vezes formulada, mas talvez seja oportuno pensar sobre uma outra pergunta que, por razões várias, anda próxima; o que é escrever sobre filmes?, ou que é hoje, escrever crítica cinematográfica?

Todos os filmes se confrontam com a memória cinematográfica, e o filme vive este aparente paradoxo de ser simultaneamente obra única e obra partilhada. Nunca é pouco o que se exige a cada filme. E ainda bem, esta exigência, esta expectativa de revelação, de emoção, racionalidade e maravilhamento perante cada nova obra cinematográfica que pela primeira vez chega ao grande ecrã é uma das condições para diferenciação cinematográfica na imensa produção audiovisual. Ao contrário do que muitos profissionais do marketing afirmam quando decidem antecipar o que os públicos querem, gostam, ou não gostam, um olhar atento mostra que os públicos de cinema, reconhecem e procuram a excelência cinematográfica, a qual raramente dispensa a história e o processo inteligível de a contar.

Escrever sobre um filme é, obviamente, escrever sobre a fotografia, o argumento, a montagem, os actores, a produção, a realização, mas talvez que seja sempre o fora de campo, que a própria escrita sobre qualquer objecto cinematográfico já é, aliás, o aspecto mais revelador e de interesse na escrita sobre filmes. Afinal, é eco do filme em nós, o que nos apaixona ou distancia da obra cinematográfica.

A primeira cena da Herdade começa com um plano geral no Alentejo, e uma situação narrativa de enorme força. Um sobreiro na paisagem de terra quente onde se adivinha o trigo e a determinação sem reservas nem complacência do confronto fenomenológico entre vida e morte.

Alguém, um homem trabalhador da herdade, decidiu pôr fim à vida. O corpo permanece inerte alguns metros acima da terra, enlaçado e pendurado pelo pescoço na corda grossa atada ao ramo vigoroso do sobreiro. Um outro trabalhador prepara-se para descer o corpo, a acção é interrompida por mando do dono da herdade, é dada ordem para ir chamar o filho – João Fernandes (o personagem interpretado por Albano Jerónimo quando adulto – aqui ainda criança). O pai quer que o filho olhe a realidade, diz-lhe que vai aprender uma lição de vida, indica-lhe o olhar para o enforcado. A criança, perante a crueldade da imagem, após um primeiro momento de confronto com a materialidade da morte, afasta-se a correr, refugia-se no isolamento oferecido pela pequena ilha, a ermida de Stº António, uma pequena ruína, no lago da propriedade. O lugar tenente do pai corre para apanhar a criança mas à voz do patrão que lhe dá ordem para o não fazer, imobiliza-se, regressa ao trabalho de descer do ramo do sobreiro o corpo do companheiro enforcado. Estamos perto da década de 50. A sequência seguinte é já com João Fernandes no lugar do pai, é ele agora o dono da grande Herdade, estamos ainda no Estado Novo, a Guerra Colonial exige esforços e alianças. João Fernandes está no picadeiro com o seu puro sangue, o cavalo negro, é-lhe anunciada a visita sem convite de um ministro de Estado. Nesta sequência conhecemos a família, o lugar tenente do patrão, uma personagem magistralmente criada pelo Miguel Borges, que é sem grande discussão merecedora de um prémio de interpretação pela contenção e desenho do personagem. E claro o contexto da época.

A importância, ou melhor o poder do senhor do latifúndio, e a forma do exercício do Poder do Estado, as necessárias visibilidades das alianças, os améns às decisões do Presidente do Conselho.

O tema é tratado com exagero, é forçada a boçalidade e falta de cortesia por parte de altos funcionários do Estado, com comportamentos onde não há distinção nem as regras básicas da urbanidade. É um exagero mas foi a escolha. Se quando se trata de funcionários da polícia política o tom grosseiro e sem urbanidade é justo e adequado, é desajustado quando em ministro ou seus secretários.

Ficamos a conhecer a Herdade, a família, o trabalho e a polícia política. Há um trabalhador ligado ao PCP que é preso, e o patrão vai a Lisboa libertá-lo. Afinal é casado com a filha do general que comanda a polícia política, e isto das relações de parentesco, antes do 25 de Abril como agora, continuam ser passaportes de grande validade nas mais diversas situações sociais.

A progressão na narrativa vai tendo lugar na maioria das vezes no tom e de forma adivinhada, e o golpe de Estado do 25 de Abril acontece.

Seguem-se os momentos de convulsão social conhecidos, a reforma agrária tentada na forma de ocupação da terra a que com pulso e sem vacilar João Fernandes faz frente, continuando a gerir a Herdade.

Paulo Branco, de quem parte a ideia inicial do filme, não por acaso, convidou para montador do filme Roberto Perpignani, que foi quem montou o famoso documentário “Torre Bela”, onde é dado a ver a ocupação revolucionária da herdade com o mesmo nome. Roberto Perpignani, para além de ser uma vedeta dado ter montado filmes do Orson Welles e do Bertolucci, é um conhecedor do que foram os tempos da reforma agrária em Portugal no chamado verão quente da revolução. O tempo vai passando. O filho cresce. Uma nova linha de dramaturgia explorada, e neste grande fresco pelos perto de 60 anos da paisagem social e política deste país, surge uma estória de amor com contornos de Romeu e Julieta no contexto das barreiras da origem social de classe, a que o interdito do sangue vem acrescentar um toque queirosiano dos Maias, por razões de uma espécie de infidelidade consentida a quem é senhor de terras e patrão de gentes.

A Democracia está instalada, e se antes o problema da permanência da terra da Herdade passou por fazer frente à mudança de propriedade em razão da vontade e legitimação revolucionária, a que João Fernandes conseguiu fazer oposição vitoriosa, agora o problema vem da banca, e a Herdade vai desaparecendo, em parcelas vendidas aos próprios bancos. Um extenso terreno de cultivo de arroz é entregue. Outros já foram. Se a reforma agrária não conseguiu ocupar a Herdade, consegue-o agora a banca, na realidade neo-liberal da democracia.

O homem-tenente do patrão, dádiva irrepreensível do Miguel Borges, pai oficial, do jovem por quem a filha do patrão se apaixona e que é afilhado do patrão, morre num acidente que se adivinha propositado.

O filme termina com a queda e morte do cavalo de raça, e o recolhimento à pequena ilha no lago na infância do personagem principal do filme, num tratamento de arco de personagem de grande fôlego e muito bem conseguido.

Filme poderoso, que nos transporta nesta viagem pela história recente dos grandes territórios da agricultura em Portugal, com uma versão de série para televisão que terá bom acolhimento dos públicos com todo o merecimento.

Escrever sobre cinema é também isto, falar um pouco do filme visto, apelar à vontade de descoberta do filme sabendo que cada espectador tem um filme único à sua espera, e essa é também uma das muitas maravilhas do cinema.

Produzido por Paulo Branco, “A Herdade”, tem argumento de Rui Cardoso Martins e Tiago Guedes, estreou no festival de Veneza e esteve presente no festival de cinema de Toronto. É o candidato de Portugal aos Óscares (EUA) e também aos Goya (Espanha).

Diz o realizador, “A Herdade” é “um filme de personagens, de atores, de interpretações fortes, da grandeza das paisagens que os envolvem e das consequências dos segredos que transportam”.


Título original: A Herdade. Realizador: Tiago Guedes. Montador: Roberto Perpignani. Produtor: Paulo Branco. Com: Albano Jerónimo, Sandra Faleiro, Miguel Borges, João Pedro Mamede, Diogo Dória, Victória Guerra, Ana Bustorff, entre outros. Portugal, cores, 166 minutos
25 Set 2019

Produtor Paulo Branco distinguido com prémio mundial das artes Leonardo da Vinci

[dropcap]O[/dropcap] produtor português Paulo Branco foi distinguido com o prémio mundial das artes Leonardo da Vinci, atribuído pelo Conselho Cultural Mundial, anunciou hoje o Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA).

Em comunicado, o ICA sublinha que o galardão “vem reconhecer a dedicação do produtor português com novas visões de expressões cinematográficas e o seu compromisso em cultivar uma intensa comunicação e actividade entre as diferentes áreas da Cultura, como a Literatura, as Belas-artes e a Música”.

O prémio, dado pela primeira vez a um português, vai ser entregue numa cerimónia em Outubro, na cidade japonesa de Tsukuba, onde também receberá o prémio mundial de ciência Albert Einstein o investigador Zhong Lin Wang.

O Conselho Cultural Mundial é uma organização internacional fundada em 1981 e sediada no México com uma composição inicial de 124 cientistas e académicos, presidentes de universidades e executivos de cinco continentes, segundo a descrição patente na sua página.

“A sua missão é promover uma cultura de tolerância, paz e fraternidade ao reconhecer modelos de inspiração através dos seus prémios”, acrescenta o mesmo texto. O prémio Leonardo da Vinci foi entregue pela primeira vez em 1989 ao grupo de preservação da Acrópole, na Grécia.

De acordo com a biografia publicada pelo Conselho Cultural Mundial, Paulo Branco, nascido em 1950, já produziu ou co-produziu mais de 300 filmes, tendo sido premiado pelo Festival de Cinema de Locarno, entre outros, e condecorado pela República Francesa. Em 2017, foi homenageado pelo Festival de Cinema de Guadalajara.

“O trabalho de Paulo Branco deu um enorme contributo para aprofundar o horizonte estético do cinema, em Portugal e pelo mundo, para além de aumentar a formação cultural de audiências e do público em geral”, pode ler-se no anúncio oficial.

Desde 2017, que Paulo Branco está envolvido num diferendo judicial em vários países devido à produção do filme “O homem que matou D. Quixote”, de Terry Gilliam.

16 Jun 2019

Festival de Cannes critica produtor Paulo Branco e apoia filme de Terry Gilliam

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] direção do Festival de Cinema de Cannes saiu hoje em defesa do realizador Terry Gilliam e do filme “O homem que matou D. Quixote”, deixando duras críticas ao produtor Paulo Branco por causa de uma disputa judicial.

“Afirmamos firmemente que estamos do lado dos realizadores e, em particular, do lado de Terry Gilliam. Sabemos como este projeto, que passou por tantas provações e tribulações, é importante para ele”, afirmaram o presidente do festival de Cannes, Pierre Lescure, e o delegado-geral, Thierry Frémaux, num comunicado conjunto.

Em causa está uma ação de interdição interposta pelo produtor português Paulo Branco, através da produtora Alfama Films, para impedir que o festival de Cannes exiba o filme de Terry Gilliam no encerramento desta 71.ª edição.

Por decisão judicial do Tribunal de Paris, está marcada uma audiência para a próxima segunda-feira, véspera de abertura do festival, e aí se saberá se o filme poderá ou não ser exibido.

No comunicado, a direção do festival recorda que está planeada a estreia do filme em pelo menos 300 salas em França, mas garante que respeitará a decisão do tribunal. De permeio, critica duramente o produtor Paulo Branco, recordando que usou o festival “ao longo da sua carreira para construir a sua própria reputação”.

No entender do festival, com aquela ação judicial, Paulo Branco “mostrou a verdadeira cara de uma vez por todas” ao ameaçar, através do advogado, “com uma derrota humilhante”.

“Derrota seria sucumbir às ameaças”, escreveram.

No centro desta polémica está pelo menos um processo judicial que opõe o realizador Terry Gilliam ao produtor Paulo Branco, por causa do filme “O homem que matou D. Quixote”.

O projeto chegou a contar com produção de Paulo Branco, mas Terry Gilliam acabou por não concretizar a parceria, alegadamente por problemas de financiamento, optando por trabalhar com outra produtora portuguesa, a Ukbar Filmes.

Terry Gilliam pediu a anulação do contrato de produção com a produtora Alfama Films, de Paulo Branco, mas, no ano passado, o Tribunal de Grande Instância de Paris declarou que aquele continua válido.

“Continuo a ter os direitos sobre o filme e será difícil que a situação seja revertida. A decisão de 15 de junho, que foi comunicada, não resolve nada. Há ainda um processo no Reino Unido”, disse Paulo Branco à agência Lusa no passado dia 04 de abril.

Nesse dia, Pandora da Cunha Telles, da Ukbar Filmes, explicou à agência Lusa que este processo “não inviabiliza nem a exploração comercial nem a circulação do filme”.

Sobre este processo está marcada para 15 de junho uma audiência no Tribunal de Recurso em Paris na qual será conhecida a sentença sobre a possível indemnização do cineasta ao produtor português, por causa de direitos sobre o filme.

“O homem que matou Dom Quixote”, um projeto antigo de Terry Gilliam, é uma coprodução entre Portugal, Espanha, França, Bélgica e Inglaterra, com um orçamento de cerca de 16 milhões de euros, que teve filmagens em Portugal.

À Lusa, Paulo Branco recordou que “os direitos do filme ainda pertencem à Alfama Films” e disse estar há pelo menos dois anos “disposto a sentar-se à mesa” para negociar com o realizador.

2 Mai 2018